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Capítulo II: TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E

2.3. A Teologia da Libertação: os aspectos fundamentais para a sua compreensão

2.3.5. O modelo de Igreja da TL: transformação sem ruptura

Dentro dos princípios fundamentais da Teologia da Libertação, além das diretrizes já expostas, há dois pontos essenciais sobre sua relação com a instituição Igreja Católica: a Teologia da Libertação não quer causar um cisma na Igreja, não quer ser uma “seita” ou fundar outra igreja; ela quer falar em nome da Igreja dos católicos. Por outro lado, para que a Igreja cumpra sua missão profética, ela precisa passar por uma mudança profunda em relação às suas prioridades pastorais. Essa postura é compreensível. Antônio Gramsci estudando a Igreja Católica italiana percebeu que os fiéis não rejeitam a tradição da autoridade, mas a submetem aos indivíduos que exercem seus cargos, não se submetendo cegamente às autoridades religiosas:

Os católicos devem distinguir entre “função de autoridade”, que é direito inalienável da sociedade, a qual não pode viver sem uma ordem, e “pessoa” que exerce tal função e que pode ser um tirano, um déspota, um usurpador, etc. Os católicos submetem-se à “função”, não à “pessoa” (GRAMSCI, 2001, p. 196).

Nas críticas ao modelo em vigência dentro da Igreja Católica, Leonardo Boff esteve na vanguarda. Em sua obra Igreja: Carisma e Poder, Boff fez uma rigorosa análise histórica e teológica do papel da Igreja no mundo, bem como seu funcionamento interno. Sem hesitações, esse autor – um dos principais nomes da Teologia da Libertação – enxerga na estrutura da Igreja Católica um caráter autoritário por parte de sua hierarquia, a qual não necessita de consulta de suas bases para agir. Leonardo Boff afirma que historicamente a Igreja precisou de se institucionalizar de modo rígido por causa das condições políticas nas quais estava inserida, como durante o Império Romano ou a Idade Média. Contudo, essa estrutura não se coaduna com a sociedade contemporânea e seus desafios, sendo o modelo vigente de Igreja incompatível com a realidade atual, especialmente a latino-americana:

O estilo romano e feudal de poder na Igreja, sem conotação pejorativa, perdura até hoje e, ao nosso ver, constitui uma das principais fontes de atrito com a consciência que desenvolvemos dos direitos humanos (BOFF, 1994, p. 79).

Fazendo coro com as críticas de Leonardo Boff, Gustavo Gutiérrez vê que a Igreja latino- americana se pautou pela ideologia da Contra-Reforma. Assim, ela esteve mais preocupada em temas teológicos em detrimento da realidade social do continente30. A consequência dessa situação é que na América Latina a Igreja sempre esteve mais próxima aos poderosos com o objetivo de manter intacta sua influência sobre a população do continente. A partir dessa situação é que grupos começaram a criticar o fato da Igreja “buscar o apoio do poder estabelecido e de grupos economicamente poderosos. Para fazer frente a seus eventuais adversários e assegurar o que acreditava ser uma tranqüila pregação do Evangelho” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 153).

Outra crítica importante que é feita ao modelo de Igreja vigente é aquele que enxerga que há uma parcela da população explorada e que necessita de ajuda, porém, essa ajuda vem de práticas assistencialistas. Nestas, ocorre a comoção em relação ao sofrimento dos pobres e a prática cristã da caridade. É bastante criticado nesse tipo de visão pastoral o fato de que o pobre é tratado como sujeito em si, como se ele estivesse uma existência própria na sociedade, e não estando ele nessa condição por causa de um sistema que o coloca à margem da sociedade e seus benefícios. Nesse sentido, esse modelo de ação pastoral:

Não se percebe que o pobre é um oprimido e feito pobre por outros; não se valoriza aquilo que ele tem, como força de resistência, capacidade de consciência de seus direitos, de organização e de transformação de sua situação. Ademais, o assistencialismo gera sempre dependência dos pobres, atrelados às ajudas e decisões dos outros, não podendo ser sujeitos de sua própria libertação (C. BOFF; L. BOFF, 2001, p. 17).

O fundamental nessa crítica é que essa Igreja assistencialista, em nome de sua ligação aos que estão no poder – e que neste modelo são vistos como capazes de mudarem a situação da sociedade −, ela se cala em relação ao fato de que a pobreza é sistêmica e concreta. Gustavo Gutiérrez é explícito em relação ao silêncio que a Igreja mantém em relação a esse fato: “não falar é constituir-se em outro tipo de Igreja do silêncio; silêncio da espoliação e da exploração dos fracos pelos poderosos” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 192).

E o que propunha os principais autores da Teologia da Libertação? Segundo eles, a própria Igreja Católica tinha em sua história um modelo mais pertinente à realidade latino-

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Naturalmente havia exceções. Destas, pode ser destacado o nome de Bartolomeu de las Casas, missionário espanhol que, a princípio, deveria trabalhar pela conversão do povo indígena à religião católica, mas que, com o tempo, passou a denunciar o injusto regime da encomienda utilizado pelos colonizadores espanhóis para se aproveitarem do trabalho indígena.

americana: a Igreja Primitiva dos primeiros cristãos. Esta se caracterizava não por uma união institucional, mas uma união pela fé e pela crença infalível na palavra de Deus. Leonardo Boff compara a missão da Igreja primitiva com a atual:

Aqui notamos uma grande diferença entre a Igreja dos três primeiros séculos e a Igreja posterior, fazendo a experiência do poder. A Igreja primitiva era profética; ia jovial às torturas e morria valentemente no martírio. Não cuidava de sua sobrevivência, porque acreditava na promessa do Senhor que lhe garantia a indefectibilidade (BOFF, 1994, pp. 103-4).

Mais além, a Igreja primitiva se sentia herdeira do Deus do Antigo Testamento e tinha como principal missão ser uma Igreja Povo de Deus. Ela deveria caminhar junto aos seus fiéis, viver seus problemas e atuarem junto a eles. Contudo, a proposta da Teologia da Libertação não é uma simples volta a esse tipo de Igreja. A realidade muda e a Igreja tem que ser dinâmica em relação a essas mudanças. A Igreja latino-americana deve resgatar muita das posições defendidas pelo exemplo dos primeiros cristãos, mas tem que agir de acordo com sua própria realidade, visto que “nunca ocorre um regresso puro e simples” (GUTIERREZ, 2000, p. 315).

É nesse contexto que percebemos as características da Igreja pensada na concepção da Teologia da Libertação. A Igreja pertence ao povo, respeitando sua posição como portadora qualificada da mensagem de Cristo, mas não sendo ela exclusiva. Para Leonardo Boff “a Hierarquia é de mero serviço interno e não de constituição de estratos ontológicos que abrem caminho para divisões internas ao corpo eclesial e de verdadeiras classes de cristãos [...]” (BOFF, 1994, pp. 30-1). A Igreja abre mão de seu poder de portadora da salvação para conceder ao pobre o valor de portador da salvação. Ela deve ajudar no processo de libertação, abrindo uma proposta que abre a Igreja ao povo que “supõe um „descentramento‟ da Igreja, que deixa de se considerar o lugar exclusivo da salvação e orienta-se para novo e radical serviço aos seres humanos” (GUTIERREZ, 2000, p. 312).

E é esse o ponto decisivo na proposta de Igreja preconizada pela Teologia da Libertação: uma vez que é feita uma opção preferencial pelos pobres, é a partir deles que a transformação da sociedade deve começar. O ser humano se reconstrói a partir de uma nova realidade na qual ele se torna sujeito ação pastoral, tendo ele – sempre auxiliado pela instrução da Igreja – a tarefa de criar uma nova organização social, como Pablo Richard explica:

Não se trata do indivíduo abstrato da revolução burguesa [...], senão o novo sujeito humano histórico e concreto que se afirma como sujeito frente ao mercado, a tecnologia, e a globalização neoliberal, as quais, como sujeitos absolutos, destroem a todo ser humano como sujeito concreto. O sujeito humano concreto é portador de uma nova racionalidade, alternativa a do sistema dominante, e é também criador de uma nova organização social (RICHARD, 2003, p. 20).

Cria-se uma teologia que a partir do aprendizado da própria Igreja Católica e uma nova leitura da Bíblia mostra ao cristão que ele deve sim participar ativamente das questões políticas e sociais nas quais ele está envolvido. Como sujeito, ele se liberta libertando os outros, em uma ação que procura ajudar não apenas o indivíduo que produto de uma opressão, mas atacar o sistema que oprime. Gustavo Gutiérrez elogia a maturidade da Teologia da Libertação, devido ao:

Caráter adulto que a práxis social de nossos contemporâneos começou a assumir. È um comportamento de um ser cada vez mais consciente de ser sujeito ativo na história; cada vez mais lúcido diante da injustiça social e de todo elemento repressivo que o impeça de realizar-se, cada vez mais decidido a participar da transformação das atuais estruturas sociais e da efetiva gestão política (GUTIÉRREZ, 2000, p. 101)

Essa nova Igreja parte da premissa que se deve trabalhar junto aos pobres e para os pobres. Assim é que escutar a experiência do cidadão comum, sua experiência, suas angústias e seus desejos, seria condição indispensável para a criação de uma nova sociedade.

E para esse trabalho junto ao povo que, a partir da década de 1960, ganhou força no Brasil as Comunidades Eclesiais de Base (CEB). Estas são pequenas comunidades cristãs que têm como objeto discutir em conjunto os principais assuntos que afetam a população pobre sobre à luz dos Evangelhos. Apesar de seu caráter político, nas CEB‟s a celebração da fé, os cantos e a fraternidade são a tônica dos encontros, situação que deixa claro a função religiosa dessas comunidades. Michel Löwy vê que a CEB é formada por um pequeno grupo de pessoas que “se reúnem regularmente para rezar, cantar, comemorar, ler a Bíblia e discuti-la à luz de sua própria experiência de vida” (LÖWY, 2000, pp. 82-3).

Importante notar é que as CEB‟s não foram uma maneira mecânica que a Igreja Católica instituiu para se aproximar de seus fiéis. Pode ser dito até que os fiéis chegaram à Igreja a partir das Comunidades Eclesiais de Base, visto que o clero que nelas atuavam levavam os problemas do povo para a cúpula da Igreja. Para Leonardo Boff, a CEB representa uma nova maneira de se viver a Igreja, abrindo esta o poder organizacional em favor daquela, tendo como consequência a maior participação popular e evitando o autoritarismo que sempre permeou as principais decisões da hierarquia católica. Portanto, estamos diante de uma:

Forma nova e original de se viver a fé cristã, de se organizar a comunidade ao redor da Palavra, dos sacramentos (quando é possível) e dos novos ministérios exercidos por leigos (homens e mulheres). Há uma nova distribuição do poder na comunidade, muito mais participado, evitando-se toda a centralização e dominação a partir de um centro de poder (BOFF, 1994, p. 29).

O surgimento das CEB‟s representou uma mudança que iria ter grande impacto na concepção de uma “nova” Igreja. A interpretação bíblica ganha um contorno popular que faz com que a Igreja sinta-se impelida à ação política, pois a realidade colhida junto ao povo mostra as dificuldades e provações que os seus fiéis estão sofrendo no dia a dia. Ao mesmo tempo em que se constitui em um novo mecanismo junto aos fiéis, o modelo da CEB respeita o princípio da Teologia da Libertação que não admite uma ruptura com a hierarquia da Igreja. Na verdade, o que há nessa proposta é um encontro entre uma missão eclesial que deve se colocar ao lado dos pobres e uma ferramenta que ajuda a escutar e entender os problemas dos fiéis católicos. Ou seja:

Verifica-se, no geral, abstraindo as tensões inevitáveis em todo o organismo vivo, a convergência feliz entre a Igreja-instituição e a rede ampla das Comunidades Eclesiais de Base. Ambas se abraçam no mesmo espírito evangélico e querem se colocar a serviço de todos em vista do anúncio da boa-nova de Jesus e da atuação libertadora na sociedade dividida (C. BOFF; L. BOFF, 2001, p. 96).

Entretanto, se faz necessário refletir sobre a efetividade e o envolvimento popular com as CEB‟s. Na concepção da Teologia da Libertação, as CEB‟s teriam a função de reunir a comunidade e discutir sua realidade sob à luz da fé. Porém, o sucesso dessa missão é discutível devido a dificuldades de se tratar de temas delicados − como o racismo e a sexualidade – e pela disputa com os pentecostais, que estão levando vantagem em atrair a atenção de boa parte da população (Burdick, 1998). De acordo com John Burdick, está acontecendo uma situação ainda mais grave para a missão da CEB: a mensagem da libertação não é recebida pelos seus participantes de forma uniforme, havendo diversas interpretações de como a experiência da libertação deve ser vivida, tendo como conseqüência o afastamento de uma boa parte de seus membros dos movimentos sociais. O estímulo ao envolvimento político, uma das preocupações centrais das Comunidades Eclesiais de Base, fica assim seriamente comprometido, pois de acordo com Burdick:

Enquanto os teólogos concebem as CEB‟s como meios de instilar no povo uma mensagem de libertação politicamente ativista, tem ficado cada vez mais claro que

muitos, senão a maioria, dos participantes das CEB‟s compreendem e respondem à mensagem de outras maneiras (BURDICK, 1998, p. 14).

Nesse sentido é discutida a capacidade que as CEB‟s têm para envolver a população na atividade política. Apesar das complicações apontadas por Burdick, essas comunidades tiveram um papel importante para a difusão dos ideais da Teologia da Libertação.

A proposta de Igreja da TL nesse contexto demanda uma radical mudança nas estruturas eclesiásticas. Nesse sentido, cabe indagar: a Igreja Católica estaria perdendo sua identidade? Qual a posição dela no contexto político e social contemporâneo? A partir do momento que se questiona o papel da Igreja por vários teólogos, e levando sempre em consideração que eles não postulam um rompimento com a hierarquia, valoriza-se o papel institucional dela na sociedade, ao tempo que se critica apenas sua atitude em relação à ação pastoral. Assim é que para Gutiérrez, “[a] inserção no universo do pobre não desvirtua a missão da Igreja; antes, faz que ela encontre sua identidade como sinal do Reino para o qual são chamados todos os seres humanos e no qual se privilegiam os últimos e insignificantes” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 45). A Igreja enfatiza sua missão e sua presença na sociedade ao tomar partido daqueles que são oprimidos e necessitam de apoio – espiritual, mas também social.

Assim que surge o modelo de Igreja Povo de Deus, a qual não busca renegar a autoridade hierárquica, mas sim exercê-la de outra forma, com outra finalidade. Esta, por sua vez, seria utilizar a importância da Igreja para mudar o cenário de opressão, fome, dependência e violência que historicamente marcou a América Latina. Ou seja, a Igreja está em um processo de transformação das suas prioridades, estando ela cada vez mais perto do povo, assumindo sua missão libertadora:

Desde os primórdios da história latinoamericana está [a Igreja] capilarmente presente no meio do Povo. Tantas vezes foi cúmplice na colonização desintegradora das culturas- testemunho, mas também foi promotora da liberdade e solidária na libertação. Nos últimos decênios ante à crescente degradação da vida do Povo, conscientizou-se de que sua missão é a evangelização libertadora (C. BOFF;L. BOFF, 2001, p. 95).

A Igreja assume sua verdadeira missão no mundo tendo como princípio fundamental a opção pelos pobres que Jesus Cristo tomou quando do seu tempo. Ela possui uma função que nenhuma outra instituição pode cumprir e a Teologia da Libertação procura alertá-la que ela não pode fugir de sua missão, muito menos silenciar-se: “A Igreja não e um no mundo, é a própria humanidade atenta à Palavra, Povo de Deus que vive na história e se orienta para o futuro

prometido pelo Senhor” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 319). É a partir da Igreja que o homem consegue se libertar do pecado, mas não só em nível espiritual; o pecado é social. Intervir a favor dos pobres e contra a pobreza é a missão decisiva da Igreja, pois ela deve:

Restabelecer a justiça porque a pobreza exprime uma quebra da justiça porque ela não é gerada espontaneamente, mas por um modo de produção expropriador. São os pobres os naturais portadores da utopia do Reino de Deus; são eles que carregam a esperança e a eles deve pertencer o futuro (BOFF, 1994, p. 198).

A Teologia da Libertação ofereceu uma proposta alternativa ao modelo vigente. Partiu-se de uma análise crítica que via que o problema do povo pobre latino-americano era causado não por um simples momento econômico negativo, mas sim que era a estrutura econômica dos países da América Latina que causava o estado de pobreza na região. Em outras palavras, o sistema capitalista vigente seria o responsável por esse estado de coisas e apenas com sua superação é que a realidade da pobreza que vitima grande parte da população será modificada.

Dessa forma, a Teologia da Libertação não é apenas um “movimento político-social”, muito menos uma “invasão marxista” dentro da Igreja Católica. Sua proposta é fruto de uma interpretação bíblica que prioriza passagens sobre o poder libertador da Palavra Divina e, ainda, o exemplo do Jesus histórico que abriu o Reino de Deus aos pobres. Jesus Cristo em seu tempo lutou contra os poderosos e direcionou seu amor aos pobres, por quem ele se dedicou para oferecer a libertação.

Nesse sentido, autores como Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff, entre outros, sentiram-se compelidos a questionarem o papel da Igreja no mundo contemporâneo. Uma visão otimista e espiritual da realidade, não condiz com a situação da América Latina, que no momento da afirmação da Teologia da Libertação na década de 1970, onde predominava um estado de opressão de regimes militares, violência, fome e desemprego. Um novo modelo de Igreja deveria surgir. Ele deveria fazer com que a Igreja-instituição caminhasse ao lado dos pobres e utilizasse sua condição para cumprir sua missão profética da palavra de Cristo.

Foi em todo esse contexto político e religioso que a Teologia da Libertação desfrutou de uma imensa popularidade. Entretanto, iniciava-se um segundo momento, no qual as condições políticas e religiosas lançava um desafio para a Teologia da Libertação: o fim do estado militar no continente latino-americano e a atuação neoconservadora da cúpula da Igreja Católica colocou em xeque seus princípios.