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O Prelúdio da Teologia da Libertação no Brasil: as ações da esquerda católica

Capítulo II: TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: CONTEXTO HISTÓRICO E

2.1. O Prelúdio da Teologia da Libertação no Brasil: as ações da esquerda católica

Para entender o processo de afirmação da Teologia da Libertação no Brasil, se faz necessário recordar as ações de um complexo movimento, oriundo principalmente da Igreja Católica, comprometido com a questão política e social que já sinalizava uma nova postura pastoral. A partir da década de 1950, ganha força a influência de católicos em diversos setores da sociedade, como o agrário, operário e o universitário, entre outros. Esse movimento ficou conhecido como Ação Católica Brasileira (ACB) que, apesar de ter sido fundada em 1935, ganharia grande peso, não somente na hierarquia da Igreja Católica, mas também entre os leigos, décadas depois.

A ACB foi diretamente influencia por outros grupos de Ação Católica europeus – notadamente, os da Itália e França. A Ação Católica europeia foi um esforço da hierarquia da Igreja Católica em aumentar sua influência em relação à sociedade, cujo impacto diminuía consideravelmente. Antonio Gramsci estudou cuidadosamente o surgimento e atuação da Ação Católica na Itália e notou que a Igreja estava em uma posição “defensiva” dentro da sociedade, perdendo a iniciativa e tendo que se adaptar em uma sociedade secularizada. Esse é o contexto da Ação Católica, ou seja, a tentativa da Igreja de atuar junto aos leigos para sublinhar sua condição de força ideológica na sociedade, como Gramsci assinala:

A Ação Católica assinala o início de uma época nova na história da religião católica: de uma época em que ela, de concepção totalitária (no duplo sentido: de que era uma concepção total do mundo de uma sociedade em sua totalidade), torna-se parcial (também no duplo sentido) e deve dispor de um partido próprio (GRAMSCI, 2001a, p. 152).

Importante ainda foi a influência da Ação Católica francesa sobre a ACB, especialmente no que se refere às referências intelectuais. Muitos nomes poderiam ser mencionados, mas podemos citar os autores fundamentais para a esquerda católica brasileira, como Jacques

Maritain, o padre Lebret, Emannuel Mounier, Jean-Yves Calvez. Esses autores exerceram um grande papel para a criação de um referencial teórico consistente para a esquerda católica brasileira, pois “a Ação Católica e a JUC [Juventude Universitária Católica] eram guiadas por grupo jovem e progressista de membros do clero, cuja maioria fora educada na Europa” (LÖWY, 2000, p. 231).

E o que era a Ação Católica Brasileira? Era um movimento de dentro da Igreja brasileira composta por subgrupos especializados como a JAC (Juventude Agrária Católica), JEC (Juventude Estudantil Católica), JIC (Juventude Independente Católica), JOC (Juventude Operária Católica) e JUC (Juventude Universitária Católica) que agiam juntos aos leigos (SOFIATI, 2001). Especialmente a JUC e a JOC teriam grande repercussão junto à sociedade, visto que suas ações eram dirigidas a duas áreas extremamente delicadas na sociedade brasileira, quais sejam, o meio operário e a intelectualidade universitária.

A Juventude Universitária Católica no início de suas atividades possuía um viés conservador, pois objetivava cristianizar a futura elite brasileira. No entanto, gradualmente a JUC foi obtendo mais autonomia e foi se envolvendo com os temas universitários e sendo influenciado por eles. Começava então a partir da década de 1960 um período no qual JUC assumiria um compromisso com a ação política como parte de sua missão evangélica dentro da sociedade.

Refletindo sobre a realidade na qual estavam inseridos, os jovens membros desse ramo da ACB não desejavam apenas trazer as palavras do Evangelho para o meio acadêmico; ao contrário, a experiência intelectual trazida dos círculos universitários os faziam questionar a própria ação pastoral da Igreja Católica, desejando eles uma maior participação do clero nos assuntos sociais. O potencial questionador da JUC é sublinhado por Michel Löwy, que vê nela a “vanguarda da mudança da Igreja e da cultura cristã no Brasil e, de certo modo, a precursora do que seria a teologia da libertação” (LÖWY, 2000, p. 245).

Os membros da JUC começaram a produzir uma série de documentos que tinham como principal característica o fato de seu conteúdo dar pouca atenção a assuntos religiosos, priorizando as questões políticas e econômicas. Nestas áreas os documentos se pautavam por uma grande influência socialista francesa, com fortes críticas ao sistema capitalista, o qual seria culpado pelo subdesenvolvimento social. Naturalmente, tal postura não agradou a cúpula da Igreja. O resultado foi o início de uma série de atritos entre a hierarquia da Igreja Católica e os

membros da JUC e: “a partir de 1961, o distanciamento ideológico entre os bispos e a JUC alargara-se” (MAINWARING, 2004, p. 84).

Extremamente perseguidos pelos próprios superiores, com alguns de seus membros expulsos, vários membros da JUC decidiram deixar esse movimento e fundar um grupo ainda mais progressista e menos dependente da hierarquia da Igreja: a Ação Popular (AP). A principal diferença na postura da AP para a JUC era que ela enfocava menos os aspectos do cristianismo para entender a realidade e dava mais destaque às ideias socialistas (LÖWY, 2000). Os membros da JUC que fundaram a Ação Popular idealizaram um movimento inspirado nos valores cristãos, mas que tivesse liberdade de ação política sem ser admoestado pela hierarquia da Igreja Católica. A AP tomava como método de compreensão as ideias marxistas de ação social e Mainwaring sublinha essa situação afirmando que:

Livre das restrições que os bispos impunham à JUC, a Ação Popular adotou posições políticas à esquerda da JUC. Enquanto a JUC estava relativamente otimista em relação à capacidade do governo Goulart de promover grandes mudanças sociais, a AP criticava o seu “nacionalismo desenvolvimentista” populista. A Ação Popular via a revolução como único meio de resolver os problemas da sociedade (MAINWARING, 2004, p. 86).

A contribuição da Ação Popular se deu pelo fato de que a partir dela ficou demonstrado que poderia haver um movimento com uma base religiosa, mas que teria autonomia para se servir de outros instrumentos de análise, como as ideias socialistas francesas. Foi justamente esse tipo de ação que os teólogos que elaboraram a Teologia da Libertação reproduziram, pois eles estavam fortemente imbuídos dos ideais católicos, sem, no entanto, abrirem mão de utilizarem o marxismo para analisarem a realidade social na qual estavam inseridos.

Outro grupo de grande destaque da esquerda Católica foi a Juventude Operária Católica. Sua diferença fundamental em relação à JUC era que ela por estar ligada à classe operária, a realidade da população mais pobre e oprimida foi mais sentida pelos seus membros, fato que influenciou para a radicalização de suas ações. Ao mesmo tempo, a JOC levou essa experiência social para a Igreja Católica, ajudando por um lado a conscientizar parte do clero católico de sua importância do apoio ao povo mais explorado, mas de outro sofrendo grandes retaliações, tanto por parte da hierarquia da Igreja como do governo autoritário que tomou o poder a partir de 1964. A Juventude Operária Católica era formada em seus quadros majoritariamente pela classe operária que tinha como objetivo inicial cristianizar o operariado urbano nas grandes cidades brasileiras. Entretanto, assim como aconteceu com a JUC, o contato com a dura realidade da

classe operária, bem como suas necessidades, fez com que esse movimento tomasse um rumo mais contestador e combativo. Para chegar a essa situação, Mainwaring (2004, p.149) indica dois motivos: o fato de que o governo dos militares estabeleceu um modelo econômico que piorou as condições de vida da classe operária e que esse mesmo regime iniciou um intenso processo de repressão aos movimentos populares, culminando com a prisão de muitos jocistas. Isso ocorreu porque os integrantes da JOC tinham um profundo contato com as ideias marxistas e suas ações representavam uma ameaça à ordem imposta pelos militares. Scott Mainwaring reproduz um interessante documento22 intitulado “Manifesto da JOC” que sinalizava o viés metodológico que o marxismo representava:

O marxismo para nós é uma doutrina como qualquer outra. O comunismo não nos assusta. Se o marxismo contribui para dar ao operário aquilo de que ele precisa e permite a sua realização como indivíduo, não nos colocaremos contra ele. (...) Nós não somos comunistas, mas não o tememos; tememos sim a miséria, a fome, a alienação (MAINWARING, 2004, p. 152).

Por mais que a JOC estivesse profundamente comprometida com a questão social, ela ainda era um movimento religioso que buscava uma ação pastoral mais efetiva para minimizar o quadro de pobreza e opressão da classe operária. Analisando esse contexto, Kenneth Serbin afirma que a JOC: “não tinha relações reais com organizações revolucionárias, as quais viam os ativistas católicos como meros reformistas” (SERBIN, 2001, p. 189). Essa situação colocava os membros desse grupo em uma delicada situação: era reprimido pelos militares, os quais viam na JOC um perigo para o governo e pela hierarquia da Igreja, que condenava as preocupações políticas, econômicas e sociais como prioridade em detrimento dos compromissos religiosos.

Vale destacar, por fim, que o grande mérito da JOC, assim como toda a Ação Católica Brasileira, foi o de trazer para dentro da Igreja Católica as aflições do dia a dia de seus fiéis, fazendo com que parte de seu clero adotasse uma postura mais firme em relação à questão social. O resultado foi diferente do esperado; ao invés da Igreja por meio da Ação Católica recuperar sua “influência”, ou seja, por meio de uma postura paternalista e assistencialista, a experiência com o

22

Importante notar é que a acusação de militância comunista aos jocistas assemelha-se em certo grau às acusações feitas aos teólogos envolvidos com a Teologia da Libertação. Eles eram acusados de utilizar acriticamente a teoria marxista. As justificativas presentes nesse documento são também muito parecidas com as que foram utilizadas quando da publicação do Instruções Sobre Alguns Aspectos da “Teologia da Libertação”, escrito pela Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé em 1984, como veremos um pouco mais adiante.

povo fez com que surgisse dentro da Igreja pessoas decididamente comprometidas com a mudança social, pois:

Originalmente, a JOC fora um meio de trazer a Igreja até a classe operária, de cristianizar a classe operária. Mas seu significado histórico reside em ter feito o contrário, em ter ajudado a Igreja a compreender a classe operária (MAINWARING, 2004, p. 158).

A importância histórica da esquerda católica consiste em ter disponibilizado uma experiência empírica de ação religiosa voltada para a questão material de seus fiéis. Ao mesmo tempo, a atividade política de religiosos passou a ser estimulada e, assim, cresceu em importância a posição de bispos e padres sobre os assuntos mais delicados da sociedade. Os cristãos tiveram a oportunidade de agir em relação à realidade na qual estavam presentes respeitando e tendo como base sua formação religiosa. Michel Löwy faz a seguinte afirmação sobre esses movimentos laicos da Igreja Católica:

Eram, no início dos anos 60, a arena social na qual os cristãos se comprometeram ativamente com as lutas populares, reinterpretaram o Evangelho à luz de sua prática e, em alguns casos, foram atraídos pelo marxismo (LÖWY, 2000, p. 71).

A Teologia da Libertação sistematizaria essa práxis fundamentada na Bíblia e no exemplo de Jesus Cristo para oferecer uma nova ação pastoral, sendo ela mais envolvida com a realidade de seus fiéis. Essa ação tornou-se mais uma tendência presente dentro da Igreja Católica e iria chocar-se com outras mais conservadoras e menos comprometidas com a questão social.