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O olhar selvagem e as codificações primárias

1.2 O transe e as matérias intensivas

1.2.1 O olhar selvagem e as codificações primárias

Os perceptos são da ordem da duração, são fluxos de matéria à espera de codificação. Não é à toa que a máquina territorial primitiva, em O Anti-Édipo (2008) foi chamada de

princípio empírico, pois as sínteses conectivas que ela agencia são aquelas que ligam as

máquinas diretamente aos fluxos, aos dados puros da matéria, a máquina-olho corta um fluxo de matéria-luz. A codificação primária, os territórios, os aspectos qualitativos do signo são elementos muito caros aos empiristas. Em Hume, por exemplo, há a noção de plano de

experiência que se aproxima daquela vivida pela mente de um homem sem contato com o

mundo ou de um bebê recém-nascido, “quando a mente ainda é apenas um conjunto díspar de átomos psíquicos ligados entre si” (LAPOUJADE, 2017, p. 23). Essa problemática é levantada por Werner Herzog em O Enigma de Kaspar Hauser (1974), a história de um homem cuja experiência do mundo lhe foi tolhida por um confinamento que durou até sua vida adulta. Ao sair, Kaspar vive a experiência de um mundo sem memórias, de uma constante codificação primária.

Com uma apreensão menos estrita do que Hume, William James elabora o conceito de

experiência pura onde são assim chamados todos aqueles estados sem consciência. São como

as sensações do recém-nascido, mas podem também ser alucinações, estados de transe “em que as distinções ainda não foram feitas ou que deixaram de existir” (LAPOUJADE, 2017, p. 23). Diferentemente dos perceptos de Deleuze e Guattari (2016), a experiência pura aparece vinculada ao acontecimento, onde nada será admitido como fato senão naquilo que pode ser experienciado num tempo definido por algum ente que tem a experiência. A experiência pura, para os empiristas, é o mundo material não qualificado, ao mesmo tempo “um fluxo de vida imediato” (LAPOUJADE, 2017, p. 29).

Cabe-nos salientar, sob este aspecto, a importância dos materiais neste plano, pois, mesmo menos puro que o plano das matérias energéticas, no plano empírico, é apenas a ele que se garante o status de existente, sendo “alguma coisa da qual tudo se compõe” (LAPOUJADE, 2017, p. 28) e é justamente essa coisa que é chamada experiência pura. O puro, neste caso, quer dizer o empírico, o “dado puro” (DELEUZE, 2001), conforme

observou Deleuze, no livro sobre Hume. É por este motivo que Deleuze dispõe o homem como a transcendentalização do plano de experiência, a própria mediação, quando diz que “crer e inventar” é “o que faz o sujeito como sujeito” (DELEUZE, 2001, p. 99), porque é na experiência que o dado deixa de ser dado para ser código. Isso se dá porque é do dado que se infere algo que não está dado, portanto, algo que é como uma crença. O dado, portanto, existe em um mundo onde não aparecem ainda nem sujeito nem objeto (um fluxo).

A experiência pura, ao que nos parece, é a expressão máxima do empirismo radical, pois evidencia um conjunto de relações pré-conscientes que, no entanto, não são incognoscíveis, pois são pontos de vista observáveis a partir de experiências sempre fugidias, “há sempre uma máquina que corta um fluxo” (DELEUZE, GUATTARI, 2008, p. 45).

James faz uso de um tipo de experiência pura que se aproxima sobremaneira da bricolagem levi-straussiana, chamada por ele de monismo vago. Trata-se de uma experiência sem ego, onde descreve um plano percorrido por relações. É como um campo de experiências cruzadas, compostas pelas relações que se produzem entre materiais ainda não formalizados, relações qualitativas. Esse conjunto de relações se aproxima do exemplo que trouxemos de Glauber, citando Di em vultos da própria obra, na câmera que desfaz a solidez dos quadros e remonta um Di Cavalcanti ao mesmo tempo anterior (enquanto matéria de expressão luminosa) e posterior (já póstumo, como corpo morto). Neste ponto, as unidades experienciais são os materiais que trabalham como um conjunto fragmentário de relações, pedaços de experiências que são como “um tecido composto de retalhos” (LAPOUJADE, 2017, p. 28).

Sob este aspecto, William James se aproxima também de Bergson ao dizer que o plano de experiência deve ser visto como um meio translúcido do início ao fim. Em Matéria

e Memória (1975), Bergson descreve um mundo composto exclusivamente por um fluxo

contínuo de imagens que se refratam umas nas outras, não sendo jamais imagens de coisas, pois as coisas são também imagens. A matéria, o corpo, o cérebro, tudo é imagem. Há, neste aspecto, uma convergência importante, pois estas imagens não se destinam a alguém, são imagens em si, o que para nós são imagens-signos qualitativas.

O acontecimento surge, evidentemente, da mistura de dois, mas a experiência acontece um instante anterior à chegada tanto do sujeito quanto do objeto. Assim, “toda experiência é pura, mas apenas na sua ponta neutra do presente, enquanto ainda não foi possível suscitar qualquer traço de memória, fundação, representação.

Figura 07 - Frames de Idade da Terra (1980)

Em Idade da Terra (1980), há um plano-sequência em que o personagem Cristo

Guerrilheiro corre em direção à água como num impulso de libertação de suas amarras

civilizatórias. A câmera se fecha em um circuito que tem como propósito uma espécie de limpeza da percepção, o alcance de uma experiência pura. A imagem, ao longo do plano- sequência, nunca é completamente estabelecida em seus contornos acabados, é sempre uma entre-imagem que se produz enquanto se desfaz.

Vemos nela uma superexposição produtora de uma saturação na luminosidade do plano, desfigurando suas formas materiais, produzindo uma imagem que pulsa, alterna seu ritmo, balança como quem sente ofegante uma respiração, e encerra seu ciclo em um retorno ao qualitativo, um vulto pictórico. David Lapoujade (2017) diz que há uma distinção entre o material e a matéria, pois o material é animado por forças e dinamismos que fazem dele uma realidade viva, “a madeira, a rocha, não são matérias inertes, são percorridas de dobras, de nervuras, de nós, que constituem seu movimento. O material é a matéria que se torna espírito” (LAPOUJADE, 2017, p. 54). É deste modo que essas imagens podem nos indicar um novo vetor que aponta para um modo de perceber a matéria do mundo através dos materiais já nele encarnados. A luz, o grão da película, a saturação das cores, o blur do fora de foco, são esforços que consistem em fazer com que o material exprima sua potencialidade “mesmo, e principalmente, que ele conduza para conexões inesperadas” (LAPOUJADE, 2017, p. 54) ou sínteses conectivas. Tal como na cena escolhida, o mais simples movimento da mão que segura uma câmera em alta abertura de exposição foto-sensível gera, através da imprevisibilidade do aparelho, uma infinidade de modificações nos componentes da imagem. Jean-Marie Schaeffer (1996), ao falar sobre as possibilidades da imagem precária, aborda justamente a questão da imprevisibilidade, chamada por ele de acaso. Para o autor, a precariedade da imagem ‘‘está também ligada à contingência, ao caráter arriscado da gênese da imagem’’ (SCHAFFER, 1996, p. 143). Este caráter arriscado é o que também promove a

experimentação, pois insere ao ato fílmico o imponderável, lançando ao acaso a constituição de um signo que advém da combinação contingencial de um sistema de forças não sígnicas, como os movimentos do corpo do cinegrafista, os micro-processamentos da máquina, os fluxos e variações de intensidade da luminosidade, a refração dos feixes de luz na água e no ar, o material translúcido da roupa do Guerrilheiro, como uma bricolagem. Tal como dizem Deleuze e Guattari (2008), em O Anti-Édipo, acerca de Proust, “É claro que o narrador nada vê, nada ouve, é um corpo sem órgãos, ou melhor, é como uma aranha concentrada, fixada na sua teia: nada observa, mas responde aos menores signos, à mínima vibração, saltando sobre sua presa. (DELEUZE, GUATTARI, 2008, p. 96).

Se no nível das codificações primárias o que vem ao primeiro plano são os materiais, há, para além deles, todo um conjunto de imagens em transe que põe em crise codificações de segunda ordem: são como registros que deixam ver, em suas estabilizações temporárias, partes de sua feitura, ou fazem atravessarem-se temporalidades distintas, “há sempre o

produzir no produzido”...