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4.5 O Gago

4.5.2 Conversação em transe

Gilles Deleuze (2006) diz que o sonoro, no cinema clássico, já era instigado pelo mudo, pois o mudo pressupunha já uma sonoridade própria nas relações entre as imagens, sendo, portanto, um cinema não mudo, mas apenas silencioso, pois continha “de tão perto os atos de palavra que pode fazer-se ver as lamentações dos pobres ou o grito dos revoltados” (DELEUZE, 2006, p. 288). Para ele, entretanto, o primeiro cinema comunicava uma espécie de naturalidade que era tida como o segredo e a beleza da vida muda onde “a imagem muda tinha uma ‘materialidade’ autônoma que enchia de sentido” (DELEUZE, 2006, p. 288, rodapé, grifos do autor). De modo geral, acreditamos que o cinema mudo naturaliza a imagem do homem, um homem na história ou na sociedade, enquanto o outro plano discursivo (o da fala) se passa num modo indireto, um regime discursivo necessariamente escrito e lido, a legenda.

No cinema sonoro, por outro lado, o ato de palavra “já não aponta para a função do olho” (DELEUZE, 2006, p. 289), aponta, agora, para outra máquina sensorial, o ouvido. O discurso que carrega o ato de palavra, com o som, torna-se, assim como na imagem, direto. O cinema não se torna, tampouco, audiovisual, apenas é criada com o som uma nova dimensão da imagem visual, uma nova componente. Portanto, os sons do cinema partem das imagens e seus elementos se distribuem em função delas. Isso ocorre porque o som não tem imagem, não podendo, portanto, ser representado pelo cinema, mas apenas restituído por ele. É provável, no entanto, que as componentes sonoras criem na imagem um fazer ver antes indisponível ao olhar, a imagem visual estaria assim, desnaturalizada.

Essa desnaturalização da imagem promove, com a nova dimensão do espaço sonoro, o domínio das interações humanas “que se distinguem simultaneamente das estruturas prévias e

das ações ou reações consequentes” (DELEUZE, 2006, p. 289). É neste ponto que Deleuze faz referência ao trabalho de Goffman e dos interacionistas, ao dizer que os primeiros cinemas sonoros, como a comédia norte-americana, acabaram por engendrar uma espécie de sociologia das interações em que um conjunto sonoro das interações não decorrem de estruturas sociais preexistentes e não atuam como ações e reações psíquicas, mas são correlatos de atos de palavras e silêncios, destituindo o social de sua naturalidade, “formando sistemas longe do equilíbrio ou inventando o seu próprio equilíbrio (socialização- dessocialização)” (DELEUZE, 2006, p. 290).

Deleuze cria, a partir desta parasitária apropriação dos interacionistas, uma ordenação do espaço sonoro do cinema que se porta como uma encenação da vida cotidiana, no conjunto de falações e barulhos dos centros urbanos, nos mal-entendidos, nos entre-cortes das falas, nos conflitos comunicacionais, tal como estamos trabalhando deste o início deste capítulo. A partir de tal apreensão abre-se um novo campo perceptivo no cinema, uma “hipertrofia do olho” (DELEUZE, 2006, p. 290).

As interações se fazem ver não nos indivíduos, mas nos atos de palavra, pois não dizem respeito aos colaboradores dos atos, “é antes o ato de palavra que, pela sua circulação, pela sua propagação e sua evolução autônomas vai criar a interação entre indivíduos ou grupos distantes, dispersos, indiferentes uns aos outros” (DELEUZE, 2006, p. 290).

O cinema sonoro torna-se, assim, uma sociologia interacionista em ato. Os primeiros cinemas cuja função fônica foi experimentada trouxeram todo um conjunto de vozes, anúncios, murmúrios, multidões que constituíram atos de palavra indeterminados, circulando como rumores e se propagando ao fazerem ver as interações “entre personagens independentes e lugares separados” (DELEUZE, 2006, p. 291). A grande forma foi migrando, ao passo de sua evolução tecnológica e de linguagem, para um cinema do teatro falado, dos diálogos bem colocados, da fala do sujeito (a estrela hollywoodiana), da mise-en-

scène pautada pelo fraseado bem demarcado, distanciando-se em grande medida da falação,

dos rumores.

O cinema do pós-guerra, o Neorrealismo, a Nouvelle Vague e o Cinema Novo redescobriram a potência da interação promovida por essa ordem ruidosa da linguagem. Quanto mais o ato de palavra se torna autônomo, ou seja, destituído de seu caráter autoral, sem sujeito, mais o campo visual se apresenta como problemático, “orientado sobre um ponto problemático no limite das linhas de interação enredadas” (DELEUZE, 2006, p. 291). Deleuze (2006) ainda propõe que:

O mudo operava uma repartição da imagem visível e da palavra legível. Mas, quando a palavra se faz ouvir, dir-se-ia que faz ver algo de novo, e que a imagem visível, desnaturalizada, começa a tornar-se legível por sua conta, enquanto visível ou visual. (p. 292)

É assim que as imagens de que tratamos adquirem valores problemáticos, suas equivocidades, pois o que o ato de palavra faz ver pode ser mal lido. Na conversação, o ato de palavra tem lugar privilegiado de sua expressividade. Tal conversação, entretanto, mesmo sendo oriunda das formas puras, não socializadas, é inseparável das estruturas, lugares e funções que a faz funcionar. As ações e reações lhes são exteriores e “é por isso que há sempre algo de louco, de esquizofrênico numa conversação considerada em si mesma” (p. 294).

Figura 59 - Frames de Cabeças Cortadas (1970)

As imagens acima foram extraídas da cena em que Diaz II, em Cabeças Cortada (1970), fala ao telefone. Tal gesto produz um tipo de conversação esquizofrênica que se coaduna ao que estamos chamando de uma gagueira das imagens em transe, um tipo de indiscernibilidade produzida nos atos de palavra, nas falações, no rumorejar dos povoamentos.

O plano aberto descreve um enorme castelo e Diaz II sentado atrás de uma mesa pequena, num quadro cuja composição se completa, ao fundo, com uma grande pintura de motivos sacros. Diaz fala simultaneamente em dois telefones:

Alô, bem. Sim, senhorita, ligação interurbana. Quero falar, de pessoa para pessoa, com Eldorado. Sim, com a senhora Alba Moreno... 22789900. E também com o senhor Fred Bull, com ‘B’. Sim, 88743320. Quem fala é Diaz II.

Diaz interrompe a telefonista e fala: “alô, Alô, telefonista, estou ouvindo muito mal” como quem anuncia a problemática fundamental da conversação. Inicia-se, então, um duplo diálogo de Diaz II com os personagens anteriormente citados. Ele enuncia: “Ah Freddy! Meu amigo. Quero que me faça um favor: venda todas as plantações de cacau, café e açúcar para Willian Bradley”. As falas de Diaz II são entrecortadas com pequenas respostas a perguntas cujo conteúdo não sabemos: “correto, correto, sim”. Ainda diz ele:

E quero que invista esse dinheiro em uma fundação cultural, uma fundação cultural com meu nome naturalmente, é claro. Tem que vender em dólares, duzentos milhões à vista. Sim, uma fundação cultural, ou melhor, Fundação de Ciências e Humanidades Emanuel.... É, com o meu nome, Emanuel Prado Diaz II. É. Uma coisa que fique perfeita, linda, significativa, compreende, Freddy? Se lembra daquele famoso filósofo de Eldorado? É, É, Gonzáles Moura. Gonzáles Moura. É. Diga que regresse ao país para dirigir a fundação.

A fala é sempre interrompida por pequenas respostas, como “Não, não, Freddy, não!”, para perguntas que não sabemos quais são. Uma outra camada de indecidibilidade é acrescentada, pois Diaz troca os telefones que tem nas mãos a cada resposta. Em um momento, ele diz “é que... Não”, troca de telefone e diz “sinto como novas emoções”. Ele deixa na mesa um dos telefones e diz: “é, Freddy, coisas muito estranhas, meu querido amigo”. Há uma sucessão de trocas de telefone ao ouvido, quando ele fala “um momento, Freddy, um momento”. Ao outro dispositivo ele afirma “Escute, diga. Alô! Senhorita não ouço nada”. Interrompe a fala de sua interlocutora e enuncia “Sim, você me ouve bem, mas eu não escuto nada. Continua a conversa, “tempestade? Terremoto? ”, “vulcões? “Extingui todos os vulcões, senhorita”, “Alô, sim? Alba? Alba querida...Me preocupo tanto com sua felicidade”. O personagem troca de telefone novamente e diz “Sim, me preocupo muito”.

O indecidível se produz tanto nas trocas de dispositivo quanto nas falas de Diaz, pois não sabemos do que trata nenhum dos assuntos, ao mesmo tempo em que um assunto é iniciado em um telefone e continuado em outro, criando um jogo de perguntas e respostas cujas lacunas são impreenchíveis. Nenhum dos três personagens tem acesso à totalidade das falas, tampouco nós que assistimos ao conjunto entrecortado e vacilante do que é produzido apenas pela mediação de Diaz II. Produz-se neste jogo uma linguagem esburacada como uma conversação em transe. A cena continua com a intensificação do jogo entre perguntas e

respostas, das trocas de telefone, das falas entrecortadas em que se misturam duas ordens de conversação.

Para Deleuze, toda conversação é um modelo de esquizofrenia. Ela é uma espécie de conjunto do que vem a ser dito, não podendo ser confundida com um aglomerado de vozes pessoalizadas, pois lhe é própria a atribuição de difundir relações entre pessoas dispersas e independentes, por exemplo, passantes de um parque ou transeuntes de uma avenida movimentada, personagens que atravessam a cena ao acaso, “de tal modo que a conversação é um rumor contraído, e o rumor, uma conversação dilatada” (DELEUZE, 2006, p. 294).

O sonoro cinematográfico quando tomado pela potência dos atos de palavra faz mostra uma espacialidade outra, definida pelo volume sonoro da falação: “toda a gente fala ao mesmo tempo, ou então a palavra de um enche de tal maneira o espaço que reduz o outro a tentativas vãs, gaguejamentos, esforços de interrupção” (DELEUZE, 2006, p. 295). O gaguejar da linguagem é a expressão de desequilíbrios nos sistemas, uma ordem ruidosa do mundo que se apresenta.

A falação rumorejante dos beatos de Monte Santo é exemplar do modo como o sonoro é capaz de produzir, concomitante a sua impossibilidade de ser emoldurado, um espaço contiguo ao plano. Tal como Percy Shelley, poeta inglês do século XVIII, disse que “todos os poemas do passado, do presente e do futuro são episódios ou fragmentos de um único e mesmo poema escrito por todos os poetas”, a reza, em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), contém em si todas as rezas possíveis. Monte Santo se configura, deste modo, como um espaço-tempo de beatitude contínua, que faz amontoarem-se camadas de rezas que se compõem de distintas temporalidades e espacialidades. Os empilhamentos vocálicos, os cânticos, o arrastar das vogais em lamento, a presença ausente de um suplício indiscernível, mas constante, engendra um espaço ambivalente de fé e dor, martírio e redenção.

Vimos que os signos sonoros no cinema glauberiano têm na reiteração de seus elementos a constituição de uma territorialidade que faz devir na imagem um povoamento, cria um povo. O transe sonoro mobiliza os meios e constitui territórios ritmizando seus elementos infraestruturais, como vimos no cancioneiro, mas também descreve suas regiões, o sertão, o mar, as veredas. Os agenciamentos produzem também as mobilidades territoriais, descritas por forasteiros, migrantes, bandos, cangaceiros, peregrinos, vadios. É assim que os atos de palavra, como elementos sonoros, fazem ver esses movimentos, em suas interações, perturbações, inversões de perspectiva.

Figura 61 - Frames de O Leão de Sete Cabeças (1971)

Os frames acima ilustram uma cena de O Leão de Sete Cabeças (1971). Um plano aberto nos mostra os personagens colonizadores português e americano que se misturam a um aglomerado de gente, como numa feira. A gestualidade dos homens ao fundo acusa uma espécie de conflito entre homens negros e soldados brancos que se empurram e se aglomeram. Os colonizadores em primeiro plano bradam: “devemos amar a Deus” “devemos amar o próximo, mas primeiro a paz, após a fome”. Em seguida, eles convidam os locais a “ver o programa de Marlene” e repetem incessantemente a frase “Marlene toujours yes” (“Marlene sempre sim”, em um misto de Português, Francês e Inglês). Em um primeiro

momento, a frase repetida parece não produzir sentido algum, mas a cada repetição define, pelo contraste com todo o rumorejar que lhe faz fundo, um sentido possível. A frase não nos aponta a nenhum elemento compreensível e passível de ser narrativizado, mas se produz como um efeito de linguagem possível, na medida em que se confronta com o barulho da língua. A cena evidencia um embate entre um plano de organização, a frase pragmaticamente possível e o conjunto de falações que compõe o ruidoso ambiente que lhe atravessa. Há gritos, falas sobrepostas, barulhos indiscerníveis, apitos e cantorias que compõem um

continuum atravessado pela repetição periódica da frase “Marlene toujours yes”.

Figura 62 - Frames de O Leão de Sete Cabeças (1971)

Ainda em O Leão de Sete Cabeças (1970), na cena cujos frames acima se referem, os colonizadores convencem Dr. Xobu a assumir a presidência da nação congolesa. Há, em tal cena, uma espécie de impossibilidade de dizer que faz misturarem-se fragmentos de linguagem capazes produzir enunciados irredutíveis a qualquer uma das línguas envolvidas no polifônico diálogo. Um francês, um português, um americano e um congolês conversam em roda. O colonizador francês tenta explicar seu plano ao Dr. Xobu. Diz ele, em francês: "agora, Dr. Xobu, o senhor é o homem mais rico e importante da região. O mais importante representante da burguesia local. Precisamos combater o comunismo e por isso o senhor será o novo presidente”. Dr. Xobu interrompe dizendo em inglês "sorry, i don't understand, i don't

understand". O Português intrometendo-se interrompe e diz ao francês, em francês,"atention, atention!”, e completa em português, “Você não conhece bem essa gente, deixa comigo!".

Em seguida, o Português cochicha ao ouvido de Dr. Xobu alguma coisa cujo conteúdo não nos é revelado, mas que produz um efeito de sentido sobre o personagem que imediatamente responde em francês: "Oh, j’ai compris, j’ai compris!". O Acordo termina com um coro que diz "viva a integração racial, viva a liberdade!" Dr. Xobu fala francês, mas não compreende o colonizador e responde em Inglês ao francês. O português, por sua vez, responde também parte em francês, parte em português. O jogo indiscernível de linguagem produz um conjunto de interdições, pois nenhum dos personagens entende completamente a totalidade das falas

produzidas, tampouco o expectador, cuja lacuna é criada pela fala cochichada ao ouvido do Dr. Xobu.