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O cinema dos primeiros tempos concebeu a ideia de que o movimento é o dado imediato da imagem. Nele, é a própria imagem que se move em si mesma, não sendo nem figurativa nem abstrata. Este automatismo da imagem produz um choque no pensamento, ao passo que refaz o percurso da imagem já feito por outras artes, como vimos na genealogia trazida por Foucault (2000), mas “converte em potência o que só era possibilidade” (DELEUZE, 2006, p. 202).

Assim, o movimento automático constitui em quem o experimenta um autômato espiritual, que se dá por meio de uma reação. Deleuze chama de noochoque esta potência que se erige a partir do movimento próprio da imagem do cinema. É preciso, portanto, que se pense essa relação sob a distinção fundamental entre a potência e a possibilidade lógica, pois a condição de possibilidade é numérica, enquanto o possível compreende uma espécie de capacidade de efetivar-se, “é esta capacidade, esta potência, e não a simples possibilidade lógica que o cinema pretende dar comunicando-nos o choque” (DELEUZE, 2006, p. 203). É deste modo que o autômato ao mesmo tempo individual e coletivo faz erigir o pensador, como aquele que reage ao choque e experimenta a “arte das massas” (DELEUZE, 2006, p. 203).

O ponto fulcral da dissolução do esquema elaborado pelo cinema dos primeiros anos reside justamente sob a superfície das possibilidades, pois resulta, em período coincidente

com a Segunda Guerra Mundial, em imagens imperativas, que tentam a qualquer custo direcionar o choque, impor seus efeitos, tentando reconduzir a potência novamente à mera possibilidade lógica, quando “eles pensavam que o cinema seria capaz de impor o choque, de impor as massas, ao povo” (DELEUZE, 2006, p. 203). Deleuze se refere tanto aos cineastas panfletários do pré-guerra - como a alemã Leni Riefenstahl, que chegou a fazer um filme de propaganda do Regime Nazista - quanto aqueles de verve marxista da escola soviética, como Eisenstein, Pudovkin, Vertov, para quem o povo era uma massa uniforme.

Para o autor, este cinema, chamado por ele de clássico, se erigiu sob a compreensão de um pensamento do sublime, um modo de constituição ligado a uma tradição filosófica que mantinha fortes vinculações com a metafísica clássica. O sublime, tendo sua formulação mais potente na filosofia de Immanuel Kant, é aquilo que, ao incidir sobre uma dada faculdade (sensibilidade, analítica, pensamento), a empurra para o seu limite, no caso do pensamento, é o que o força “a pensar o todo como totalidade intelectual que ultrapassa a imaginação” (DELEUZE, 2006, p. 204).

Deleuze divide esse cinema clássico em três grandes movimentos do pensamento em sua relação com o sublime: o primeiro é aquele que vai da imagem ao pensamento, visto na figura de Eisenstein. É um cinema disposto a pensar sob a regência de um Todo, uma totalidade que só pode ser pensada por ser efeito da representação indireta do tempo que decorre do movimento. Essa decorrência atua como efeito dinâmico das imagens sobre o cérebro, mantendo uma relação indissociável com a montagem. Deleuze (2006) diz que “o todo é a totalidade orgânica que se coloca ao opor e ultrapassar as suas próprias partes” (p. 204). É deste modo que o todo é o conceito e se constrói, em Eisenstein, sob a regência das leis da dialética, onde “do choque de dois fatores nasce um conceito” (DELEUZE, 2006, p. 205).

O segundo movimento não é segundo em relação ao primeiro, pois eles podem coexistir. Trata-se da perspectiva inversa, que compreende um retorno das imagens ao pensamento, “onde o pensamento por figuras nos traz às imagens e volta a dar-nos um choque afetivo, faz coexistir os dois, juntar o mais alto grau de consciência ao nível mais profundo do inconsciente: o autômato dialético” (DELEUZE, 2006, p. 209).

O terceiro momento não se coloca nem da imagem ao conceito (pensamento), nem do conceito a imagem, mas na identidade do conceito e da imagem, sendo este conceito em si na imagem e a imagem por si no conceito. Esta é chamada por Deleuze de imagem pragmática, aquela que designa o pensamento-ação. Esta forma do pensamento tem por característica a reprodução de uma forma-estado que designa a relação do homem com o mundo, a distinção

do homem e da natureza, do sujeito e dos objetos com os quais ele interage e sobre os quais ele tece observações, descreve, modifica. A imagem do pensamento-ação produz, portanto, um cinema que constitui a natureza como exterioridade do homem.

Para Deleuze, há no sublime uma pressuposição de unidade sensorial motriz da natureza e do homem. Este autor (2006) resume as três imagens do pensamento clássico do cinema da seguinte forma:

A relação com um todo que só pode ser pensado numa tomada de consciência superior, a relação com um pensamento que só pode ser figurado num desenvolvimento subconsciente das imagens. A relação sensorial motriz entre o mundo e o homem, a natureza e o pensamento. (p. 210)

A intensa produção de novas imagens no chamado cinema moderno faz nascer na mesma medida novas formas do pensamento. Deleuze usa Arthaud para dizer que o pensamento não tem outra função senão seu próprio nascimento. Há, na formulação de Arthaud, uma premissa já expressa por nós no começo deste trabalho: para fazer nascer o pensamento no pensamento, o cinema precisa se desvencilhar de sua potência e ir ao encontro de sua impossibilidade. Tal cinema, ao que nos parece, deixa de ser figurativo ou abstrato para se tornar um mecanismo de revelação da impotência do próprio pensar. De acordo com Deleuze, “o autômato espiritual ou mental já não se define pela possibilidade lógica de um pensamento que deduziria formalmente suas ideias umas das outras [...] é testemunha da ‘impossibilidade de pensar que é o pensamento’” (DELEUZE, 2006, p. 216).

É deste modo que, através de Arthaud, substituímos o todo pela fissura, como “uma realidade íntima do cérebro” que não tem mais como propósito pensar as imagens como um sistema centrado, como descreveu Derrida (1971), mas como força dissociativa que se opõe ao encadeamento, à metáfora e ao “monólogo interior” (DELEUZE, 2006, p. 216). Como diz Maria Del Carmen Rodriguez (2015), a ideia de verdade, desde Nietzsche, não existe mais, “o mundo verdadeiro, que supõe que o homem seja ‘verídico’” (p. 117), pois “toda verdade é verdade do tempo” (DELEUZE, 2001). É preciso, portanto, criar novos mundos e novas possibilidades de vida, “diversos futuros, diversos tempos que coexistem em um mesmo universo, ainda que sejam incompossíveis” (RODRIGUEZ, 2015, p. 117). Deleuze diz que é a partir da inexistência de um todo, entendido como verdade, que se erige a possibilidade de pensar o impensado. O que nos força a pensar, portanto, é a impotência do pensamento, a impossibilidade de pensar tanto o todo como a si mesmo, tendo “por um lado a presença de um impensável no pensamento e que seria simultaneamente a origem e a barreira; por outro a presença até o infinito de outro pensador no pensador, que quebra todo o monólogo de um

ego pensante” (DELEUZE, 2006, p. 217), tal como Lampião quando fala através de Corisco. Na cena, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), Glauber cria, como vimos, um jogo de enquadramentos e desenquadramentos que põe Corisco a conversar consigo mesmo e, a cada vez, encarnar o já morto cangaceiro Lampião. A cada persona assumida por Corsico, vemos uma metade diferente de seu rosto. Quando quem fala é Lampião, vemos sua face esquerda, quando quem fala é ele próprio, o que vem ao quadro é sua face direita. Lampião que por vezes é também chamado de Virgulino, em referência ao nome de batismo do popular cangaceiro. Na primeira fala, Corisco diz em sussurro “seus irmãos morreram, Virgulino, sua raça só tem você vivo, seus irmãos tão tudo com as almas penando”. No jogo de falas e respostas, Corisco mesmo responde, surgindo em quadro em sua outra metade: “Tô ferido de Morte, Cristino”. Cristino é o nome de batismo de Corisco.

As imagens em transe produzem suspensões do mundo. Ao invés de tornar o pensamento visível, como o movimento do cinema clássico (do pensamento à imagem, da imagem ao pensamento), dirigem-se ao que não se deixa pensar no pensado, seu fundo diferencial. Ao falar sobre o modo como se sacralizou a distinção entre um pensamento apolíneo das formas harmônicas em oposição a um pensamento dionisíaco das turbulências transformadoras, Wisnik (2017) diz que tal divisão acabou por engendrar, a favor da primeira, um conjunto de estabilizações de uma hierarquia em que “assim como a música se subordinava à palavra, o ritmo se subordinava à harmonia” (p. 105). O autor diz que na concepção do pensamento vinculado à metafísica clássica “o ritmo não dá logos” (p. 105). Tal separação elaborou as bases do que se fundamentou como a tradição do pensamento ocidental que compreende o sagrado, o artístico, o cívico de um lado; de outro o dionisíaco, associado as festas populares, aos rituais pagãos, as músicas dançantes, carnavalescas, ao corpo, “muitas vezes como manifestação inferior (profana, desordeira, vulgar)” (WISNIK, 2017, p. 106).

A esta tese não interessa outra coisa a não ser os povoamentos operados pela

ritmização dos meios a partir das imagens, o caráter dionisíaco e indiferenciado de uma

matéria disforme que está sempre em vias de atualizar-se, insistindo sobre as formas bem- acabadas do mundo analógico. Nos parece ser o transe o momento em que Glauber submete o cinema a um confronto com o que havia sido recalcado por ele desde seu surgimento, um tempo dionisíaco capaz de mobilizar matérias não formadas de um mundo caótico e doente, o mundo faminto de Glauber, em oposição ao bem nutrido mundo das formas ocidentais. Desta cisão, surge um corte entre um cinema que carrega consigo toda uma história do sentido (uma memória do mundo) e um cinema que se propõe à descontinuidade dos pulsos rítmicos, do

esquecimento, da agitação (DELEUZE, 2006), evidentemente não se trata de uma oposição dialética, mas de um procedimento antropofágico que se propõe a uma destruição criadora.

Se, conforme demonstramos, o que importa ao cinema de Glauber é sempre uma espécie de colocar-se no interstício, produzindo entre-imagens, deslocamentos, espaçamentos, onde o cinema deixa de ser “uma cadeia interrompida de imagens, umas escravas das outras” (DELEUZE, 2006, p. 232), e produz o que Deleuze chamou de um cinema do E, pois o que se atualiza nas imagens do entre é o próprio entre, “entre duas ações, entre duas afecções, entre duas percepções, entre duas imagens visuais, entre duas imagens sonoras, entre o sonoro e o visual: fazer ver o indiscernível, isto é, a fronteira” (DELEUZE, 2006, p. 233). O todo se torna o que Maurice Blanchot (2005) chamou de força de dispersão do fora, uma vertigem cujo vazio já não constitui uma situação motriz, mas um questionamento radical da imagem, uma imagem em transe.