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Capítulo II: TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E

2.3. A Teologia da Libertação: os aspectos fundamentais para a sua compreensão

2.3.4. O significado da figura de Jesus Cristo na Teologia da Libertação

A experiência religiosa a partir da Teologia da Libertação tem como uma de suas características salientes a reflexão de fé a partir de uma realidade social marcada pela opressão e injustiça contra a parcela mais pobre do continente latino-americano. Nesse sentido, a leitura que é feita da Bíblia privilegia as passagens nas quais a vida de Cristo, suas ações, sua luta, servem de exemplo para a luta libertadora dos cristãos da América Latina.

Dentro da Teologia da Libertação a hermenêutica que é feita da Bíblia, segundo Clodovis e Leonardo Boff (2001), privilegia alguns livros específicos, visto que sua mensagem espiritual é mais condizente com a realidade do continente: os profetas, devido à defesa do Deus libertador; os Evangelhos pela centralidade da pessoa divina de Jesus, com sua mensagem do Reino e sua prática libertadora; os Atos dos Apóstolos por retratarem uma Comunidade cristã liberta e libertadora; o Apocalipse por descrever em termos coletivos e simbólicos a luta do Povo de Deus; e o Êxodo, pois nele é desenvolvida uma ação político-religiosa de uma massa de escravos que ser torna Povo de Deus. Este último, aliás, tem grande significado simbólico, pois contém uma temática religiosa de subversão à opressão que inspira a ação pastoral na América Latina, sendo o êxodo uma maneira de existir. Assim, o evento do Êxodo, não é apenas um deslocamento geográfico, mas uma reação à opressão, que Leonardo Boff define:

Esta temática de opressão êxodo nos oferece uma categoria pela qual podemos reler nosso passado continental e nacional e redescobrir nos muitos heróis a presença do vigor libertador do êxodo, encoberto pelo sistema vigente que domestica os libertadores, mitificando-os, iconizando-os e arrancando-os assim da história conflitante na qual viveram e na qual se fizeram heróis (BOFF, 1998, p 85).

Assim é que nessa hermenêutica da Bíblia buscaram-se elementos que refletissem a realidade dos cristãos oprimidos na América Latina. Assim é que a motivação político-social da Teologia da Libertação tem como fundamento mais importante as passagens bíblicas, como no livro do Êxodo, no qual o povo oprimido faz uma longa jornada rumo à terra prometida, como Gustavo Gutiérrez sublinha:

Em todo o processo, o fato religioso não surge como algo à parte; situa-se no contexto, ou, mais exatamente, é o sentido profundo de toda a narração. É a raiz de toda a situação; ali se decide, em última análise, o deslocamento introduzido pelo pecado, pela justiça, pela opressão e pela libertação. (GUTIÉRREZ, 2000, p. 210).

Verifica-se a confluência entre os fatores religiosos e políticos, os quais não agem isoladamente, pois para que palavra divina chegue ao povo oprimido, se faz necessária uma ação contra os opressores. E, nessa árdua tarefa contra os poderosos, a religião fornece a energia espiritual para os que lutam para a justiça social na terra. E é nesse contexto que a vida de Jesus Cristo também deve ser observada, pois Ele em um cenário de dominação da Palestina por parte de romanos agiu de forma transgressora em nome da liberdade de seu povo. É por isso que dentro do postulado da Teologia da Libertação a “hermenêutica da libertação enfatiza (não exclusiviza) o contexto social de opressão em que viveu Jesus e o contexto marcadamente político de sua morte na cruz” (C.BOFF; L. BOFF, 2001, p. 60).

Surge então uma nova interpretação da vida de Jesus Cristo na qual o seu lado humano – sem que haja prejuízo espiritual – adquire grande relevância. Há a valorização do sentimento de fraternidade, justiça e comunhão com Deus; a ação profética de Jesus, o qual está inserido no mundo, anima os seus seguidores para um futuro melhor. O resultado é uma Cristologia em que a hermenêutica trata dos aspectos teológicos de Cristo, mas que também dá ênfase à análise sócio- analítica. Leonardo Boff em sua obra Jesus Cristo Libertador faz um resumo sobre o que seria essa nova Cristologia, afirmando que ela:

Seja acompanhada de uma exigente exegese crítica, uma reinterpretação dos dogmas cristológicos fundamentais e explicitação das dimensões libertadoras presentes em todas as articulações da fé cristã. Sensibilizada pela situação humilhante a partir da própria fé e procura pensá-la e vivê-la de tal maneira que signifique um apoio à tarefa de libertação econômica e política dos humilhados e ofendido na sociedade (BOFF, 2009, p. 20).

Jesus Cristo foi de se chocou com poderosos de seu tempo ao denunciar o estado de justiça e de promover a insubordinação à ordem estabelecida. Jesus foi um revolucionário, afirmam os teólogos da libertação. Isso porque:

Anda com gente proibida, aceita em sua companhia pessoas duvidosas como dois ou três guerrilheiros (Simão, o Cananeu, Judas Iscariotes, Pedro Barjonas), dá uma reviravolta no quadro social e religioso dizendo que os últimos serão os primeiros [...], os humildes

serão mestres [...] e que os fiscais de impostos e as prostitutas entrarão mais facilmente no Reino dos céus que os piedosos escribas e fariseus (BOFF, 2009, p.68).

Enfrentando os poderosos de sua época, visto como pecadores, Jesus instituiu uma fraternidade entre aqueles que o seguiam e clamavam por justiça. Desmascarou e revelou quem era os opressores; ganhou adversários devido à grande influência e carisma que possuía junto ao povo. Nada, contudo, seria capaz de deter Sua missão na terra que se caracterizava, entre outras coisas, por “frontal oposição aos ricos e poderosos e uma radical opção pelos pobres: a atitude deles decide da validade de todo o comportamento religioso; para eles, antes de tudo, é que veio o Filho do homem” (GUTIÉRREZ, 2000, pp. 290-1). É pertinente constatar na pesquisa qual o grau de militância política dos simpatizantes à Teologia da Libertação atualmente. Jesus Cristo identificou e combateu os causadores da injustiça e opressão em seu tempo e os teólogos da TL durante as décadas de 1960 e 70 responsabilizaram o sistema capitalista e o os regimes militares como causadores do quadro de pobreza na América Latina. Em uma sociedade com vários atores políticos como a atual, será revelador entender como é o envolvimento dos religiosos da Teologia da Libertação com as questões mais delicadas da atualidade.

E o que pregou Jesus Cristo na hermenêutica dos teólogos da TL? Ele anunciou a todos que o Reino de Deus estava próximo e sinalizou assim a esperança para a superação de todo o mal e pecado que assolava as pessoas. O Reino seria também a manifestação do poder de Deus e sua capacidade de erradicar o mal do mundo, mas para ter acesso a esse reino o povo deveria crer em sua palavra. Essa mensagem profética é de grande importância para o cristianismo e também é um dos pilares para a construção de um novo sentido o qual a Teologia da Libertação buscava. Esse significado pode ser medido pelas palavras de Leonardo Boff, o qual vê que:

Reino de Deus que Cristo anuncia não é a libertação deste ou daquele mal, da opressão política dos romanos, das dificuldades econômicas ou só do pecado. Reino de Deus não pode ser privatizado a este ou àquele aspecto: ele abarca tudo, mundo, homem, sociedade; a totalidade da realidade deve ser transformada por Deus (BOFF, 2009, p.42).

Essa mensagem de esperança pregada por Jesus tinha com principais receptores os pobres. Era especialmente para eles que era dirigido o Reino de Deus, pois a partir do Reino toda situação de pobreza e injustiça de que eles são vítimas desapareceriam. Para Gustavo Gutiérrez a sociedade justa vai ser resultado da assimilação do Reino de Deus, onde justamente toda situação

de opressão e pecado seriam suprimidas: “a construção de uma sociedade justa tem valor de aceitação do Reino” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 128).

Nota-se como a noção de Reino de Deus é trabalhada pelos autores da Teologia da Libertação de modo que a mensagem profética de Jesus não tenha um caráter apenas de conforto ou resignação: o Reino pertence aos pobres e ele começa neste mundo; “o Reino não é apenas uma realidade futura. Ela já está presente. Fermenta. Está sendo gestada na história” (BOFF, 1998, p.81). Rompe-se com uma concepção que tratava o Reino de Deus como um devir, mas que se concretizava apenas no pós-vida, não animando os pobres para lutarem contra a injustiça social que lhes são impostas em vida. Assim, na Teologia da Libertação o conceito de Reino de Deus possui um caráter mais complexo e que busca a libertação integral do sujeito humano. Esta é a sua melhor definição:

Reino não é somente o futuro, pois ele está em nosso meio [...], nem se origina deste mundo [...], embora comece a se realizar neste mundo. Reino significa a libertação total e global de toda a criação, finalmente, purificada de tudo o que a oprime, transfigurada pela presença plena de Deus. Nenhum conceito teológico e bíblico está tão próximo à idéia de libertação integral do que este de Reino de Deus (C. BOFF; L. BOFF, 2001, pp. 85-6).

Parte-se, dentro da concepção cristológica da Teologia da Libertação, que é de vital importância a valorização do Jesus histórico, pois dentro do contexto de sua vida são extraídos os elementos para uma práxis libertadora. O Jesus histórico apresenta uma crítica ao homem e à sociedade, mas a partir do momento em que ele oferece o Reino de Deus a quem aceita sua palavra. Ele propicia também uma alternativa ao estado de coisas criticado. É nesse sentido que Leonardo Boff vê a capacidade revolucionária da palavra de Deus, pois “o Jesus histórico significa crise e não justificação da presente situação do mundo exige não tanto uma explicação e sim uma transformação” (BOFF, 2009, p. 26). Jesus não perde sua força espiritual nessa hermenêutica; ao contrário, ela a usa com o fito de se transformar uma situação de opressão em uma ação concreta com base no exemplo de Cristo.

Com base nessa cristologia, a Teologia da Libertação assume uma perspectiva na qual a história da salvação está intrinsecamente ligada à realidade do homem concreto, ou seja, a religião oferece a salvação na terra, contudo, sua origem é sempre divina. De acordo com Boff, “na religião concreta se encontra, numa unidade e sem mistura e sem separação, a proposta divina e a resposta humana” (BOFF, 1994, p.164). Dessa forma, há uma unidade entre o humano e os

espírito por meio da fé, fator que faz com que a ação humana da terra seja iluminada por uma inspiração transcendental. Em síntese: não há uma divisão entre história espiritual e história humana; elas estão ligadas entre si compondo apenas uma história, como Gustavo Gutiérrez afirma:

Se por História da Salvação entendemos não apenas as ações propriamente ditas divinas – criação, encarnação, redenção – mas as ações dos homens como resposta às iniciativas de Deus, seja aceitando-as ou rechaçando-as, efetivamente a História é apenas uma, pois os esforços vacilantes dos homens se inscrevem, queiram-no ou não, saibam-no ou não, nos projetos divinos (GUTIÉRREZ, 2000, p. 41).

Temos um exemplo de libertação que não é individual e privada, mas pública e comunitária, para todos e com a inspiração bíblica e histórica. A recusa em se conceber duas histórias – uma sagrada e uma profana – dá ênfase ao caráter transformador da missão pastoral, visto que a salvação torna-se algo concreto e imediato, como Michel Löwy observa: “existe somente uma história, e é nessa história humana e temporal que a Redenção e o Reino de Deus devem ser realizados” (LÖWY, 2000, p. 78).

Jesus Cristo torna-se o libertador da condição humana, saindo ela do cativeiro da opressão para uma na qual o amor ao próximo e a sensação de fraternidade prevaleçam. Com suas ações, Jesus mostrou ser possível lutar contra os opressores ao mesmo tempo em que se ama os pobres e os conduz para a salvação. Nesse sentindo, Leonardo Boff ilustra dizendo que:

As atitudes de Jesus devem ser seguidas por seus discípulos. Elas inauguram no mundo um novo tipo de homem e de humanismo, que nós cremos ser o mais perfeito que jamais surgiu com capacidade de assimilar valores novos e alheios sem trair sua essência (BOFF, 2009, p. 58).

Surge um modelo de que homem que com a iluminação da palavra de Deus, quer uma nova sociedade, uma nova realidade para ele e os outros homens. Um homem com outra racionalidade, imbuído de novos valores, buscando lutar com a o opressão dos dominadores, contra os fetichismos do mundo moderno e tentando subverter um sistema injusto. Richard vê que surge um homem como “ator” dentro da sociedade, sendo ele “um sujeito responsável pela reconstrução da esperança e das utopias [...]. É um sujeito com Espírito, capaz de ter fé no Deus da Vida e capaz de rechaçar os ídolos da morte, que transformam os sujeitos em coisas e as coisas em sujeitos” (RICHARD, 2003, p. 20).

Na Teologia da Libertação essa mudança de comportamento do homem em relação à sua realidade é tratada como conversão. Isso porque ela é feita como uma conversão evangélica ao Senhor, o qual inspira o homem para transformação de si e para Deus. Trata-se de uma ruptura com a uma maneira de se pensar e agir, pois no momento em que o cristão abre-se ao Senhor, abre-se para o outro. “Em Cristo o homem dá uma face humana a Deus e Deus dá uma face divina ao homem” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 263). Percebemos que o modelo de sociedade concebido pela Teologia da Libertação é aquele no qual a espiritualidade, a fraternidade e a comunhão de todos com o Senhor prevalece sobre qualquer modelo baseado na “luta de classes” ou de cunho materialista. A pessoa não está só, ela se confirma no próximo:

A pessoa é um eu. Contudo num segundo momento (não cronológico, mas lógico) a pessoa é essencialmente comunhão, relação e diálogo. O eu só existe e subsiste se se abrir para um tu. A palavra originária não é eu, mas eu-tu-nós. É só através do tu que o eu se descobre como tal. A pessoa é sim autonomia e liberdade. Liberdade não de outros, mas para outros. (BOFF, 2009, p. 142, grifos do autor).

Os irmãos Clodovis e Leonardo Boff (2001, pp. 149-152) partem do pressuposto que a Teologia da Libertação tem em sua raiz a espiritualidade e em sua reta final a libertação do homem. Este deverá ser, segundo os supracitados autores: um homem solidário, que se junta aos caídos para levantá-los; um homem profético, criticando e denunciando os mecanismos criadores de opressão; um homem comprometido com a transformação da realidade; um homem livre de si e disponível para o outro; um homem jovial, que reconhece na mensagem libertadora como sinal de maturidade espiritual; um homem contemplativo, que valoriza as dimensões da vida humana como o amor, a festa e a celebração; e um homem utópico, que não desanima ou retrocede perante às dificuldades e que mantém uma ardente utopia para a comunhão com Deus.

A conversão para o surgimento desse homem novo é muitas vezes problemática. Uma ruptura sem conflitos é uma ilusão que não engana os principais teóricos da Teologia da Libertação, os quais concebem tais características para que o homem que surge esteja completamente comprometido – com um profundo sentido espiritual – com a mudança de si e da realidade na qual ele está inserido. Isso por que, “só assim, e não em pretensas atitudes puramente interiores e espirituais, surgirá o „homem novo‟ do meio dos escombros do „homem velho‟” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 262). Mas esse modelo de cristão contemporâneo não iria se criar por si mesmo: importante para isso é o papel da Igreja e seu clero no auxílio aos seus fiéis. Para tal tarefa, a própria Igreja deveria repensar seu papel no mundo e os principais nomes da Teologia da

Libertação não se furtaram em criticar o modelo de Igreja vigente e defender uma proposta de uma Igreja que se colocasse ao lado dos pobres em sua luta pela justiça e direitos humanos.