• Nenhum resultado encontrado

1.3. As imagens e suas inscrições

1.3.2 As narrações rituais

Segundo Gilles Deleuze (2006), o cinema se constituiu como tal ao “devir narrativo”, apresentando uma história ao mesmo tempo em que repelia outras possíveis. Deste modo, criou em si uma aproximação às proposições, tendo o plano como sua unidade mínima, como um enunciado narrativo (p. 41).

A narração dita clássica decorre diretamente da composição orgânica das imagens- movimento (a montagem), ou mais especificamente, de algumas de suas componentes, a imagem-percepção, a imagem-afecção e a imagem-ação. Tais imagens se relacionam segundo leis de um esquema sensório-motor. As formas modernas de narração, como as que estamos delimitando nesta tese, decorrem das composições e dos tipos de imagem-tempo “até a legibilidade” (DELEUZE, 2006, p. 43). É assim que a narração, no cinema glauberiano, nunca é dada de forma aparente nas imagens ou como o efeito de uma estrutura que a pressupõe. Ela é uma consequência das imagens aparentes, isto é, “das imagens sensíveis nelas mesmas” (DELEUZE, 2006, p. 43).

Figura 11 - Frames de Barravento (1962)

Nos frames de Barravento (1962) observamos um tipo de descrição em transe que também se passa como simultaneidade entre uma imagem atual - já que a personagem Cota é plenamente descrita no espaço extensivo do quadro - e virtual, já que há, na descrição,

elementos que graduam um conjunto de Cotas possíveis no interior da cena. As oscilações do

travelling descrevem gradientes de corpos intervalados pelos pontos reconhecíveis, os

desenquadramentos e distorções das formas, os falseios de movimento e os falsos raccords tornam descontínua sua corrida. Atual e virtual são dois modos de existência que “reúnem-se agora num circuito em que o real e o imaginário, o atual e o virtual correm um atrás do outro, trocam de papel e tornam-se indiscerníveis” (DELEUZE, 2006, p. 166).

A cena em que Cota corre como quem prenuncia o barravento faz uma espécie de passagem da descrição à narração. Ela é, sob alguns aspectos, descrita, pois condensa em si diferentes temporalidades, sob outros narrada, pois tem - em vez de uma corrida cuja função é a chegada a algum lugar - suas ações circunscritas a um espaço extensivo entrecortado e irreconhecível, se passando nos meios fabulatórios da fictícia e idílica Xeréu. Cota não tem, deste modo, seus movimentos associados ao que Deleuze (2006) chama de um “espaço hodológico” (p. 167), “que se define por um campo de forças, das resoluções destas tensões segundo a distribuição de fins, obstáculos, meios, desvios” (p. 167). Em suma, Cota não tem seus movimentos motivados por um jogo de causalidades, tampouco seu traçado é descrito sob coordenadas de um espaço euclidiano, lugar onde as tensões se resolvem segundo os princípios de uma economia regulatória da necessidade (o maio mais fácil, o caminho mais curto). Cota corre sem direção, a câmera que a acompanha idem, não chegando a lugar algum. É assim que Deleuze (2006) diz que as narrações deste tipo implicam em um desabamento dos esquemas sensoriais motores, pois as situações as quais seus personagens são submetidos são agora ópticas e sonoras puras, e as personagens “tornadas videntes, já não podem ou não querem reagir, por ser necessário que consigam ‘ver’ o que há na situação” (p. 167). Não é possível à Cota ver além, pois está presa em uma corrida sem conexão com a história.

A visão, nas narrações rituais, não é mais um pressuposto condicional da ação, como veremos no personagem povoador Cego Vidente, é ela própria quem toma o lugar da ação, num mundo de visões que valem por si mesmas. As narrações que se extraem dessa forma são das mais variadas, fixas, exageradas, aberrantes, incessantes, “uma multiplicidade de movimentos de escalas diferentes” (DELEUZE, 2006, p. 168). O lugar privilegiado das narrações passa a ser o das anomalias, das formas doentes de narrar, cujos narradores são famintos, cegos, doentes e se tornam essenciais, ao invés de representar acidentes do movimento ordenado.

Não há mais complementaridade no espaço hodológico vivido, tampouco de um espaço euclidiano representado. O espaço deixa de se organizar segundo as leis das

coordenadas. Se Foucault (2000) disse que as analogias dos regimes de semelhança funcionavam segundo as leis do parentesco, as narrações rituais funcionam segundo a ordem das alianças. Ao ter perdido suas conexões, o espaço cessa sua organização segundo o jogo de tensões e resoluções das formas representacionais. As narrações rituais do transe são, portanto, prolongamentos das descrições em transe, suas repetições e variações que acabam por denunciar uma crise da ação, ou mesmo sua impossibilidade.

Seguindo o pensamento deleuzeano, enquanto, neste tipo de descrição, vinculada a descrições cristalinas, o espaço concreto deixa de ser hodológico, o espaço abstrato deixa de ser euclidiano, perdendo suas conexões legais e sua eticidade. A aproximação recomendada por este autor, em contraposição à descrição dos espaços euclidianos, é a da composição de

espaços riemannianos, ou seja, espacialidades que sejam como somas infinitesimais de

micro-espaçamentos que, ao se contraírem, constituem modulações nas imagens que compõem. A soma de Riemann é como um precursor do cálculo infinitesimal na matemática moderna e é responsável pela concepção do pensamento das intervalações que se avizinham infinitamente até a uma distância que tende a zero. Notemos que se trata de uma convenientia cujas relações diferenciais não são esconjuradas pela semelhança, ela vem à frente evidenciando seus avizinhamentos. É possível, para Deleuze, que um espaço seja riemanniano quando a ligação das partes não é predeterminada, podendo fazer-se de múltiplas maneiras: são espaços puramente ópticos e sonoros, desconectados, espaços vazios, amorfos.

O autor identifica alguns tipos cujos autores compõem o extenso catálogo de cineastas do cinema moderno: espaços quânticos em Robbe-Grillet, espaços probabilísticos em Resnais, cristalinos em Tarkovski. Acrescentamos a eles os espaços ritualísticos em Glauber. Se há espaços alucinatórios, doentes, delirantes quando as paisagens já não conservam senão “germes cristalinos e matérias cristalizáveis” (DELEUZE, 2006, p. 169), então o que as descrições em transe e as narrações rituais descrevem e narram são meios rituais capazes de agenciar temporalidades e espacialidades que fazem comunicar elementos díspares, em transe.

Figura 12 - Frames de Barravento (1962)

As narrações deste tipo implicam relações não localizáveis, irreconhecíveis, como as que fazem comunicarem-se, de um plano a outro, uma galinha morta e o rosto de um menino. O espaço ritual cria o meio em que se comunicam a galinha, a música rítmica, o giro das baianas, o menino batizado, todo um jogo de elemento heterogêneos que narra uma situação ótica e sonora circunscrita a este novo espaço possível, criado a fórceps pela relação entre as imagens. No espaço ritual das descrições em transe e das narrações rituais há um tempo crônico, que produz movimentos necessariamente anômalos, falsiantes, como na corrida de Cota.