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As edições de luxo e a busca pela réussite bourgeoise

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 60-67)

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO

3.3. As edições de luxo e a busca pela réussite bourgeoise

Blanche Roosevelt, uma das mais importantes referências sobre a obra de Doré, reproduziu em seu livro La vie et les Oeuvres de Gustave Doré de 1887, o plano de ilustração concebido pelo artista para suas edições de luxo. Trata-se de uma carta que o ilustrador entregara para alguém incumbido de escrever sua biografia no ano de 1865.

Concebi naquela época (1855) o projeto destas grandes edições in-fólio da qual Dante foi o primeiro volume publicado. Minha intenção era, e ainda é esta: fazer num formato uniforme e colecionável, todas as obras de arte da literatura, seja épica, seja cômica, seja trágica. Os editores aos quais apresentei meus planos, não achando minha ideia viável, alegavam que este não era o momento para que os negócios do mercado de livros se baseassem em preços excessivos, que fosse necessário lançar volumes custando cem francos e que não havia nenhuma possibilidade de sucesso ao se criar essa contra corrente.

De minha parte, raciocinei de maneira oposta e me apoiei na minha experiência em relação a este fato: em todos os momentos em que uma arte ou uma indústria decai, sempre restam algumas centenas de pessoas que se opõem a este dilúvio de coisas comuns e se dispõem a pagar o valor justo pela primeira obra bem cuidada que se apresente.

Porém, estes argumentos parecem não ter convencido a ninguém e tive que fazer, às minhas próprias custas, o primeiro destes livros: Inferno, de Dante. O sucesso e a venda deste volume vêm justificar aquilo que eu dizia; e a partir deste momento, meus editores pressentiram a possibilidade de fazer esta coleção de in-fólios, da qual sete volumes já foram publicados e que segundo meus planos, compreenderá uns trinta, cuja lista é mais ou menos esta. Creio que não será desprovido de interesse conhecer assim, por antecedência, o que será minha obra em uma dezena de anos59:

Na carta encontram-se listados Don Quixote, Orlando furioso, Paraíso Perdido,

Fábulas de La Fontaine entre outros. Alguns trabalhos já publicados na época como as obras de Byron, Contos de Perrault e Inferno, de Dante e outras que nunca serão executadas, como

59 "Je conçus, à cette époque (1855), le plan de ces grandes éditions in-folio dont le Dante a été le premier volume publié. Ma pensée était, et est toujours celle-ci : faire dans un format uniforme et devant faire collection, tous les chefs-d'oeuvre de la littérature, soit épique, soit comique, soit tragique. Les éditeurs auxquels je fis part de mes plans ne trouvant pas mon idée pratique, m'alléguaient que ce n'était pas dans un moment où les affaires de la librairie avaient pour base le bon marché excessif, qu'il fallait lancer des volumes à cent francs, et qu'il n'y avait aucune chance de réussite à créer ce contre-courant. De mon côté, je raisonnai d'une manière opposée, et je basai mon espérance sur ce fait même : c'est que, dans tous les temps où un art ou une industrie tombe, il reste toujours quelques centaines de personnes qui protestent contre ce déluge de choses communes, et prêtes à payer ce qu'elle vaut la première oeuvre soignée qui se présente. Mais ces arguments ne parurent convaincre personne, et je dus faire a mes frais le premier de ces livres : L’Enfer, du Dante. Le succès et la vente de ce volume viennent justifier ce que je disais ; et dès ce moment, mes éditeurs entrevirent la possibilité de faire cette collection d'infolio, dont sept volumes ont paru aujourd'hui et qui, suivant mes plans, en comprendront (sic) une trentaine, dont voici à peu près la liste. Je crois qu'il ne sera pas sans intérêt de connaître ainsi par anticipation ce que sera mon oeuvre dans une dizaine d'années:" (DORÉ in ROOSEVELT, 1887, p.187-188).

a Ilíada e a Odisseia, de Homero e Fausto, de Goethe. Um misto de obras eruditas e populares que faziam parte da biblioteca ideal de um homem do século XIX60

Este ambicioso plano de ilustração tinha dois propósitos: aquisição de capital econômico, pois lançava no mercado editorial um novo tipo de produto destinado a uma clientela específica de bibliófilos e de burgueses endinheirados; e outro simbólico, pois eram clássicos da literatura que possuíam temas reconhecidamente difíceis de traduzir em imagens.

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O carro-chefe de seu projeto era L’Enfer, de Dante, obra que lhe dava a oportunidade de trabalhar com um texto clássico, refletindo melhor sua intenção de não ser mais visto como um simples ilustrador, mas como um pintor que fazia ilustrações; afinal, tratava-se de um tema da grande pintura, agora representado por uma arte popular como a xilogravura, parte de um projeto de vulgarização da cultura para um público não iniciado no mundo das artes.

Louis Hachette é o único a aceitar colocar seu projeto em prática, mas não sem antes adverti-lo da possibilidade dele estar jogando dinheiro fora, devendo se dar por satisfeito se conseguisse ao menos vender 100 cópias de seu livro61

Entre os anos 1855 e 1861, lançara Journal pour tous, Semaine des enfants, Tour du

monde, entre outros. Hachette era um velho conhecido para quem Doré já trabalhara, sobretudo, na Semaine des enfants, revista destinada para um público mais jovem de leitores que continha Nouveaux contes de fées, as primeiras histórias da Condessa de Ségur, ilustradas pelo próprio Doré.

. O editor, conhecido por sua preferência por edições populares de baixo custo, naquele momento buscava diversificar seus produtos, explorando as potencialidades de um mercado em expansão.

Seguindo as diretrizes de seu plano de ilustração, Doré vai arcar com todos os custos de sua produção que incluem gravadores, impressão e encadernação, cabendo ao editor a

60Cf. LECLERC, 2012, p.94. 61 Cf. MALAN, 1995, p.55-57.

tarefa de distribuição dos livros, obedecendo à seguinte repartição dos lucros: Para o autor 60%, Hachette 15% e livrarias 25%62

Apesar de todas as previsões negativas, a obra obteve um imenso sucesso, tanto de público quanto de crítica, tendo suas 100 cópias iniciais esgotadas rapidamente e atingindo, até hoje, mais de 200 edições publicadas em todo mundo

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Para chamar a atenção do público e promover seus lançamentos, os editores costumavam se utilizar do Salão; primeiramente, por se beneficiarem da visibilidade que ele possuía, graças a sua extraordinária visitação e, depois, por sua grande repercussão na imprensa. A exibição nos Salões também permitia atribuir a seus produtos um caráter artístico, reforçando, assim, o culto ao livro, tanto de peintre quanto ao de luxo, livros como objetos de arte.

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Ao basear-se nesta técnica de divulgação, Doré conseguirá fazer com que se esgotem rapidamente as primeiras edições de seu Dante e ele recorrerá sempre a este expediente para seus lançamentos posteriores no que, para Doré, consistia em criar um entusiasmo crescente, alimentando no futuro comprador a vontade de possuir o objeto precioso que ele vira exibido no Salão64

A mistura de interesses entre a indústria de livros e as Belas Artes era condenada por críticos que lamentavam a colonização do Salão pelos editores. O uso frequente deste recurso publicitário vai se voltar contra o próprio Doré no que diz respeito às suas ambições de pintor, ajudando a identificá-lo cada vez mais como um dos principais motores da indústria de livros.

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Nesse caso, os eventos ocorridos no Salão de 1861 serão significativos para se compreender a trajetória do artista que, objetivando sua reclassificação no campo das artes, decidirá expor, ao mesmo tempo, sua obra de ilustrador junto com a de pintor.

62Idem. 63Idem.

Amparando-se em seu Dante ilustrado, Doré invadirá o Salão com um projeto ousado de autopromoção. Ele vai apresentar, na seção de fotografias, a reprodução das ilustrações originais destinadas a seu livro por meio das fotos produzidas por Charles Michelez, um especialista em reprodução de obras de arte, das matrizes xilográficas antes de serem entalhadas e, na sessão de gravuras, as próprias xilogravuras impressas. Tudo isso buscando aumentar a repercussão de seu trabalho através da multiplicação das resenhas críticas de sua obra na imprensa especializada65

Porém, é na seção de pinturas que ele vai apresentar a culminação de todos seus esforços, através da exibição de uma tela gigantesca onde a representação de Dante et Virgile

dans le Neuvième cercle des enfers (fig.7) fará referência explícita à tela La Barque de Dante

(1822) de Delacroix (1798-1863), modelo a quem Doré sempre tentou se comparar. .

Sua intenção parece ser a de utilizar o Salão como o rito acadêmico que exige de cada artista a apresentação de uma grande obra de arte (Chef d’oeuvre) como prova de seu talento e, assim, legitimar-se como pintor através do reconhecimento de seus pares.

Mais uma vez, Théophile Gautier será aquele a sair em sua defesa, afirmando que a longa intimidade do artista com o tema, provavelmente devido a seu livro, vai fornecer-lhe o grande estilo que talvez faltasse a suas pinturas anteriores e que suas ilustrações exibidas no Salão se converteriam facilmente em verdadeiras pinturas de história66. Esta era certamente uma tentativa de resposta às críticas mais ferrenhas que diziam que seu quadro Dante et

Virgile, a despeito de suas dimensões ambiciosas, “tinham somente a consistência de uma vinheta aumentada e esticada além das medidas67

65Ibidem, p.416.

”. Fato recorrente em sua carreira toda vez que os críticos queriam lembrar-lhe de sua origem de ilustrador e atingi-lo como pintor.

66Ibidem, p.417.

Fig.7

DORÉ, Dante et Virgile dans le neuvième cercle de l'enfer, 1861.

A recepção favorável da edição Hachette contrastava com a opinião, geralmente negativa, dos críticos a respeito de sua tela monumental. Nos anos seguintes à publicação de Dante, Doré vai se encontrar no auge de sua réussite burgeoise, porém a conquista do sucesso popular e financeiro não compensará, a seus olhos, a indiferença do júri, a má vontade da crítica e a falta de reconhecimento das instituições artísticas.

O Salão de 1861, no qual Doré havia fundado todas as suas esperanças, apresenta-se como um fracasso parcial. Porém, sua decepção não vai demorar muito uma vez que, naquele mesmo ano, o Estado vai conceder-lhe o título de Chevalier de la Légion d’honneur graças à influência de seu amigo Paul Dalloz, redator chefe do Moniteur Universel, órgão oficial do governo, que dará essa condecoração não ao pintor mais ao ilustrador. O modo como sua condecoração é obtida vai lhe render desconfianças quanto ao seu merecimento e seus críticos vão acusá-lo de tirar partido de sua proximidade com o círculo do poder.

Os mais altos funcionários da administração imperial frequentavam seu hotel na Rua Saint-Dominique, onde costumava promover soirées reunindo celebridades como Gautier, Alexandre Dumas, Rossini, Listz. Doré estabelece uma rede de amizades que vai interceder a seu favor em algumas ocasiões, como na menção honrosa do salão de 1857.

Seu patriotismo muitas vezes se confundia com os interesses do Império, como no caso das ilustrações feitas para a imprensa, por ocasião das campanhas do exército francês na Criméia e na guerra de independência da Itália. Em 1859, Doré produzira grandes cenas de batalha para o Journal pour tous e Le monde illustré, ficando conhecido como uma espécie de ilustrador oficial da política externa do Segundo Império. Daí não se admirar o fato de, em 1864, ele ser convidado por Napoleão III para passar dez dias em Compiègne, requisitado para dirigir tableaux vivants para o imperador.

Les contes de Perrault sairá na virada do ano, de 1861/62, sob o mesmo formato e seguindo a mesma concepção de L’Enfer: livro de luxo, grande formato, dentro do conceito do livro como objeto de arte. A diferença é que depois de toda a boa repercussão de seu Dante, outros editores se apresentam agora dispostos a participar do projeto do ilustrador. O livro será então publicado por P.J. Hetzel que, ao voltar de seu exílio na Bélgica, deseja retomar o caminho que havia começado em 1843, com o Nouveau magazin des enfants: o da literatura voltada para um público infanto-juvenil.

O editor, que sempre buscou a perfeição técnica de seus produtos, defendia também a ideia de edições de luxo, porém com conteúdo educativo e moral. Les contes de Perrault será um grande sucesso comercial, muito embora boa parte da crítica condene seu caráter elitista.

L’Album de Gustave Doré, publicado em seguida, traz uma verdadeira coletânea de seus trabalhos, muitos deles, reproduções de suas pinturas a óleo. Embora litográfico, o álbum não se assemelha em nada aos livros cômicos do início de carreira. Dessa vez o próprio Doré

se encarregara de gravar suas ilustrações. Possivelmente tentando, com isso, responder àqueles que o acusavam de ser totalmente dependente de sua equipe de gravadores.

Uma viagem à Espanha, em 1862, com seu amigo o barão Charles Davillier resultará em dois de seus grandes trabalhos: o álbum L’Espagne, que vai ser publicado primeiramente na revista Tour du Monde, e Don Quichotte, no ano de 1863.

A invenção da galvanoplastia vai causar uma revolução no mundo dos impressos. Ela corresponde a um processo químico que permitia a reprodução exata das matrizes originais. Valendo-se disto, a editora inglesa Cassel assinará um contrato com a Hachette a fim de adquirir as cópias das pranchas de Don Quichotte, sendo este o primeiro livro de Gustave Doré a ser publicado em terras britânicas pela editora. A partir de então, Cassel será a responsável pela maior parte de suas edições na Inglaterra e por transformá-lo em sensação internacional.

Doré sabe que ocupa uma posição dominada no campo artístico. Ser um ilustrador fornece-lhe rendimentos que certamente o colocam no nível de uma alta burguesia; seu sucesso no campo da edição confere-lhe uma notoriedade que permite certa autonomia no campo da produção. No entanto, o espaço de relações que se refere ao campo artístico se apresenta como um sistema simbólico organizado por uma lógica das diferenças, na qual o pintor vai opor-se ao ilustrador.

Ao tomar consciência deste fato, ele viverá uma situação contraditória: se tudo o que conseguiu é fruto de sua trajetória no campo da ilustração, seu êxito constitui também um obstáculo para suas ambições no campo da pintura, sobretudo, seu reconhecimento como grande artista. "Sou meu próprio rival. Eu devo apagar e matar o ilustrador para que só se fale de mim como pintor68

68"My adversary, at this moment, is myself. I must efface and kill the illustrator, and be spoken of only as the

painter". (Citado por JERROLD, 1891, p.102).

É por isso que, a partir dos próximos anos, sua produção como ilustrador vai diminuir gradualmente, principalmente dentro da imprensa; jornais e revistas. Porém, ele dará continuidade a seus livros de luxo, pois eles são ainda a garantia de sua independência econômica em relação às instituições69.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 60-67)