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4.5 O Gago

4.5.3 Jorjamado e a falação

Figura 63 - Frames de Jorjamado (1979)

O transe de Jorjamado (1979) é indicado já nos créditos iniciais. Desde o primeiro plano, trata-se de um filme cuja uma linguagem é esburacada a ponto de criar um Jorge Amado gaguejante cuja biografia é expressa ao modo de uma literatura menor. Os créditos de abertura do filme são anunciados pela fala de uma pessoa da produção, posicionada em frente a uma câmera que por vezes a desenquadra. A equipe é descrita verbalmente, mas logo no começo da fala um grande ruído sobrepõe as palavras e toma conta da banda sonora. Voltamos a ouvir nome e funções da equipe serem descritas pela mulher até que ela é desenquadrada e inicia-se o filme.

Figura 64 - Frames de Jorjamado (1979)

Os frames acima destacados foram extraídos da primeira sequência do filme. Ali, já se evidencia um conjunto picotado de falas, sons de microfone, risadas. Glauber fala alto, dá indicações à equipe. A cena traz a superposição de muitos tipos de fala que se misturam em

diferentes níveis de intensidade e volume. Se o problema de Glauber, no filme sobre Di

Cavalcanti era biografá-lo por perceptos, Jorge Amado é construído por pedaços de fala.

Deleuze e Guattari (2014), no livro sobre Kafka, dizem que são três as condições para que haja uma literatura menor: “a desterritorialização da língua, a ligação do individual no imediato político, o agenciamento coletivo de enunciação” (DELEUZE, GUATTARI, 2014, p. 39). É possível identificarmos, no modo como Glauber trabalha a linguagem na construção da cinebiografia do escritor baiano, a existência de todos esses elementos.

Nesta primeira cena, Glauber gesticula com a equipe como quem dá instruções e não é possível ouvir sequer uma palavra do que ele diz, pois há uma massa indiscernível de falas que se sobrepõem, como se toda a equipe falasse ao mesmo tempo. Glauber fuma e posiciona Jorge Amando. As falas entrecortadas se produzem como um continuum rapidamente posto ao fundo enquanto conseguimos mal ouvir Glauber instruir Jorge Amado a virar-se para a câmera. Há mais falação e ouvimos novamente Glauber dizer “vamos filmar isso aí”.

Figura 65 - Frames de Jorjamado (1979)

Mais adiante, na cena cujos frames acima ilustram, Jorge Amado fala ao telefone, mas o que ouvimos é a voz de Glauber. A sobreposição cria uma ordem de indiscernibilidades, pois engendra uma duplicidade de enunciados. Ouve-se fragmentos da fala de Glauber que se apresentam entrecortados: “o lançamento do filme de Jorge Amado é esperado por todo o Brasil”. Uma outra voz diz: “é, meu Deus! ”. Um membro da equipe grita: “estão batendo na câmera”. Jorge Amado fala ao telefone enquanto a câmera tenta enquadrá-lo e enquanto tentamos compreendê-lo. Nesta altura, ainda não conseguimos vê-lo por completo em nenhum fragmento fílmico.

Figura 66 - Frames de Jorjamado (1979)

Na cena seguinte, parece por um instante que a entrevista vai efetivamente começar. Glauber pergunta a Jorge Amado: “você acha que nos filmes os diretores representam o mundo, seu mundo imaginário? Quer dizer, o que você acha das várias representações que eles fazem?” Jorge Amado vai responder, gesticula e abre a boca, mas é interrompido por Glauber: “boa resposta! Por exemplo, algum desses filmes correspondiam exatamente à cena que você pensou, quer dizer, seu sonho foi traduzido?”. Jorge Amado inclina-se para frente fazendo um gesto com a mão e se mobiliza para responder: “por exemplo, no filme do Nelson, na sexta cena, tem aquela cena que foi exatamente o que eu pensei transformada em cinema e com a grandeza do Nelson”. Glauber o deixa falar por alguns segundos fazendo sobrepor-se à voz de Jorge Amado sua voz, que diz “Claro, Claro, Claro”, como quem concorda com o que o autor diz.

A palavra “claro”, no entanto, não nos parece uma escolha gratuita, pois remete imediatamente ao grande problema do último longa, Claro (1975), que ele havia feito antes deste média-metragem e a questão da desterritorialização da língua. As falas entrecortadas, o rosto desenquadrado, as respostas afirmativas de Glauber que sempre interrompem a fala de Jorge Amado, como quem não tem interesse no que está sendo dito, revelam uma vontade de Glauber de produzir um Jorge Amado sempre em estado de dizer, mas um estado interditado por um transe, a gagueira de uma linguagem que se produz por buracos, cortes e intervalos.

Figura 67 - Frames de Jorjamado (1979)

Na cena seguinte, de onde foram extraídos os frames acima, é o momento em que finalmente Jorge Amado começa a falar, entretanto, nunca o vemos completamente. A câmera começa seu take enquadrando uma pintura que traz em sua composição retirantes. Ouvimos Glauber dizer “Começa a falar! ” E Jorge Amado inicia sua fala: “mas eu participei muito daquela chanchada, aquela coisa, escrevi diálogos, eu escrevia muita chanchada. Quando a chanchada tava no cinema, deixava de tá o filme ruim, o filme americano” (JORGE AMADO). A câmera vacilante descreve partes da casa de Jorge Amado enquanto ouvimos sua voz. Percorremos paredes descascadas, abacaxis sobre a mesa e um homem que acompanha a entrevista. Há um gravador sobre a mesa. Quando Jorge Amado é enquadrado, não está mais falando. Esse jogo de desencontros entre as imagens e as falas produz uma espécie de biografia em transe, pois nos parece querer despessoalizar Jorge Amado, construindo-o a partir de planos intensivos, apresentando-o sempre aos pedaços, pequenas partes do rosto, vultos, granulações, fumaça de cigarro. As vozes entrecortadas compõem um continuum ruidoso e nunca cessam, nem quando Jorge Amado fala. Se o primeiro efeito da literatura menor, a desterritorialização da língua, é uma constante em quase todo o filme, o segundo efeito começa a ser produzido aí. Nas falas de Jorge Amado, nas citações da câmera que passeia pela casa, nas pinturas expostas, tudo que ali fala é político.

Os frames acima foram extraídos do momento em que Jorge Amado é indagado por Glauber sobre a influência dos modernismos paulista e pernambucano do começo do século XX sobre a arte baiana. O autor faz uma espécie de análise filogenética das manifestações culturais da Bahia situando-as em um lugar intersticial. Diz ele “no fundo não tem aquele cacoete modernista, nem tem uma certa dureza pernambucana, que é aquela coisa baiana que você conhece, não é? Barroca, cheio de mistério, de magia, de força, de humanidade, de comida, de fome”. É assim que Jorge Amado, ao falar de si, faz com que tudo se converta em um valor coletivo. Deleuze e Guattari (2014), ao falarem sobre os enunciados produzidos pelos autores do terceiro mundo, afirmam: “o que o escritor sozinho diz já constitui uma ação comum, e o que ele diz ou faz é necessariamente político [...] o campo político contaminou todo o enunciado” (p. 37).

O que nos parece conclusivo acerca das questões postas por este capítulo, não apenas no filme Jorjamado, é o fato de que, sendo inevitável ao colonizado falar a língua do colonizador, a produção de minoridades linguareiras dentro dessa língua se dá nos seus usos intensivos, na molecularização de seus materiais, em detrimento de seu uso simbólico ou significante. Como diz Wisnik (1988):

Rompido o cordão dos pronomes, vínculo corporal com que o sujeito enlaça os signos, há uma queda não para fora, mas para dentro da linguagem (galáxia descentrada percorrida por toda parte por rastros de sentido e não- sentido, ou de um sentido maior e nenhum). Não funcionam mais aqueles intercâmbios entre códigos e mensagens, aquelas embreagens que caracterizam a dêixis, e que permitem ao sujeito apropriar-se da linguagem para manipular imaginariamente o tempo, o espaço, a pessoalidade. Em vez disso, parece que há uma espécie de coincidência tendencial entre mensagem e código, num estado de linguagem em que cada palavra é quase o nome próprio de si mesma. Em tais condições a sintaxe naufraga. (WISNIK, 1988, p. 296)

É assim que nos parece haver, nos personagens que povoam as imagens em transe, com seus gaguejamentos, as problemáticas de uma língua menor, capaz de convocar o povo a devir nas imagens a partir de imigrações na própria língua. Peregrinos, beatos, cangaceiros, jagunços, cada um a seu modo produzindo escavações e perfurações que fazem deslizar a língua as suas puras intensidades, sendo sempre reterritorializada e fazendo aumentar o ruído crescente do mundo.