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4 CONTEXTO DE INFLUÊNCIA

4.2 AS DESIGUALDADES PROVOCADAS PELA POLÍTICA DOS CICLOS DE

Através da análise dos documentos produzidos pela SMED e pelas falas de professores e coordenadores pedagógicos da Rede, obtidos através da realização de entrevistas e aplicação de questionários, podemos constatar que uma das desigualdades provocadas pela política dos ciclos é a não aprendizagem por boa parte do alunado. Dentro do ciclo, o aluno que não adquire as habilidades mínimas, acaba repetindo, mais de uma vez, o último ano de cada ciclo (3º ano ou 5º ano), gerando, assim, a distorção idade/ano.

Segundo Prado (2000), os sistemas de ensino vêm adotando diferentes estratégias político-pedagógicas com objetivo de corrigir o fluxo escolar: promoção automática, o regime de ciclos e as classes de aceleração da aprendizagem. No caso de Salvador, duas destas medidas estão sendo utilizadas, pois a forma como a escola ciclada vem sendo praticada não foi capaz de corrigir os fluxos sozinha.

Podemos relacionar a necessidade dessas estratégias a uma oferta de má qualidade da educação, característica dos países ditos periféricos, conforme discussão apresentada no capítulo de Fundamentação Teórica. É neste contexto que

os organismos internacionais encontram espaço para direcionar os rumos das políticas educacionais, incutindo novas formas de gerir os sistemas de ensino.

No Brasil, a maioria dos programas de correção de fluxo começou a ser implantados em 1995-1996 (SETUBAL, 2000), através de iniciativa do MEC (em parceria com o Instituto Ayrton Senna), na tentativa de reverter o quadro educacional desanimador.

[...] em 1995 o Ministério da Educação (MEC) estabeleceu um programa nacional para corrigir o fluxo escolar de alunos de escolas públicas. O programa, denominado Aceleração da Aprendizagem, foi concebido como uma experiência educacional alternativa para aqueles alunos que apresentassem atraso escolar de dois ou mais anos. Ele propunha oferecer- lhes uma oportunidade de adquirir experiências de aprendizagem significativas e superar a discrepância da idade-série em sua escolaridade. O ministério estabeleceu que suas políticas deveriam servir, por meio da correção do seu fluxo escolar, não somente para o ajuste das distorções idade-série, mas também para superar a injustiça social à qual esses alunos eram submetidos, ao reconhecer que a grande maioria daqueles em situação de fracasso escolar era oriunda de classes socioeconômicas baixas. Verificou-se ainda que as escolas, na prática, ao invés de ajudar esses alunos a superar suas desvantagens socioeconômicas, estavam usando esta condição para justificar suas inabilidades em lidar com perfis diferenciados, reforçando assim uma condição de injustiça social mediante uma sistemática exclusão daqueles alunos da trajetória escolar regular (LUCK; PARENTE, 2007, p. 7).

Salvador segue esta tendência, pois desde a época do CEB, a SMED adota programas de regularização do fluxo escolar, conforme pode ser observado nas resoluções nº 001/1998 e nº 005/2002. Isto demonstra que, apesar da adoção da escolaridade em ciclos para combater o fracasso escolar, a política parece não funcionar muito bem, pois os dados de repetência e reprovação continuam sendo um problema na Rede.

O Programa de Aceleração de Aprendizagem, no CEB, 3ª e 4ª séries do Ensino Fundamental da Rede Municipal, iniciou em 1998, organizado da seguinte forma:

a) Classes de Aceleração da Aprendizagem I – destinadas a alunos a partir de 09 (nove) anos de idade, matriculados no Ciclo de Educação Básica31 – CEB. b) Classes de Aceleração da Aprendizagem II – destinadas a alunos a partir de 10 (dez) anos de idade, matriculados na 3ª ou 4ª séries (SALVADOR, 1998, p. 1, grifos originais).

Nesse Programa, os alunos participantes das Classes de Aceleração da Aprendizagem I que adquiriam as competências básicas poderiam ser promovidos

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Acreditamos que isso tenha sido um erro de digitação, uma vez que o significado correto para o CEB era Ciclo de Estudos Básicos.

para a 4ª série do Ensino Fundamental. Já os alunos das Classes de Aceleração II que alcançassem conhecimentos e as competências básicas, eram promovidos para a 5ª série do Ensino Fundamental.

A resolução CME nº 005/2002 alterou o segundo artigo da resolução CME nº 001/98, passando a vigorar, na época, com a seguinte redação:

Artigo 2º- As classes de Aceleração da Aprendizagem a que se refere o artigo anterior serão organizadas de acordo com as seguintes normas: a) Classes de Aceleração I – destinadas a alunos a partir de 09 (nove) anos de idade, matriculados no 1º ano de escolarização do Ciclo de Estudos Básicos - CEB e a partir de 10 anos de idade, matriculados no 2º ano de escolarização do Ciclo de Estudos Básicos - CEB. b) Classes de Aceleração da Aprendizagem II – destinadas a alunos a partir de 11 anos de idade, matriculados na 3ª série do ensino fundamental e a partir de 12 anos (doze)

anos de idade, matriculados na 4ª série do ensino fundamental

(SALVADOR, 2002, p. 1, grifos originais).

Nesse documento já percebemos uma preocupação com a idade de forma mais específica, quando há explicitação da referência ao aluno estar matriculado e cursando na idade certa, o que, anos depois, vai se tornar evidente nas políticas de âmbito nacional, em busca da alfabetização na idade considerada correta (Programa Nacional da Alfabetização na Idade Certa – PNAIC). Há, também, um aumento na faixa etária dos alunos participantes do programa, o que sugere que o problema da distorção idade/ano se ampliou.

Em 2007, quando a Rede ampliou os ciclos para todos os Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o Programa de Aceleração de Aprendizagem permaneceu nos seus moldes anteriores.

Depois de uma experiência de mais de 10 (dez) anos com esse formato de regularização de fluxo escolar, em 2013 é publicado o decreto nº 23.810 que cria no âmbito da SMED a Operação Salvador Alfabetiza, “cuja finalidade era preparar a rede municipal para a construção de um sistema estruturado de ensino, capaz de elevar o nível de desempenho acadêmico dos alunos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental de Nove Anos (1º ao 5º ano) no período de abril a dezembro de 2013” (SALVADOR, 2013, p. 1).

Essa ação solicitava que cada escola escolhesse qual material didático iria utilizar em sua prática pedagógica, em virtude da rejeição que houve por parte dos profissionais da Rede em aceitar o material adotado pelo Órgão Central chamado Alfa e Beto. Essa recusa ocorreu principalmente pelo fato de o grupo não aceitar a metodologia adotada pelo programa, e por também já estar participando de

formações continuadas promovidas pelo PNAIC (Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa), em parceria com a UFBA e a UNEB.

Em 2014 foi publicado o decreto nº 24.736, que prorrogou até dezembro do mesmo ano a Operação Salvador Alfabetiza.

Nesse sentido, nos anos de 2013 e 2014, a Rede Municipal de Ensino da cidade do Salvador conviveu com unidades escolares que adotaram orientações pedagógicas já utilizadas, como os livros do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e ações do PNAIC, e outras escolas que utilizaram o Programa Alfa e Beto. Em 2015, com o Programa Combinado32, a Rede firmou pareceria com o

Instituto Ayrton Senna – IAS para executar ações, cujo objetivo era regularizar o fluxo escolar e até mesmo evitar a distorção idade/ano, impulsionados pelos combinados 17 e 18, conforme vemos:

Combinado 17 - Implementar política de regularização do fluxo escolar com

o objetivo de reduzir a distorção idade-série gradativamente. Combinado 18

- Implantar projeto de Apoio à aprendizagem para os alunos do 3º e 5º anos,

bem como do 6º ao 9º, com foco na redução das reprovações (SALVADOR, 2016).

A estratégia fruto dessa parceria é chamada de Idade Certa – Programa de Regularização de Fluxo, e funcionou em 2015, como ação piloto. O programa teve como objetivo alfabetizar e corrigir o fluxo dos alunos com distorção idade-ano matriculados do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Ensino. Há possibilidade de o aluno avançar em mais de um ano e, assim, regularizar sua vida escolar.

O programa funciona em duas modalidades:

1. Se Liga – Objetivo de alfabetizar alunos que não sabiam ler e que estivessem com distorção idade-ano, matriculados do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental.

2. Acelera – Destinado aos alunos alfabetizados dos 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental para que conseguissem retornar ao fluxo escolar. O material didático do Se Liga consiste em quatro livros para o professor: Português, Matemática, Meio Ambiente e o Livro do Professor. Os alunos recebiam dois livros: Língua Portuguesa e Matemática. O material didático do Acelera conta

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com um conjunto de quatro livros subdivididos por unidades temáticas consideradas significativas para o aluno.

Tais ações desenvolvidas pela SMED tentaram combater o que Mainardes (2007, p. 160-161) denomina de exclusão interna

[...] no qual alunos com mais dificuldades permaneciam isolados, sem receber o suporte adequado para que a aprendizagem acontecesse. Ao gastar tempo copiando do quadro (ou tentando copiar) atividades não- familiares ou tentando realizar as atividades do livro didático ou acompanhar as explanações do professor, a experiência desses alunos parecia ser frustrante e improdutiva [...].

Consideramos que essa exclusão interna acontece, provavelmente, pelo fato de professores não adotarem práticas pedagógicas baseadas na Pedagogia Diferenciada, ou seja, pautarem-se em práticas tradicionais/ homogeneizadoras. Apesar de uma classe ser organizada pelo critério da idade, como acontece com os Ciclos de Aprendizagem, alunos da mesma idade possuem níveis diferenciados de aprendizagem, e isso nem sempre é levado em consideração nos planejamentos pedagógicos.

Nessa conjuntura, enquanto alguns alunos avançam em suas aprendizagens, outros vão ficando para trás, desmotivando-se e, muitas vezes, apresentando comportamentos considerados indisciplinados, por não conseguirem acompanhar o ritmo de aula da turma. Por isso, sentem-se excluídos do processo, embora estejam incluídos teoricamente naquele contexto.

Segundo Martins (2015), esse processo de exclusão interna pode ser chamado de inclusão frágil, instável e marginal, pois na, visão desse autor, não existe exclusão, ou seja, só os mortos são excluídos. Nesse sentido, “O que vocês estão chamando de exclusão é, na verdade, o contrário da exclusão. Vocês chamam de exclusão aquilo que constitui o conjunto das dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária, instável e marginal” (MARTINS, 2015, p.26).

Na visão desse autor, os alunos que não acompanham o ritmo da aula estão incluídos, mas de forma frágil, instável e marginal, pois a eles não é assegurado o direito de aprendizagem de forma plena, por não terem oportunidade de progredir, apesar das suas dificuldades e de seus tempos de aprender diferentes dos demais. Assim, ficam à margem da turma, pois suas potencialidades não são exploradas como poderiam.

O processo de inclusão com essas características é um dos reflexos da política neoliberal vigente no nosso país, que se configuram como políticas que não possibilitam uma real inserção de todos os indivíduos, de forma igualitária.

Vamos imaginar uma classe de 1º ano de escolaridade: se oriundos da classe trabalhadora, muitos não frequentaram a Educação Infantil. Assim, aos 6 (seis) anos de idade, o 1º ano é o primeiro período de estudo da criança. Logo, a maioria não sabe ler e nem escrever. No decorrer do ano, uns avançarão no processo de leitura e escrita mais rápido que outros, e cada vez mais a turma vai ficando heterogênea. Alguns alunos podem ter frequentado classes de Educação Infantil, e estes terão uma facilidade maior nesse processo, pois já foram inseridos em contextos de letramento.

Independente do formato do currículo, quando organizada em ciclos, a necessidade é maior por um trabalho pedagógico pautado na Pedagogia Diferenciada.

Se o objetivo é dar a todos a chance de aprender, quaisquer que sejam as suas origens sociais e seus recursos culturais, então uma pedagogia diferenciada é uma pedagogia racional. Diferenciar é, pois, lutar para que as desigualdades diante da escola atenuem-se e, simultaneamente, para quem o nível do ensino se eleve. As pedagogias diferenciadas inspiram-se, em geral, em uma revolta contra o fracasso escolar e contra as desigualdades. Assim, em uma perspectiva militante, parece urgente agir, propor dispositivos e instrumentos (PERRENOUD, 1999, p. 16).

Quando a escola não adota a Pedagogia Diferenciada, precisa criar outros mecanismos para driblar o problema da não aprendizagem em classes pertencentes ao regime ciclado. Uma das estratégias criadas pela SMED foi a implantação de projetos de apoio à aprendizagem em classes de 3º e 5º anos.

Intitulada de Projeto de Apoio à Aprendizagem – PAAP, a SMED recrutou estagiários cursando Pedagogia para fazer um trabalho com foco na alfabetização dos alunos que são identificados como não alfabetizados. Esses alunos são retirados do contexto da sala regular e reunidos em grupos menores para a realização do trabalho.

Consideramos que esse formato não contribui de forma adequada para amenizar o problema, pois os alunos com maiores dificuldades são retirados da sala para serem acompanhados por estagiários que não concluíram, ainda, seu processo formativo inicial. Se os professores com maior experiência não estão conseguindo alfabetizar todos os alunos, questionamos por que razão um estagiário conseguirá realizar essa proeza! A iniciativa é válida, porém, o formato ainda não está a serviço

da real aprendizagem dos alunos. Ademais, os demais conteúdos vivenciados pela turma não serão experimentados pelos alunos nessa condição, aprofundando ainda mais as diferenças – e a exclusão.

Apesar de iniciativas dessa natureza, acreditamos que o problema não precisa aparecer para que seja combatido. A escola e a Rede precisam adotar medidas rotineiras para que a não aprendizagem não afete o fluxo escolar dos seus alunos.

Do ponto de vista pedagógico, também fica evidente que, se programas de aceleração são fundamentais para romper o ciclo da repetência, eles por si sós não tem o alcance de reverter o quadro do fracasso, em direção a um projeto democrático de sistema educacional, se não forem acompanhadas de outras políticas que busquem enfocar não apenas a avaliação e o descongestionamento do fluxo escolar, mas o repensar da disseriação em termos de continuidade de aprendizagem, de conteúdos, habilidades, valores e competências que a sociedade considera relevantes que os jovens detenham ao final dos ciclos de ensino [...] (SETUBAL, 2000, p. 17).

Concordamos com afirmação da autora acima, pois há um problema permanente no sistema educacional brasileiro, que medidas de cunho paliativo irão apenas amenizar, mas não solucionar a questão da qualidade da educação. Nesse sentido, faz-se necessária a realização dessas ações, mas precisamos focar na raiz do problema, e não apenas nas suas consequências.

Os dados apresentados neste capítulo permitem compreender que o Contexto de Influência apresenta elementos necessários para visualizarmos o percurso de uma política educacional, identificando como ela foi construída a partir de contextos globais, nacionais e locais, bem como identificar as desigualdades provocadas por ela. Isto permite analisar se os problemas educacionais estão sendo combatidos com a adoção de determinadas escolhas ou se estamos gerando outros problemas similares.

No caso de Salvador, atualmente há duas políticas educacionais (Escola em Ciclos e Programa de Regularização de Fluxo) sendo adotadas para combater o mesmo problema: distorção idade/ano. O sistema ciclado não contribuiu para diminuir as taxas de distorção, e os programas de regularização de fluxo apenas amenizam essa situação, não auxiliando numa transformação consistente em longo prazo.

Há o risco de, em um futuro bem próximo, a Rede necessitar implantar mais uma política para melhorar os resultados educacionais, diminuindo as distorções idade/ciclo dos alunos, na tentativa de garantir uma aprendizagem mínima para seus

educandos. Em vez disso, recomendamos que a Rede possa avaliar as três décadas do sistema ciclado, identificando equívocos e fazendo os ajustes necessários para que a política possa ser traduzida de forma mais coerente, e reverter em aprendizagem para os alunos.

Esta pesquisa pode ser utilizada como subsídio inicial para reformular as práticas pedagógicas adotadas pelas Unidades de Ensino, revendo os processos de ensino e de aprendizagem, bem como os sistemas de avaliação da aprendizagem utilizados pela Rede, na busca de uma aproximação com os fundamentos teóricos da uma escola mais democrática e inclusiva.