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Capítulo II: TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E

2.2. As diferentes tendências presentes na Igreja Católica

Antonio Gramsci, como tivemos oportunidade de demonstrar anteriormente, afirma que a religião possui múltiplas formas de recepção de sua mensagem, podendo haver uma religião dos dominantes, uma religião dos oprimidos, etc.. Essa abordagem gramsciana tornou-se referência para se entender o funcionamento das diferentes posturas em relação à ação religiosa, as quais Gramsci denominou tendências23. Situar a Teologia da Libertação dentro da instituição da Igreja

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Antonio Gramsci identificou três grandes tendências no catolicismo italiano: os integristas, correspondendo ao setor mais conservador da sociedade; os jesuítas, uma corrente centrista que buscava por meio de uma proposta subjetiva, manter sua influência sob os diversos setores da sociedade; e os modernistas, os quais divergindo em

Católica é justamente identificar a que tendência ela pertence, bem como analisar as tendências divergentes. Para tanto, iremos lançar mão da concepção teológica de Leonardo Boff e as análises sociológicas de Scott Mainwaring e Michel Löwy.

Leonardo Boff parte do princípio que há quatro práticas eclesiais sobressalentes verificadas na América Latina. Para esse autor, cada uma representa não apenas uma proposta, mas também um desafio para se entender a posição da Igreja na realidade do continente latino- americano.

A primeira prática é a da Igreja como totalidade. Nesta, temos a Igreja completamente voltada para dentro, sendo ela a portadora exclusiva da salvação dos homens e o Papa, os bispos e a estrutura hierárquica da Igreja sendo os pilares da compreensão da mensagem religiosa. Esse é um modelo que se afasta do mundo, o qual é visto como algo que a Igreja deve ter o mínimo de contato possível. Boff critica essa prática dizendo que nela a Igreja “mostra-se insensível aos problemas humanos que ocorrem fora dos seus limites, no mundo e na sociedade. O político constitui a dimensão do sujo, que deve ser evitado o mais possível” (BOFF, 1994, p.22).

A segunda prática é a da Igreja da pregação. Aqui temos um “pacto” entre a Igreja e o Estado, em uma relação de ajuda mútua em que a Igreja valoriza sua hierarquia. Assim, os religiosos notando a necessidade de seus fiéis querem servir ao povo, mas eles reconhecem que não possuem os meios para tal tarefa, restando a eles se aproximarem daqueles que têm as condições para isso, ou seja, as classes dominantes. É um sistema fortemente fechado, que recusa qualquer possibilidade de inovação, pois “a relação se realiza com os poderes estabelecidos e não com os movimentos históricos emergentes [...]” (BOFF, 1981, p.19).

O terceiro modelo é o da Igreja moderna. Nesta concepção a Igreja está presente no mundo e buscando ela adaptar-se à realidade que está em curso. A Igreja não se aproxima apenas do Estado, mas das outras esferas de poder da sociedade, como a da ciência, economia e outros. Esse modelo tem o mérito de ter deixado o peso do tradicionalismo para trás, conseguindo estar mais próximo do homem moderno e, assim, minimizar a sua rejeição como obstáculo como progresso da sociedade. Contudo, essa prática eclesial possui um caráter reformista, ou seja, busca apenas sugerir e propor alternativas para a mudança social, ao invés de participar efetivamente desse processo. Consequentemente, a estrutura social não será modificada visto que

intensidade, sendo às vezes reformista, às vezes radicais, situavam-se à esquerda politicamente. A partir da definição de conceitos, Mainwaring e Löwy vão elaborar as tendências do catolicismo brasileiro.

nenhum compromisso é assumido, pois “os ricos serão convocados a ajudarem na causa dos pobres, mas sem precisar, necessariamente, mudar de lugar social e de prática burguesa” (BOFF, 1981, p. 23).

No último modelo, temos o da Igreja a partir dos pobres. Aqui os pobres e oprimidos são estimulados a promoverem a sua própria libertação, não mais esperando e recebendo práticas assistencialistas. A Igreja é feita no povo, por meio das discussões nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), nas quais os seus problemas e ações são discutidas coletivamente. A hierarquia nesse modelo não comanda os fiéis, mas os auxiliam em sua luta havendo uma relação dialógica entre eles. Foi esse o modelo de Igreja assumida pela Teologia da Libertação, da qual Leonardo Boff é um dos principais teóricos. Mais à frente iremos aprofundar os seus principais pontos. Essa experiência de Igreja foi vista em ação a partir das ações da Prelazia de São Félix do Araguaia. Sob o comando de Pedro Casaldáliga, seus religiosos inseriram-se na realidade de seus fiéis, escutando os seus problemas e trazendo à Igreja para mais perto de seu povo.

Importante também para a compreensão das diferentes tendências presentes na Igreja Católica são os estudos do estadunidense Scott Mainwaring. Esse autor fez uma extensa análise da história da Igreja Católica brasileira para entender como essa instituição reagiu às diferentes transformações da política brasileira ao longo do século XX. Ao longo desse processo, Mainwaring identificou diferentes correntes dentro da Igreja, cada qual com uma proposta que vai desde uma postura ultra conservadora a outra bem radical.

O primeiro grupo é o dos tradicionalistas. Sua principal característica reside no combate à secularização e a ênfase no fortalecimento da Igreja na sociedade. Percebe-se uma postura bastante conservadora, buscando apenas o fortalecimento institucional da Igreja, com a sociedade sendo apenas uma ferramenta para atingir seus interesses. Mainwaring vê que esse modelo de Igreja “deveria operar como um grupo de interesse, usando o Estado para garantir tantos privilégios quanto fosse possível, como forma de tornar católica a sociedade” (MAINWARING, 2004, p. 57).

Já a tendência dos modernizadores conservadores tinha como fito ajustar os ideais da Igreja Católica com os do mundo moderno. Compartilhava as mesmas preocupações dos tradicionalistas, como a secularização e o comunismo, com a diferença que não retraía em relação a esses temas, mas, em contrapartida, suas propostas tinham forte caráter conservador. Embora esse grupo possuísse um forte caráter conservador, ele representava um avanço para as posições

da Igreja Católica, visto que “ainda eram hierárquicos nas práticas da Igreja, mas se preocupavam mais em desenvolver organizações leigas e meios eficazes de atingir o povo” (idem).

O núcleo dos reformistas, por sua vez, enfatizava também a missão social da Igreja. Essa tendência avançava em relação aos modernizadores conservadores pelo fato de que, os primeiros, diferentemente dos segundos, defendiam uma participação aberta na vida política. Outra característica dos reformistas é que eles não constituíam um grupo homogêneo; de um lado estavam os mais tradicionalistas, os quais defendiam uma concepção de fé mais conservadora e reservada e em outro extremo localizavam-se os mais radicais, que defendiam uma atitude mais efetiva e direta em relação à mudança social. Essa divisão e a falta de unidade desse grupo fizeram com que suas propostas não tivessem grande impacto na sociedade, visto que “os reformistas continuavam apostando na harmonia entre as classes” (MAINWARING, 2004, p. 76). Finalmente, havia a tendência da Igreja popular. Como os reformistas, seus membros defendiam que a igreja deveria se preocupar com a justiça social e a comunidade, mas avançava pelo fato de pregar que seus participantes se envolvessem na mudança social. Assim é que a Igreja não estaria acima do mundo, mas atuando nele com o objetivo de atuar ao lado dos desfavorecidos. Portanto: “a Igreja deve favorecer aqueles que sofrem, aqueles que não conseguem ganhar o seu pão de cada dia, nem mesmo com o seu abundante suor do trabalho, aqueles que parecem estar condenados à estagnação, vivendo em condições subumanas” (MAINWARING, 1985, p. 118). Scott Mainwaring teve o mérito de em suas formulações captar as transformações que a Igreja Católica brasileira estava sofrendo, identificando o contexto no qual a Teologia da Libertação pode emergir como força transformadora.

Por fim, com Michael Löwy temos uma distinção das tendências atuais do catolicismo brasileiro. Em seu livro A Guerra dos Deuses (2000, p.66), esse autor nos oferece um panorama das divisões dos grupos de influência da Igreja Católica, dividindo-se eles em quatro grupos24:

Os tradicionalistas, com uma postura ultrarreacionária, quase semifacista, simbolizada pelo movimento Tradição, Família e Propriedade; a ala dos modernizadores conservadores, os quais são hostis aos movimentos mais radicais − como a Teologia da Libertação – e são

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Em recente trabalho (Religião e Juventude: os novos carismáticos, 2011, Idéias & Letras / FAPESP), Flávio Sofiati, partindo das tendências definidas por Michel Löwy, exemplificou essas quatro correntes, assim definidas: Tradicionalistas: compostas pelos movimentos Opus Dei, Tradição Família e Propriedade e Arautos do Evangelho; 2) Modernizadores conservadores: setor no qual se insere o Movimento de Renovação Carismática Católica; 3)Reformistas: no qual predominam as congregações que trabalham diretamente com educação como, por exemplo, os lassalistas, redentoristas e maristas; 4) Radicais: composta pelos setores ligados à Teologia da Libertação como as CEB´s, Pastorais Sociais e Pastorais da Juventude.

associados às classes dominantes; o grupo dos reformistas, que dispõe de certa autonomia para ação e está disposta a atender algumas das demandas sociais dos pobres; por fim, há a tendência dos radicais, solidários às ideias da Teologia da Libertação e comprometidos e envolvidos com os movimentos populares e suas reivindicações.

Ao utilizarmos o conceito de tendências verificadas dentro da Igreja Católica, percebemos que os autores citados, de certa forma, chegam a um consenso sobre o pano de fundo das relações da Igreja Católica com a sociedade. Assim, como teorizava Gramsci, a Igreja Católica reflete dentro de si as contradições existentes no secular, podendo se comportar ora a favor do status

quo, ora agindo em favor de mudanças substanciais na sociedade. Diante dessa situação, nos resta

agora focar na concepção de mundo proposta pela Teologia da Libertação, bem como seus desafios internos e externos.