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A circularidade é figura central nas formas do transe. A cultura brasileira, em suas inúmeras manifestações catárticas e religiosas está impregnada de formas circulares que associam ritos e danças, lutas e gingas, e cria mecanismos legislativos que são circunscritos a temporalidades rituais específicos. São rodas de Capoeira, rodas de Samba, de Carimbó, de Maracatu, a gira dos rituais de possessão. Wisnik (2017) diz que “se você tem um barulho

percutido qualquer e ele começa a se repetir e a mostrar certa periodicidade, abre-se um horizonte de expectativa e a virtualidade de uma ordem subjacente ao pulso sonoro em suas regularidades e irregularidades” (WISNIK, 2017, p. 35). A virtualidade que se abre ao horizonte do pulso é a que diz respeito a segunda forma do tempo, a memória.

É assim que a segunda apreensão do ritornelo é a que o constitui como um vivente e sua morada. Ele é responsável pela formação da memória e, também, é chamado de “segunda síntese do tempo”. Deleuze diz que a primeira síntese, embora originária, ainda é intratemporal, pois compõe o tempo como presente, mas se efetua como um presente que passa onde “o tempo não sai do presente, mas o presente não para de mover-se por saltos que se imbricam uns nos outros” (DELEUZE, 2008, p. 83). A partir disto, é preciso que exista um outro tempo dentro do qual o tempo presente irá operar, sendo a primeira síntese referente a uma espécie de fundação do tempo, necessitando esta fundação ser diferenciada de seu fundamento. A fundação, desta forma, evidencia o modo como um dado presente constitui um solo e ao mesmo tempo ocupa este solo (território); o fundamento, por outro lado, é o motivo pelo qual este presente se desfaz e se torna sua memória (desterritorialização). Assim, a memória repousa sobre o hábito como uma síntese derivada (a síntese de registro é, igualmente, uma memória, como veremos). Deleuze (2008) diz que:

No momento em que ela se funda sobre o hábito, a memória deve ser fundada por uma outra síntese passiva, distinta do hábito. E a síntese passiva do hábito remete a esta síntese passiva mais profunda que é da memória: Habitus e Mnemósina, ou a aliança do céu e da terra. (p. 84) É deste modo que Deleuze inverte a relação que comumente associa passado e presente, pois aqui é o presente que se torna uma dimensão do passado, sendo que, a partir desta disposição, o presente nada mais é do que a contração de todos os passados preexistentes, “ a memória se torna a condição genética do presente” (LAPOUJADE, 2015, p. 74). Assim, “do ponto de vista da reprodução da memória, é o passado (como mediação dos presentes) que se tornou geral, e o presente (tanto o atual quanto o antigo) que se tornou particular ” (DELEUZE, 2008, p. 85). O giro e as formas circulares do transe, dos carnavais, dos rituais pagãos desde as formas dionisíacas da antiguidade são, portanto, modos de evocação de passados específicos. Cada rito traz seu passado com sua forma circular idiossincrática.

O que nos aparece como questão principal é a ideia de um fundamento, como um conjunto de estruturalidades que tem por função fundar uma dada cosmologia (ou pensamento). Gilles Deleuze, em Cinema I, A imagem-movimento (2009) afirma que o cinema, enquanto dispositivo, teve desde sua invenção a possibilidade de descoberta do

tempo puro, um tempo não fundado, mas que tão logo tenha sido inventada sua linguagem, esta tratou de atribuir-lhe fundamentos, submetendo o tempo à subordinação do movimento, transformando as imagens em representações indiretas do tempo. No cinema dito clássico, onde a imagem era referida a um todo estrutural, esse todo era como o fundamento da imagem. A imagem tinha origem em uma percepção (sua condição de diferenciação) e se prolongava até uma ação, seu espaço extensivo. O fundamento tem, portanto, a propriedade de exercer funções legisladoras sobre o que ele funda.

É assim que Diferença e Repetição (2008) apresenta um inventário de autores que trabalharam a diferença em sua versão submetida ao fundamento, chamado por Deleuze de “imagem do pensamento” (DELEUZE, 2008, p. 65). Para o autor, Platão, Aristóteles, Hegel e até Leibniz construíram suas filosofias submetendo a diferença aos enquadramentos da representação (fundamento). Alguns autores trabalharam o fundamento em um nível metafísico, submetendo a diferença a uma teoria do conceito, como Platão e seus continuadores; outros o trabalharam em um nível transcendental, que fez com que a diferença obedecesse a uma teoria da experiência, vista em Kant e seus sucessores.

A metafísica do conceito tem seu fundamento em uma ideia, sendo dela que decorrem os fenômenos. Tal ideia confunde-se com a pura identidade de si de uma qualidade (o idealismo), sendo o fundamento o responsável por distribuir as representações e graduá-las, segundo sua semelhança, em uma espécie de conformidade interna na relação que as representações mantêm com a ideia: “o fundamento estabelece uma hierarquia entre os pretendentes a partir do modo como cada um representa a Ideia” (LAPOUJADE, 2015, p. 48), atuando como “uma vontade de selecionar” (DELEUZE, 2008, p. 29). No interior da filosofia platônica, cada imagem fundada se chama representação, pois a primeira em sua ordem é ainda segunda em si, sendo segunda em relação ao fundamento (DELEUZE, 2008, p. 378). É nesta relação que a ideia, em Platão, funda o mundo da representação, pois mantém com o fundamento uma pressuposição recíproca.

A identidade e circularidade são, por conseguinte, as duas principais figuras do fundamento. Fundar é, neste processo, o ato de se instaurar sobre uma identidade transcendente que possui sobretudo o que os outros só possuem de maneira secundária, sendo dela derivada. Concomitante a isso, o fundamento tem por função introduzir o princípio de uma distribuição circular cujo propósito é envolver o fundado em sua circularidade, para fazê-lo submeter-se a sua lei.

Dissemos que o intuito de nossa tese é a formulação de uma concepção do transe que o compreenda como um dispositivo rítmico de povoamento da imagem. O ritmo ganha, em

nossa compreensão, a função de uma diferença não fundada, pois as imagens que compõem os povoamentos não remetem a nada, valem-se por si mesmas, ao mesmo tempo, são imagens de cinema, ou seja, são já enquadradas por um dispositivo cuja dinâmica de funcionamento obedece a um certo ordenamento. Tal situação impõe às imagens em transe a condição de serem sempre repovoamentos, isto é, refundações que são condicionadas pelo adoecimento dos meios, a corrosão, as desterritorializações. Por esta razão, as imagens de que tratamos são sempre investidas de desmontagens, de sacrifícios, de alianças demoníacas, pois buscam a todo tempo o ainda não fundado, o transe como o sem-fundo que é a condição diferencial dos meios.

Para David Lapoujade (2015), desde Platão, a instauração de um fundamento é inseparável de uma prova seletiva, sendo tal prova revelada e descrita por um mito. A prova seletiva supõe, concomitantemente, uma transformação dos pretendentes em um ciclo de metapsicose e a hierarquia deles no interior desse ciclo. Nas revisões modernas do fundamento platônico, entretanto, a função do fundamento deixa de se exercer como prova do fundado, se tornando um signo da passagem do mythos ao logos (do mito ao pensamento). O fundamento, assim, não põe em metamorfose aquilo que ele funda, sendo esta a base que origina a constatação de sua inoperância. A partir de Lapoujade (2015) ainda perguntamos: “Qual pode ser a efetividade, o valor de um fundamento, se ele não muda nada no pensamento e na vida? Para que serve tal ciclo? (p. 65).

Em Diferença e Repetição (2008) de Deleuze, a imagem do círculo apenas testemunha a impotência para o começo verdadeiro e para a repetição automática (p. 191). É preciso que sempre atrelemos a fundação à metamorfose ou, nas palavras deste mesmo autor, “fundar é metamorfosear” (p. 201). Lapoujade (2015), entretanto, diz que “não é o pensador que funda, nem mesmo enquanto sujeito transcendental. Pelo contrário, ele se torna fundado” (p. 66), no mesmo sentido em que Artaud se vê fundado pelo desmoronamento de seu pensamento e por sua impotência de pensar. Desta forma, o signo força o pensamento a pensar, uma vez que ele não é signo de um objeto no mundo, mas dos pontos críticos que ligam desterritorializações e reterritorializações; é signo, portanto, das estabilizações temporárias pelas quais esse objeto do mundo passa. Consequentemente, o povo cunhado pelo cinema de Glauber não pode prescindir da criação de novos signos porque só é possível a ele devir nas imagens a partir da crítica ao acabado e ao estado de equilíbrio das formas e suas fundações representacionais. Desfundar e refundar, despovoar e repovoar, eis o trabalho do transe.