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As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

CAPÍTULO 1 POLÍTICAS E PRÁTICAS CURRICULARES: DESAFIOS PARA A

1.5 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 são uma resposta do Governo Federal aos movimentos sociais e, em especial, à luta do Movimento Negro no século XX. Nesse sentido, esses documentos representam elementos da política curricular que busca combater o racismo e as discriminações que atingem especialmente a população negra na sociedade brasileira (BRASIL, 2004).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico- raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Lei nº 10.639/2003 já vêm sendo objeto de estudo de vários pesquisadores, como Pereira (2008), Abreu e Mattos (2008), Alberti e Pereira (2007). Sendo assim, buscamos refletir sobre questões que foram pouco debatidas nessas produções, procurando retomar algumas considerações pertinentes realizadas por esses autores. Para tanto, utilizamos como procedimentos metodológicos algumas questões que orientaram nosso olhar. Entre elas, podemos destacar: a) indagação sobre a construção dos documentos. b) De onde vem?, c) Quem são suas vozes?, d) Com quem falam?, e) Para quem?, f) Do que falam?, g) Sobre o que silenciam?, h) quais vozes representam? - as contradições externas e internas em relação ao que foi dito no documento foram também elementos essenciais para análise -, i) em que contexto foi(ram) produzido(s) o(s) documento(s)?

Como afirma Gomes (2008, p. 81), “é bom atentar para o título das diretrizes. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Isto é, a discussão sobre a África e a cultura afro-brasileira está permeada por um campo mais amplo que é a educação das relações étnico-raciais. Nessa perspectiva, o que orienta o trabalho é a educação das relações, a ética e o cuidado com o/a outro/a.

A lei poderá promover a construção de projetos interdisciplinares que ajudem os/as educadores/as a trabalharem coletivamente buscando, além do apoio material para o aprofundamento das discussões, as trocas de experiências. Por isso, a autora é enfática ao afirmar que

As ações pedagógicas e as práticas desenvolvidas na perspectiva apontada pela lei e as diretrizes são mais do que um ganho pedagógico. Elas são resultado da luta política em prol de uma escola e de um currículo que insiram a diversidade. Por isso, elas caminham lado a lado com outras iniciativas políticas e pedagógicas reivindicadas pelos movimentos sociais e hoje incorporadas – com limites e contradições – no contexto educacional brasileiro, tais como: a formação de professores (as) indígenas, as constituição de escolas indígenas, a educação inclusiva, as escolas de campo, a educação ambiental, entre outros (GOMES, 2008, p. 85).

Apesar de todas as mudanças que o país tem vivido nas últimas décadas, os avanços não têm sido grandiosos no campo educacional. Dados apresentados por Silvério (2007) deixam claras as condições dos afro-descendentes no tocante à educação no nosso país. Os negros compreendidos por pretos e pardos no Brasil com 15 anos ou mais apresentam maior taxa de analfabetismo, e da mesma forma acontece com os analfabetos funcionais23. Essa questão nos leva a refletir que a escola pública brasileira tem, de certa forma, reforçado a desigualdade social e étnico-racial presente na sociedade. As mudanças nas práticas cotidianas nem sempre são tangíveis. A escola, como um espaço importante de socialização de crianças e jovens, não tem conseguido efetivar, de forma contundente, o cumprimento da sua função de preparação dos sujeitos para a vida em sociedade, embora não possamos negar os avanços pontuais registrados em algumas instituições de ensino no nosso país.

É comum muitos educadores e público em geral não concordarem com as cotas nas universidades públicas, não saberem o que significam ações afirmativas, não conhecerem a história do movimento negro no Brasil ou quase nada saberem sobre artistas negros ou sobre a própria África. Esse fato nos mostra o quanto precisamos avançar em termos de formação inicial e continuada para os docentes.

Por outro lado, ao longo da história das políticas educacionais no Brasil, principalmente nas ações das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, parece estar implícito que basta elaborar leis e propostas bem intencionadas para mudar a realidade das escolas brasileiras. Sabemos que não é bem assim, e que a implementação dessas políticas exige investimentos em diferentes direções. Entendemos também que o Movimento Negro e os intelectuais militantes levaram pelo menos meio século para esta conquista, portanto, não podemos perder as

23

Para Silvério, “trata-se da população que foi em algum momento alfabetizada, porém perdeu a capacidade de leitura e interpretação de textos” (2007, p. 25).

oportunidades de educar as crianças, jovens e adultos para as relações étnico- raciais.

É fulcral que esteja claro para os/as pesquisadores/as que as políticas curriculares, e isso inclui as leis, os documentos diversos e os contextos das práticas nas escolas, se dão em meio a muitos embates e conflitos. Os educadores, portanto, precisam estar preparados para participarem dessas discussões.

É possível dizer, diante da realidade atual, que tanto as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana como a Lei nº 10.639/2003 constituem avanços nas políticas curriculares do Brasil contemporâneo. A efetivação dessas políticas nas práticas cotidianas, entretanto, depende de muitos fatores. Talvez, o primeiro passo esteja relacionado ao processo de formação inicial e continuada de docentes e, claro, melhores condições salariais e de trabalho.

As Diretrizes têm sua apresentação organizada em quatro partes, conforme mostra o quadro 1 abaixo, que reproduz o próprio sumário do referido documento.

Quadro 1 – Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Divisões Conteúdo

1ª parte Apresentação MEC SEPPIR

2ª parte Relatório 1. Afirma os propósitos do documento

2. Apresenta questões introdutórias, as políticas de reparação, de reconhecimento e valorização de ações afirmativas, a educação das relações étnico-raciais. 3. Apresenta a história e cultura afro-brasileiras e africanas: determinações e princípios que devem conduzir às ações desmembradas em três aspectos:

 consciência política e histórica da diversidade;

 fortalecimento de identidades e de direitos;

 ações afirmativas de combate ao racismo e à discriminação.

4. Discute a Resolução nº 1 de 17 de junho de 2004. 5. Oferece sugestões de conteúdos a serem vivenciados por estudantes e professores/as.

6. Apresenta o voto da comissão e a decisão do Conselho Pleno.

3º parte Apresentação da Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno. Publicada no Diário Oficial da União em 22/06/2004. Seção 1, p. 11.

4º parte Apresentação da Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003.

Esse documento e a referida lei afirmam a necessidade de os professores/as educadores/as estarem preparados para lidarem com as tensões produzidas pelas relações étnico-raciais no âmbito escolar. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana fazem referência também à necessidade de sensibilidade por parte dos educadores no tocante à discriminação e ao racismo em relação aos diferentes grupos étnicos tais como: descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos e povos indígenas (BRASIL, 2004). De fato, na passagem acima citada, o documento toma como referência os pressupostos do multiculturalismo da sociedade brasileira, na medida em que conclama para o estudo das várias culturas que formaram o nosso povo. Vale ressaltar que a formação do nosso povo não se deu de forma harmoniosa, mas sim, por meio de conflitos que resultaram no quase extermínio dos indígenas e na condição de extremo desprestígio social dos negros e isso precisa ser elemento de debate na educação básica. Assim, os discursos presentes nos movimentos sociais, nas instâncias internacionais e nacionais são recontextualizados com vistas ao pagamento dessa dívida histórica que a sociedade tem em relação à população negra.

A formulação dessas políticas foi sendo gestada no bojo das transformações pelas quais o Brasil vem passando a partir dos anos 1990. Isso implica dizer que essas mudanças são frutos de ações de organização também da sociedade civil e, nesse sentido, indagamos: que vozes se fizeram presentes na elaboração d esses instrumentos da política curricular? E, que vozes irão cobrar a materialização das políticas em práticas curriculares? Ou ainda, que vozes irão questionar o não cumprimento das Diretrizes Curriculares e da Lei por parte de muitas redes de ensino municipais e estaduais, por parte de gestores/as escolares, de professores/as? Para regulamentação de tal lei foi feita uma consulta pelo Conselho Nacional de Educação aos grupos de Movimentos Negros, a professores, a Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, além de estudantes e pais de alunos (BRASIL CNE/CP, 03/2004, p. 5-6).

É importante dizer, ainda, que o parecer e a resolução que instituíram as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana visam atender a Lei nº 10.639/2003 que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história da África e dos africanos no currículo das escolas brasileiras preferencialmente nas disciplinas de

História, Arte e Literatura, sem deixar de considerar outros componentes do currículo. Entre os conteúdos sugeridos nas Diretrizes Curriculares estão: o aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro visando preservá-lo e difundi-lo; corporeidade, oralidade e arte africana; os estudos dos movimentos negros no Brasil; os quilombos, especialmente os de Palmares, as datas importantes para cada comunidade, etc.

As Diretrizes Curriculares, ao apontarem os conteúdos para o Ensino de História, direcionam o olhar dos docentes para vivenciar algumas datas específicas das lutas do Movimento Negro no Brasil. Para Pereira (2008, p. 24), essa orientação pode levar à “mitificação de personagens”, fazendo com que as escolas deixem de ensinar os conteúdos relativos ao processo histórico.

Assim, pode-se dizer que o documento dirige-se às pessoas que administram os sistemas de ensino, aos professores e educadores de maneira geral, à família do estudante e ao próprio educando/a. As Diretrizes Curriculares salientam ainda a necessidade de implementar condições nas escolas para que os educadores possam atuar: produzir materiais didáticos, promover formação continuada e realizar um trabalho integrado com a comunidade extraescolar é de suma importância para que tal lei seja efetivada nas práticas cotidianas.

Entretanto, tanto a Lei nº 10.639/2003 como as Diretrizes Curriculares silenciam em relação às sansões a serem aplicadas aos governos estaduais e municipais que não efetivarem as condições para implementação desses temas nas escolas. Nessa perspectiva, nada garante que os sistemas de ensino estejam preocupados com essas questões. Em outras palavras, vale salientar que a Lei nº 10.639/2003 e as Diretrizes Curriculares, por terem caráter genérico, não estabelecem metas para a sua implementação, deixando espaço para que as mesmas se transformem em letra morta.

As Diretrizes Curriculares deixam clara a necessidade de reconhecimento da história do negro e do processo de exclusão desse grupo no nosso país. Sendo assim, destacamos as definições do que seja reconhecimento. Dessa forma, é explicitado no documento:

1. Reconhecimento requer adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira nos diferentes níveis de ensino.

2. Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualifiquem os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual.

3. Reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os nossos processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas (BRASIL, 2004, p. 12).

Outra crítica que se pode fazer ao documento diz respeito, conforme salientam Abreu e Mattos (2008), à forma como aparecem os brancos e os negros. Estes são considerados como expressões bem definidas: os primeiros, senhores (europeus), e os segundos, escravos (africanos). Sabemos que a realidade não é exatamente assim. Os argumentos dos autores são os seguintes:

Não é possível, no Brasil, em termos históricos, separar de forma rígida negros e brancos como se fossem respectivamente, descendentes de senhores e escravos. Muitos africanos e descendentes de africanos tornaram-se senhores de escravos; as relações interétnicas e a chamada ideologia do branqueamento tornaram muitos brancos descendentes de cativos. Por sobre eles, uma prática de silenciar a respeito das cores ou de multiplicá-las num quase arco-íris descritivo, procurou também desconstruir o continnumm hierárquico branco/preto herdado da experiência colonial. Negros e brancos são construções históricas problemáticas e de fronteiras difusas na experiência brasileira. Trata-se, portanto, de uma opção política de combate ao racismo quando o parecer aprovado pelas „Diretrizes‟ se refere à dicotomia negro/branco nas relações sociais, vigentes no país (ABREU; MATTOS, 2008, p. 11).

Como vimos, a questão das relações étnico-raciais no nosso país não é simples. Nesse contexto, os educadores precisam de formação sólida para dar conta dessas reflexões. Em inúmeros debates de professores que participamos desde 2003, percebemos que, ainda hoje, em muitos municípios pernambucanos tais questões não estão na pauta das discussões dos docentes. Muitos nem conhecem as Diretrizes Curriculares. Esse fato nos alerta para a necessidade de o Movimento Negro, além de toda a sociedade, ficarem atentos para exigir dos governantes e gestores das redes de ensino a aplicabilidade da Lei nº 10.639/2003.

Ainda fazemos uma reflexão. A questão racial no Brasil passou a ocupar as agendas das políticas públicas e entre elas as educacionais não por acaso (AZEVEDO, 1997). Para a referida autora, uma política nasce de uma questão socialmente discutida e problematizada e, neste aspecto, a questão racial no Brasil há muito tempo vem sendo problematizada pelos movimentos negros. Além disso, o

aumento e a divulgação de pesquisas empíricas sobre a desigualdade racial teve e tem um papel fundante nesse processo.

Diante desse contexto, entendemos que recuperarmos a trajetória de luta vivida pelos negros e pelas negras desse país é elemento básico para se entender as mudanças que vêm se dando no Brasil nas últimas décadas, e consequentemente nas escolas do Ensino Fundamental e nos contextos das práticas curriculares cotidianas.

CAPÍTULO 2 O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA: HISTÓRIAS, LUTAS E