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LUIZ CARLOS RODRIGUES

BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT:

O DISCURSO DO ILUSTRADOR

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Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT:

O DISCURSO DO ILUSTRADOR

Luiz Carlos Rodrigues

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos - Literaturas de Língua Francesa)

Orientador: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

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Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa

BARBA-AZUL DE DORÉ & PERRAULT:

O DISCURSO DO ILUSTRADOR

Luiz Carlos Rodrigues

Orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte

dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras

Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literaturas de Língua

Francesa).

Examinada por:

_____________________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello - UFRJ

____________________________________________________________________

Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina – UFRJ

____________________________________________________________________

Professor Doutor Carlos de Azambuja Rodrigues – UFRJ

____________________________________________________________________

Professora Doutora Sonia Cristina Reis – UFRJ, Suplente

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Tamara Quírico Moraes – UERJ, Suplente

(4)
(5)

À amiga Fernanda Almeida Lima cujo papel foi de tamanha importância nesta pesquisa que me arrisco a dizer que, sem ela, este trabalho não teria acontecido. Fiel e

dedicada durante todo o processo, sempre esteve disposta a ajudar, quer seja dando conselhos,

tirando dúvidas de todos os tipos e tendo uma paciência enorme de me aturar. Mas nada foi

tão importante quanto o fato de me convencer a "atravessar a rua" e me fazer ver que havia

vida do outro lado do quarteirão. A mudança de ares das Artes para Letras fez bem e esta

pesquisa é resultado disto.

E foi também por seu intermédio que conheci minha orientadora Celina Mello, outra a

quem devo minha eterna gratidão. Primeiramente pela generosidade com que me acolheu em

seu grupo de pesquisas; pela confiança e dedicação ao meu trabalho, sempre fornecendo

importantes dicas de leituras e me enchendo de livros; por sua preocupação com minha

formação intelectual e profissional, enfim, por despertar em mim o gosto pela pesquisa e pela

vida acadêmica.

Neste momento em que objetivos de vida se concretizam, devo lembrar-me daqueles

que se constituíram em exemplo para minha formação durante os primeiros passos desta

caminhada. Sendo assim, deixo aqui registrado meus agradecimentos ao casal Márcia e Gerson Conforti. Mais do que professores, amigos que com idealismo e abnegação

promoveram, ao longo de quase seis anos, o curso de formação de ilustradores na Escola de

Belas de Artes da UFRJ e me fizeram descobrir, além do universo da literatura infantil, a

paixão pela ilustração e o gosto pela docência.

Agradecimentos que estendo aos amigos André Hausmann e Gabriel Amorim cujas

(6)

integral à pesquisa, aos professores Carlos Azambuja, Pedro Paulo Catharina, Sonia Reis

e Tamara Quírico que gentilmente aceitaram fazer parte da banca examinadora desta

(7)

Que de livres il faut illustrer pour s'illustrer soi-même

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RODRIGUES, Luiz Carlos. Barba-Azul de Doré & Perrault: o discurso do ilustrador. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Área de concentração: Estudos literários neolatinos. Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2014.

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RODRIGUES, Luiz Carlos. Barba-Azul de Doré & Perrault: o discurso do ilustrador. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2014. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas - Área de concentração: Estudos literários neolatinos. Opção: Literaturas de Língua Francesa. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2014.

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Figura 1: EDELINCK, Portrait de Charles Perrault (1628-1703). Paris. 1694. P. 18. Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 2: NADAR, fotografia de Gustave Doré (1832-1883). Paris. 1855-1859. P. 25.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 3: CLOUZIER, Frontispício de Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes du

temps passé. Paris. 1697. P. 26.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 4: DORÉ, Frontispice - La Lecture des contes en famille, Les contes de Perrault,

Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 29.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 5: DORÉ, La Ménagerie parisienne, par Gustave Doré. Paris. 1854. P. 39. Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 6: DORÉ, La légende du Juif errant. Paris. 1856. P. 45. Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 7: DORÉ, Dante et Vergil dans le neuvième cercle de l'enfer. Óleo sobre tela. Paris. 1861. P. 50.

Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 8: BOURNE, Christ leaving the praetorium, 1872, gravura feita a partir da pintura de Gustave Doré Le Christ quittant le prétoire. Paris, 1872. P. 56.

Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 9: DORÉ, Monumento a Alexandre Dumas, Place Malesherbes. Paris. 1883. P. 62.

Disponível em:

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Disponível em: Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 11, 26, 27, 30, 31 & 32: DORÉ, S'il vous arrive de l'ouvrir, il n'y a rien que vous ne deviez attendre de ma colère, ilustração nº1, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 96, 98, 104, 104 & 105.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 12, 16, 17, 21, 22, 23 & 25: DORÉ, Les voisines & les amies... tant elles avaient d'impatience de voir toutes les richesses de sa maison, ilustração nº2, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 80, 83, 86, 86, 87 & 93.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 13, 40 & 44: DORÉ, Dieu soit loué! s'écria-t-elle un moment après, ce sont mes frères, ilustração nº3 Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 115 & 120.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 14, 46, 47, 48, 49, 50 & 52: DORÉ, Ils lui passèrent leur épée au travers du corps, ilustração nº4, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 77, 125, 126, 126, 129, 131, & 134.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 15: Print screen Gallica, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 78.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 18, 19 & 20: Detalhe da ilustração nº1 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 83, 84 & 84.

Figura 24: FÉRON, Gilles de Laval, sire de Rais, compagnon de Jeanne d'Arc, Maréchal de

France. Óleo sobre tela. Versailles. 1835. P. 90.

Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 28: CLOUET, Portrait de Elisabeth da Áustria (1554-1592), 1571. P. 100. Disponível em:

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Disponível em:

Última consulta: 05/02/2014.

Figuras 33, 34, 35, 36, 37 & 38: Detalhe da ilustração nº2 de Gustave Doré, Les contes de

Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. Pp. 108, 109, 109, 111, 112 & 112.

Figura 39: CLOUZIER, La Barbe bleue, Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes

du temps passé. Paris. 1697. P. 113.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 41: Esquema tonal nº1 da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 118.

Figura 42: Esquema tonal nº2 da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 118.

Figura 43: Esquema geométrico da ilustração nº3 de Gustave Doré, Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862. P. 120.

Figura 45: FRIEDRICH, Homem e mulher contemplando a lua (1818-1824). P. 122.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 51: MICHELANGELO, A criação de Adão, (por volta de 1511). P. 133.

Disponível e

Última consulta: 05/02/2014.

Figura 52: DORÉ, Le Chemin des écoliers. Paris. 1861. P. 140.

Disponível e

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1. INTRODUÇÃO...1

2. LES CONTES DE PERRAULT: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS EDIÇÕES DE 1697 E 1862...10

2.1. Charles Perrault...10

2.2. A querela dos Antigos e Modernos...12

2.3. Les contes de ma mère l’Oie e a origem dos contos...14

2.4. A edição Hetzel-Stahl...19

2.5. O livro de luxo e o livre de peintre...21

2.6. Ilustrar Perrault...23

2.7. A simbologia dos frontispícios de Les contes de ma mère L'Oie e Les contes de Perrault...26

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO ARTÍSTICO FRANCÊS DO SÉCULO XIX...32

3.1. Os anos na Maison Aubert...33

3.2. Mudança no campo: da caricatura aos fólios literários...39

3.3. As edições de luxo e a busca pela réussite bourgeoise...46

3.4. O sucesso inglês e Doré escultor...53

3.5. O artista preso entre a academia e a crítica...63

4. O DISCURSO DO ILUSTRADOR...67

4.1. A ilustração como tradução...67

4.2. Ilustração: Discurso de escrevência, discurso de escritura...68

4.3. Um discurso limitado...73

5. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº1: A VIOLAÇÃO DO QUARTO PROIBIDO ...76

5.1. “Frontispício interno”...76

5.2. Por uma imagem autônoma...78

5.3. Desmontando a estrutura...81

5.4. A narrativa da imagem...84

5.5. Mitólogo...88

(14)

6.1. O grotesco e o sublime...97

6.2. Como uma pintura de retratos...99

6.3. O caminho do olhar...103

6.4. O simbolismo da chave...105

6.5. A sensualidade da mulher...106

6.6. Expressões faciais...107

6.7. A narrativa das mãos...110

7. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº3: A CHEGADA DOS CAVALEIROS...113

7.1. Clouzier revisto por Doré...113

7.2. A estrutura da imagem...117

7.3. Uma ilustração fantástica...119

7.4. Conclusão...122

8. ANÁLISE DA ILUSTRAÇÃO Nº4: A MORTE DE BARBA-AZUL...124

8.1. A dinâmica da composição...124

8.2. A espada e o facão...127

8.3. A imagem como teatro...128

8.4. A narrativa da imagem...130

8.5. Conclusão...134

9. CONCLUSÃO...136

10. REFERÊNCIAS...141

11. ANEXOS...146

11.1. La Barbe-Bleue...146

11.2. Ilustração não gravada do Barba-Azul para Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862...151

(15)

1. INTRODUÇÃO

O recorte histórico da pesquisa compreende o período entre 1830, ano da instauração da Monarquia de julho e 1862, ano da publicação da edição Hetzel-Stahl. Momento do desenvolvimento tecnológico que proporcionou uma revolução no mercado de impressos; de redefinição do papel do ilustrador no campo artístico francês, agora como profissional do mercado da edição e da reforma do sistema educativo que fez crescer a população leitora na França e surgir a Littérature d’enfance et de jeunesse.

A revolução tecnológica dos meios de produção favoreceu o crescimento da indústria de livros na primeira metade do século XIX. Pouco a pouco as máquinas e as práticas antigas foram substituídas por outras mais modernas e eficazes permitindo o desenvolvimento e o aprimoramento de variadas técnicas de reprodução da imagem tais como a xilogravura, a litogravura, a calcogravura e a fotogravura, tendo como consequência a vulgarização da ilustração, inclusive nos livros populares.

A crise econômica que atingira a França de 1827 a 1830 obrigara o mercado da edição a procurar por novas soluções para seu problema financeiro. Através de diferentes estratégias editoriais, buscou-se conquistar um mercado de extensão considerável que incluía não só as classes mais populares, que haviam recentemente adquirido a capacidade de ler em virtude das novas políticas de alfabetização do governo, mas, sobretudo, a pequena e a média burguesias.

Assim, o mercado da edição inova lançando livros em série ou em fascículos, livros mais baratos graças ao recurso da publicidade e passa a fazer uso, de modo sistemático, de imagens. Elas vão se constituir no elemento fundamental do projeto do livro romântico acessível a todos, que tinha por objetivo a transmissão do conhecimento1

1 Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean, 1985, p.284.

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ser este um sinal de distinção; no entanto, rejeitadas pelos meios letrados que desconfiavam dessa vulgarização da cultura. Eles consideravam essa forma de publicação um gênero menor e incompatível com a leitura erudita, uma vez que a imagem era frequentemente acusada de trair o texto, de sobrecarregar as páginas dos livros e de se endereçar aos sentidos e não à inteligência2.

A figura do ilustrador como profissional no campo da edição ainda estava em constituição no século XIX. Os ilustradores se encontravam em uma posição mal definida dentro da sociedade francesa. Hierarquicamente, estão abaixo dos pintores, mas ainda acima dos artesãos e dos caricaturistas da imprensa. Sua atividade é considerada mercantil, por estar associada aos panfletos publicitários que usavam a imagem como apoio a seus produtos; de forte apelo popular, devido a sua origem, as imagens de santos e dos livrinhos da Littérature

de Colportage; e industrial, visto que as gravuras são reproduzidas em larga escala.

A profissão de ilustrador é uma atividade escolhida a contragosto daqueles que gostariam de fazer carreira dentro dos Salões, porém é bem remunerada financeiramente, principalmente por causa do desenvolvimento de um amplo mercado editorial que vai de jornais e revistas ao livro ilustrado. Por uma afinidade de propósitos, os ilustradores do livro se encontram ligados ao grupo de artistas românticos com os quais, quer seja por sua posição política majoritariamente republicana, quer seja pelo conceito de fraternidade das artes, lutam por uma nova posição no campo artístico.

A partir da Lei Guizot, de 1833, que promoveu a reforma do sistema educativo francês, implantando uma rede municipal de ensino primário por todo o território nacional, a escola não é mais o lugar em que apenas se ensina a ler, ela é também a responsável por

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desenvolver o hábito da leitura, tanto nas salas de aula quanto fora delas. Nesse contexto, desenvolveu-se um mercado de livros escolares que incentivou também a criação de livros paradidáticos, favorecendo o surgimento de uma literatura voltada para crianças3, da qual Les

Contes de Perrault se torna um campeão de vendas4

Assim, nomes como Louis Hachette, que se estabelecera como grande editor especializando-se em manuais escolares e dicionários, e Pierre-Jules Hetzel passam a investir também em edições de lazer, para suprir a demanda de jovens leitores que desejavam se instruir e, ao mesmo tempo, se divertir.

, ajudando a fazer a fortuna de editores.

Estimulado pelo crescimento da rede ferroviária, Hachette, em 1853, teve a ideia de criar a Bibliothèque des chemins de fer. Por meio de um contrato com o Conde de Ségur, presidente da Compagnie des chemins de fer de l'Est, consegue uma concessão para instalar quiosques nas estações com o objetivo de vender seus livros a preços populares. Suas coleções eram compostas por uma série de livros que, pela cor da capa, indicavam a faixa etária a que se destinavam. Dentre elas, a que conheceu maior sucesso foi a Bibliothèque rose

illustrée, destinada às crianças, coleção em que eram publicados autores como a Condessa de

Ségur, esposa do Conde de Ségur e primeiro grande modelo a se inscrever na área da literatura infanto-juvenil. Suas histórias, movimentadas e moralizantes, revelavam uma preocupação com o meio familiar onde se formavam e educavam as crianças. As personagens dos romances da Condessa de Ségur foram durante muitos anos o modelo de comportamento a ser seguido pelas crianças e revelam-se, sobretudo, representantes da mentalidade da sociedade tradicional francesa do século XIX.

Enquanto Hachette conquistava o mercado com suas coleções a preços populares, P.J. Hetzel defendia a ideia de edições de luxo, bem acabadas, mas com conteúdo educativo e moral, voltadas para a formação de um público leitor desejoso de informação cultural.

3 Cf. COLIN, 1992, p.6.

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O editor, que já se dedicara a uma literatura infanto-juvenil incipiente nos anos 1840 quando através de seu Nouveau magasin des enfants publicou autores de renome como Charles Nodier, Alexandre Dumas, George Sand, Alfred de Musset e ilustradores como Tony Johannot, Bertall e Gavarni, cria, em 1864, Le Magasin d'éducation et de récréation, no qual reunia literatura e ciência. Revista que ficou famosa por ter publicado os primeiros textos de Jules Verne, seus Voyages extraordinaires, e promover a grande revolução na literatura infantil.

Considerado à época o ilustrador mais importante da França, Gustave Doré elabora seu projeto editorial numa linha evolutiva que vinha desde seus primeiros álbuns ilustrados

Les Travaux d’Hercule (1847), Dés-Agréments d'un Voyage d'Agrément (1851), Trois artistes

- incompris et mécontents (1851) pela Maison Aubert, passando pelos fólios literários, quando

resolve ilustrar escritores contemporâneos como Balzac, Les contes drolatiques (1855) e a Condessa de Ségur, Nouveaux contes de fées (1857) até chegar o momento em que, imbuído de ambições mais altas, resolve ilustrar os clássicos literários.

Ao levar para os editores seu projeto de ilustração dos clássicos, Doré frequentemente recebia uma negativa devido aos altos custos para sua produção. Os livros deveriam ser álbuns de luxo e custariam não menos do que 100 francos a edição, tornando-se, portanto, invendáveis naquele momento. Ele propõe então arcar com os próprios custos e, de maneira inicial, banca a produção, até provar serem bem sucedidos tanto junto à crítica quanto ao público5

Quando oferece a Hetzel seu Les Contes de Perrault, Doré já conhecia o interesse do editor pelo mercado de livros infantis e suas ideias a respeito do caráter didático do livro. A concepção do livro ilustrado por Doré inseria-se em um projeto editorial voltado para uma

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classe burguesa abastada, que buscava se distinguir através da aquisição de bens culturais. A escolha de um suporte luxuoso para a edição a insere no conceito do livro como um objeto de arte que seguia os mecanismos de produção impostos pelas leis de mercado.

***

A dissertação Barba-azul de Doré & Perrrault: o discurso do ilustrador estuda a relação das ilustrações do artista Gustave Doré para o conto La Barbe Bleue (Barba-Azul) de

Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862, com o texto, na perspectiva da análise do

discurso de Dominique Maingueneau (2006). Desenvolve-se a partir de uma abordagem semiológica barthesiana (2010, 2004, 1990) e com a aplicação dos conceitos sociológicos de

habitus, campo, trajetória e violência simbólica de Pierre Bourdieu (2011, 1996). Analisa a

construção das relações entre o discurso literário e o discurso imagético, efetuada pelo artista em seu processo criativo, e observa o ilustrador como o “leitor primeiro”, o coenunciador que, em conjunto com o enunciador, constrói o texto conferindo-lhe sentido mediante suas escolhas e crenças no momento da leitura. O ilustrador como primeiro filtro seria capaz de interferir na maneira como o texto é apreciado pelo público leitor. Desse modo, Gustave Doré é considerado autor de sua própria versão do conto no qual, por meio da recriação visual constrói seu discurso e define seu posicionamento no campo artístico, conferindo a um texto do século XVII a projeção de um ethos de pintor de História.

Para Dominique Maingueneau, ethos é a imagem de si que o enunciador constrói em seu discurso para exercer uma influência sobre seu coenunciador. É através dele que o enunciador busca legitimar seu dizer, atribuindo-se uma posição institucional e marcando sua relação a um saber.

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a Gustave Doré a autoridade para enunciar seu discurso que visa uma mudança de posição no campo artístico.

Bourdieu entende o campo artístico como o conjunto das condições sociais que possibilitam a personagem do artista como produtor da obra de arte. É o lugar onde se produz e se reproduz incessantemente a crença no valor da arte e no poder de criação do valor, que é o próprio artista6

O sociólogo define campo como um sistema de posições. Um universo social particular construído por agentes que ocupam posições específicas que dependem do volume e da estrutura do capital eficaz do campo considerado, onde a noção de capital faz referência a seu aspecto econômico: algo que se acumula através de operações de investimento, se transmite por herança e permite a obtensão de lucros.

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É possível distinguir-se quatro tipos de capitais mais ou menos pertinentes segundo o campo. Capital econômico (conjunto de recursos patrimoniais e rendimentos ligados ao capital ou atividade profissional, dinheiro, salário), capital cultural (conjunto de qualificações intelectuais transmitidas pela família através do habitus 7

Na impossibilidade de contarmos com a versão original ou mesmo a versão digital da primeira edição de Les contes de ma mère L’Oye: Histoires ou Contes du temps passe, de 1697, foram utilizados, para o desenvolvimento da pesquisa, o texto Magie de l’image:

Altérité, merveilleux et définition générique dans les contes de Charles Perrault (2010), de

Daphne Hoogenboezem e a transcrição da conferência de Tony Gheeraert Perrault illustré

ou produzidas pelo sistema escolar como títulos escolares, diplomas, conhecimento enciclopédico, literário ou artístico), capital social (conjunto das relações "socialmente úteis", que podem ser mobilizados pelos indivíduos ou pelos grupos no âmbito das trocas profissionais e sociais) e capital simbólico (reconhecimento, prestígio, reputação; autoridade conferida a um agente social).

6BOURDIEU, 2011, p.289.

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par Doré, ou la perfection du contresens, pronunciada em novembro de 2005, Maromme la Maine, IUFM de Rouen e publicada no site da Academia de Rouen em 20078

A noção de cenografia, segundo Maingueneau, adiciona ao caráter teatral de "cena" a dimensão da grafia, que remete à inscrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação com a memória de uma enunciação que se situa na filiação de outras enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego.

, que descrevem e comentam a referida edição, sendo úteis para a análise da cenografia da obra.

A cenografia é o centro em torno do qual gira a enunciação, é a situação enunciativa de um discurso criada pelo autor para legitimar sua enunciação. Assim, compreende-se como fazendo parte da cenografia da obra todo o projeto gráfico, incluindo as escolhas estéticas operadas pelo autor.

As gravuras originais feitas por Antoine Clouzier, para a edição de 1697, são encontradas no site:

Para a análise da cenografia de Les contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl, 1862, valemo-nos do mesmo texto de Tony Gheeraert citado acima e da resenha crítica escrita por Sainte-Beuve para a coletânea Nouveaux lundis, publicada em dezembro de 1863. Uma vez que tivemos acesso a uma cópia digital do livro, encontrada no site da biblioteca Gallica9, só

pudemos trabalhar alguns aspectos da cenografia enunciativa da obra, como a analise das ilustrações e do texto, porém, ela nos foi insuficiente para a descrição física do livro.

O primeiro capítulo é dedicado fundamentalmente à obra que é objeto desta dissertação: Les contes de Perrault. De maneira concisa, faremos uma apresentação de seu autor, Charles Perrault, e demonstraremos a importância de seu papel nas discussões estéticas

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de sua época, especialmente, sua participação durante a Querela dos Antigos e Modernos, que está relacionada diretamente com o contexto em que surge o livro. Do mesmo modo, mostraremos o que eram os contos de Perrault e o que esse trabalho de recolha e publicação representou na história literária francesa. Efetuando um salto de quase 200 anos, observaremos que tipo de interesse esta obra trouxe para a geração romântica e o que passou a significar Charles Perrault, no século XIX.

O capítulo dois mostra através da trajetória de Gustave Doré um pouco da história social da ilustração francesa do século XIX. Um métier simbolicamente dominado em relação à grande arte da pintura. Veremos como o artista vai utilizar seu trabalho em favor de seu desejo de reconhecimento como grande artista e de que forma seus contínuos deslocamentos se apresentarão como parte de uma estratégia de reclassificação no campo artístico.

No capítulo três questionaremos até onde o trabalho do ilustrador pode ser considerado a emissão de um discurso a partir da seguinte proposição: Gustave Doré, um artista romântico do século XIX, promove a releitura do livro Les Contes de Perrault, de Charles Perrault, através da recriação visual de seus traços enunciativos, conferindo a este texto do século XVII a projeção de um ethos de pintor de história ligado à estética romântica. Evidenciado em suas ilustrações, em que medida a projeção desse ethos será compreendida pelo público leitor-espectador? Quais os limites que se impõem ao trabalho do ilustrador ao o considerarmos como um discurso? Como poderemos entender o trabalho de Gustave Doré sob o ponto de vista da autoria?

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As análises começam a partir da observação de todo o conjunto das gravuras verificando, primeiramente, como elas se relacionam entre si e, depois, como elas se relacionam com o texto, através do confronto das passagens escolhidas com suas respectivas ilustrações. Assim, temos a noção de como vai se apresentar a construção narrativa do artista, e se esta é coerente ou não em relação à história.

Busca-se sempre, para cada imagem, ao menos uma questão que possa se constituir em motor de pesquisa, norteando e ajudando os processos de leitura; desenvolvem-se análises estruturais que permitam um estudo da psicologia das formas, suas funções e suas aplicações na construção das ilustrações e conclui-se por meio de análises semiológicas que ajudem a investigar os processos de produção de sentidos contidos em cada ilustração.

Como anexos trouxemos o texto do conto La Barbe-Bleue encontrado na edição Hetzel-Stahl de 1862, uma ilustração “inédita”, quer dizer, não entalhada e por isso não utilizada em nenhuma das edições do livro de Gustave Doré feita para o conto do Barba-Azul e a reprodução na íntegra da crítica de Sainte-Beuve, escrita para a revista Nouveaux lundis, de dezembro de 186110

Informamos que nas referências em que não for citado o tradutor, as traduções são de responsabilidade do autor da dissertação.

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2. LES CONTES DE PERRAULT: UM ESTUDO COMPARATIVO DAS EDIÇÕES DE 1697 E 1862

Les contes de ma mère l’Oie: Histoires ou contes du temps passé ou simplesmente Les

contes de Perrault é a obra mais conhecida de Charles Perrault, acadêmico e cortesão do reino

de Louis XIV, que chega ao século XIX como sinônimo de cultura popular. Adotado pelos românticos, seu modesto livrinho surgido em 1697 vai transformar-se na monumental edição Hetzel-Stahl, Les contes de Perrault, de 1862, pelas mãos de Gustave Doré. O presente capítulo pretende estudar as diferenças existentes entre as duas obras, primeiramente, demonstrando os mecanismos que levaram a pequena coletânea de contos populares a ser peça constituinte de um discurso a favor dos Modernos, em meio às querelas do século XVII; depois, como ela vai se tornar, quase dois séculos mais tarde, instância legitimadora de um discurso romântico que via no folclore a origem cultural de um país que buscava criar sua própria identidade. Ao concluirmos, verificaremos por meio da análise iconográfica das ilustrações dos frontispícios das duas edições, a de 1697 e a de 1862, como se operou a mudança de sentidos atribuídos a este livro de contos populares, passando da oralidade à escritura e constituindo-se, por fim, em gênero literário.

2.1.Charles Perrault

(25)

Juntos, os amigos estudam a Bíblia, autores clássicos, historiadores e escritores contemporâneos. Com a cooperação dos irmãos Nicolas e Claude Perrault fazem uma paródia do livro VI de A Eneida, de Virgilo e, mais tarde, publicam Murs de Troie, ou l’origine du

burlesque, primeira obra impressa de Perrault11

É importante notar que essas obras burlescas são publicadas durante os agitados anos das Frondas, guerra civil que une nobres, burguesia e povo contra o poder real, por causa da crise financeira que levou o reino a aumentar a carga tributária para cobrir os gastos excessivos do governo.

.

Através do burlesco, a família Perrault lutava, à sua maneira, contra as atitudes do governo de Mazarin. A existência desses textos ajudam a compreender o tipo de relação que Perrault mantinha com o povo e de onde viria seu interesse pelas tradições populares.

Em 1654, Pierre Perrault, o irmão mais velho de Charles, torna-se receveur général

des finances, cuja tarefa era a de cobrar impostos para o rei e coloca seu irmão caçula como

seu funcionário. Trabalhando por quase dez anos próximo ao governo, Perrault chama a atenção de Colbert, que buscava um secretário para a recém-fundada Petite Académie. Após um exame de admissão, torna-se seu secretário e entra também para o Conseil de bâtiment.

Com o passar dos anos, Charles converte-se numa espécie de braço direito do ministro Colbert, sendo o responsável geral pelas edificações reais, reorganizador e tutor da Petite

Académie ou academia das inscrições, onde escrevia prefácios para obras dedicadas à glória

do soberano e criava as divisas que eram inscritas nas medalhas e nas moedas reais, como forma de publicidade do poder do rei. Era também encarregado de administrar assuntos complicados, tais como o processo Fouquet12

11 Cf. DOTOLI, 1990, p.56.

, as amantes do rei e o sistema de distribuição de pensões.

(26)

Em 1671, apoiado por Colbert, foi eleito para a Academia Francesa com o objetivo de promover a reforma ortográfica e acelerar a realização do dicionário de língua francesa.

Aos quarenta e quatro anos casa-se e tem quatro filhos, aos quais vai se dedicar, cuidando de sua educação, após ter sido retirado inteiramente da vida pública com a morte de Colbert, em 1683.

2.2.A querela dos Antigos e Modernos

Em meados do século XVII, a cena literária francesa definia-se claramente em duas correntes distintas. De um lado os defensores dos Antigos, que sustentavam uma concepção de criação através da imitação dos autores da antiguidade e, do outro, os partidários dos Modernos, que defendiam o princípio da inovação na criação, adaptada à época contemporânea e às novas formas de expressão.

O domínio do espaço da academia e da corte francesa era marcado por disputas como

a Querelle du merveilleux chrétien em literatura (1653-1674), em que se questionava a

utilização dos mitos pagãos em favor da utilização de heróis cristãos e franceses e a Querelle

des inscriptions (1675-1676), em que se decidiu que os monumentos do reino passariam a ser

gravados em língua francesa e não mais em latim.

Mas é somente a partir de 1687 que vai se dar início ao que de fato ficou conhecido como La Querelle des Anciens et des Modernes, no momento em que Charles Perrault lança seu célebre poema intitulado Le siècle de Louis le Grand, que é lido em uma sessão da Academia Francesa.

(27)

comparações que situam o presente como igual ou superior ao passado, através da equivalência entre os séculos de Augusto com o de Louis le Grand.

La belle Antiquité fut toujours vénérable, Mais je ne crus jamais qu’elle fût adorable. Je vois les Anciens sans plier les genoux :

Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous ; Et l’on peut comparer, sans craindre d’être injuste, Le Siècle de Louis au beau Siècle d’Auguste13

Após a leitura de Le Siècle de Louis le Grand, Boileau, líder dos Antigos, se sente ofendido e, ao levantar-se no fim do discurso, reclama que tal leitura seria uma vergonha para a Academia.

A Querela opõe os adeptos da arte antiga, Boileau e Racine e os partidários da arte moderna, como Perrault e Fontenelle. Os Antigos reivindicavam a autoridade de Homero e Virgílio, baseados na ideia de que a antiguidade grega e romana representava a perfeição literária e que, por isso, seriam insuperáveis, devendo servir de referência. Imitar não significaria copiar servilmente, mas seguir o exemplo dos Antigos, quanto ao rigor na criação literária.

Os Modernos recusam-se a tomar a antiguidade por modelo, pois acreditavam que isto seria concordar com a ideia de que a arte alcançara um nível de perfeição inatingível levando a se desconsiderar todo tipo de criação literária contemporânea como também impedir sua evolução. Como eles acreditavam no progresso das ciências e das artes, o culto aos antigos teria por consequência uma certa esterilidade na criação literária. Os Modernos se julgavam possuidores de uma experiência própria, fruto do conhecimento acumulado por seus antepassados e não herdeiros de um modelo que se impunha como uma camisa de força através da releitura das poéticas tradicionais da cultura grega e latina.

(28)

O poema Le siècle de Louis le Grand configura-se numa espécie de prefácio do texto que Perrault vai publicar, posteriormente, em quatro volumes, chamado Parallèle des Anciens

et des Modernes, que confirma a importância de seu papel nas questões ligadas a seu tempo.

Charles Perrault ataca os Antigos através de um diálogo fictício, no qual comparava as realizações dos Antigos com os as dos Modernos em quase todos os aspectos da vida humana. A escolha do diálogo como forma de argumentação não era gratuita. Ela cumpria a função de legitimar o discurso moderno defendido por Perrault que demonstrava, assim, ter vasto domínio sobre os gêneros literários clássicos, o que lhe dava autoridade para questioná-los.

É dentro do Parallèle que aparece pela primeira vez a referência a Les Contes de ma

mère l’Oie, atestando que a querela seria, provavelmente, um dos fatores que levaram Perrault

a dedicar uma atenção especial à literatura popular. A referência ao que hoje chamamos de folclore seria para Perrault uma ocasião de aprofundar, de modo sutil, suas críticas às epopeias antigas14.

2.3. Les contes de ma mère l’Oie e a origem dos contos

Ma mère l’Oie é uma figura fictícia representativa do folclore francês; uma velha

camponesa, guardiã do rico tesouro que é a cultura popular. Esses contos, oriundos da tradição oral de se contar histórias em volta da fogueira, tinham uma função importante para os camponeses do Ancien Régime. Além de divertir, eles os preparavam para o mundo, ensinando uma forma de lidar com sua condição miserável e com as situações de injustiça daquela época. Não sendo moralizantes como as fábulas ou, como viriam a ser, suas versões transcritas por Perrault, elas tinham, sobretudo, a intenção de mostrar a realidade15

14 Cf. SORIANO, 1968, p.312.

.

(29)

Les contes de ma mère l’Oie é um livrinho que contém alguns desses contos populares, ingênuos e simples, isto é, sem ornamentos, que tinha a pretensão de simular a situação de enunciação dos contos tais como eram contados nas veillées.

Perrault os teria recolhido da tradição oral e adaptado para o gosto da audiência sofisticada dos salões, tendo como mérito o fato de compreender a mentalidade daquela gente do povo e de não ter se desviado da linha original das histórias, evitando, assim, comprometer a autenticidade e a simplicidade das versões orais com detalhes supérfluos.

Alguns historiadores e folcloristas como Marc Fumaroli e Marie Ramondt questionam a tese, fortemente romântica, de um Perrault amigo do povo e defensor do folclore nacional, imagem construída ao longo do tempo pelos prefácios das inúmeras edições dedicadas aos contos. Para eles, Charles Perrault, o cortesão, secretário de Colbert e arquiteto da política cultural de Louis XIV, seria a pessoa menos provável para fazer este trabalho de coletor de contos. Acreditam que Les contes de ma mère l’Oie seria o resultado do trabalho de um acadêmico que teria se inspirado nos contos italianos de Basile para realizar sua obra, fato este, evidenciado pelas histórias de maior êxito, no caso, Cendrillon, La Belle au bois

dormant e Le Chat botté16

No entanto, é bem provável que o próprio Perrault os tenha ouvido em uma situação comum a sua classe social. Através do contato com as amas de leite e as babás, encarregadas da primeira educação dos filhos da classe burguesa, os quais distraíam com canções e com contos populares. Assim, do mesmo modo que as veillées perpetuavam as tradições populares da aldeia, as criadas e amas de leite serviam de elo entre a cultura do povo e a da elite do

Grand Siècle

.

17

Les contes de ma mère l’Oie representava o ponto de contato entre universos

aparentemente distantes: o da cultura popular e a cultura da elite. Seria um erro, porém, .

(30)

atribuir a esta coleção a materialização de todo o vasto repertório popular do início dos Tempos Modernos. Ela representa não mais do que uns poucos contos escolhidos criteriosamente, segundo interesses de Charles Perrault. Seu desejo era provar que estes contos, vindos do povo e mesclados com conceitos cristãos, eram na verdade invenções dos trovadores (troubadours), que foram absorvidas culturalmente pelo povo, o qual se encarregou de os transmitir oralmente a cada geração. E que por isso, no contexto da querela, seriam superiores aos contos pagãos antigos.

2.4.O conto como modelo pedagógico

A voga dos contos de fadas surge no final do século XVII nos salões de Paris, sobretudo, o das preciosas, onde foram recebidos como uma literatura ligada às mulheres. Eles tinham como característica fundamental a presença do maravilhoso, o que para os meios eruditos representava crenças e supertições da massa ignorante. Sendo assim, os contos de fadas eram quase sinônimos de cultura popular, apesar de sua forma literária ter nascido nos salões aristocráticos como uma literatura de divertimentos.

Charles Perrault via nesses contos o exemplo perfeito de modelo pedagógico que desejava desenvolver. Em sua opinião, eles expressavam a infância da humanidade, e por isso, conviriam a todas as crianças, uma vez que a identificação entre esses dois públicos, o infantil e o popular, se baseava em suas características comuns de acordo com a visão da época, ignorância e credulidade18

O pensamento que levava a associar o público infantil ao popular, longe de ser depreciativo, significava que ambos necessitavam de educação. Perrault, que já se mostrava

.

(31)

interessado pelo tema desde o momento que resolvera se encarregar da formação de seus filhos, faz dele sua principal ocupação até o fim da vida.

Naquela época não existia uma literatura infantil propriamente dita ou que assim pudesse ser considerada. A criança ainda era vista como um adulto em miniatura e, por isso, os poucos textos que havia nesse sentido eram textos como Les aventures de Télémaque

(1699), de Fénelon, escrito especificamente para a educação do duque de Borgonha.

Necessitando demonstrar que os valores de seu século eram superiores aos da antiguidade, Perrault vai buscar na emulação da fábula, gênero antigo responsável pelo

docere, o modelo para a construção de seus contos, que seriam melhores, pois, além de

instruir, serviriam também para divertir. Assim, Perrault vai se utilizar de estruturas simplificadas, para criar um texto mais narrativo do que alegórico e, tal qual a fábula, vai recorrer ao emprego de morais no final de cada conto para garantir seu caráter educativo.

A edição original de Les contes de ma mère l’Oie surge em 1697 na forma de um pequeno livro ilustrado com frontispício e vinhetas gravadas acima do texto de cada um dos oito contos da coleção. Foi impresso em papel de baixa qualidade e obedecendo a um projeto estético deliberadamente criado para remeter a uma cenografia medieval que ainda continuava a ser empregada nas edições populares da época19

Perrault recria o mundo medieval através da evocação de um imaginário de florestas e castelos misteriosos, príncipes e princesas, fadas e ogros. Ele recorre ao uso de onomatopeias, jogos de palavras e emprega expressões populares arcaicas para construir, por meio de traços enunciativos, a figura da velha camponesa que conta suas histórias de memória. A projeção deste ethos, que seria o da própria mamãe Ganso, faz parte de uma enunciação que buscava mobilizar o leitor para aderir a uma época antiga de onde teriam vindo esses contos do tempo passado.

.

(32)

Do mesmo modo, as ilustrações de Clouzier apresentam-se como peças fundamentais dessa cenografia. No célebre frontispício encontram-se representados tanto a velha contadora de contos quanto seu seleto público, imagem de gerações de contadores anônimos responsáveis pela transmissão oral dos contos. As vinhetas conferem um efeito rústico ao livro devido, principalmente, à utilização da técnica de xilogravura de fio, técnica que consistia em se fazer o entalhe no sentido dos veios da madeira, produzindo uma imagem de alto contraste em preto e branco e que era comum na arte popular. Assim, texto e imagem se complementam, em benefício de uma estratégia que visa associar o gênero dos contos de fadas a uma herança cultural popular e nacional.

Fig.1

(33)

2.5.A edição Hetzel-Stahl

O livro Les Contes de Perrault, edição Hetzel-Stahl de 1862, ilustrado por Gustave Doré faz parte de um projeto pessoal audacioso do artista de ilustrar todos os grandes autores do cânone da literatura universal. Como já foi referido, a concepção do livro inseria-se em um projeto editorial de livros de luxo, dentro do conceito do livro como um objeto de arte, onde texto e ilustração eram colocados em pé de igualdade, e que seguia os mecanismos de produção restrita impostos pelas leis de mercado20

Tony Gheeraert descreve a edição como sendo esplêndida e “digna de ser vista, caso se tenha a oportunidade, pelo simples prazer de se conhecer uma bela obra”

.

21

Sainte-Beuve, em sua resenha do Nouveaux lundis, de dezembro de 1861

. Livro de grande formato, com dimensões de 32x27cm e impresso em papel de excelente qualidade, apresenta gravuras de páginas inteiras, hors-texte, autônomas em relação ao texto. As simples vinhetas de Les contes de ma mère l’Oie, edição original de 1697 multiplicam-se em quarenta e duas ilustrações, nesta edição, conquistando seu espaço dentro do livro e disputando importância com o texto.

22

Que luxo, que progresso! (...) aqui temos uma nova edição que deixa para trás todas as outras; ela é única, ela é monumental; um presente de rei. Cada criança tornou-se um delfim da França? – sim, no primeiro dia do ano, cada família tem o seu. (...) Um Perrault como nunca se viu até aqui e como não se verá mais.

nos dá uma ideia do aspecto grandioso e da recepção critica da obra, no século XIX.

Ele continua fazendo suas observações quanto à qualidade dos tipos, “que são amigos dos olhos” e por onde o “ar circula à vontade”; sobre o artista “tradutor superior e livre” que, com “a opulência de seus desenhos renova as feições desses humildes contos”.

20 Cf. KAENEL, 2005, p.123.

21 “Perrault illustré par Doré, ou la perfection du contresens”, conferência pronunciada em novembro de 2005, Maromme la Maine, IUFM de Rouen e publicada no site da Academia de Rouen em 2007, p.4. T. do A.

(34)

Um produto como este, de custo relativamente elevado, pertencia à classe dos livres

d’étrennes ou livres de prix do século XIX. Espécie de livros recompensa distribuídos aos

alunos mais destacados ao final do ano escolar. Enquanto os livres de prix se destinavam fundamentalmente às cerimônias escolares, os livres d’étrennes eram produtos lançados no mercado na véspera das festas de fim de ano, Natal e Jour de l’An constituindo-se num presente altamente requisitado pela família zelosa com a educação de suas crianças23

Pierre-Jules Hetzel, o responsável por esta edição, dedicava-se a desenvolver uma nova forma de se fazer livros para as crianças, desde que voltara do exílio em 1859. Ele acusava os livros infantis da época de serem "idiotas e de não terem nem gosto e nem perfume

.

24

Com seu ambicioso projeto de clássicos literários, Gustave Doré certamente visava uma clientela de bibliófilos e de leitores da alta burguesia. Les Contes de Perrault custava 60 francos e para termos uma ideia de quanto isto representava, 100 francos era o equivalente ao salário mensal dos trabalhadores do comércio na França entre os anos 1878 e 1884, enquanto os tipógrafos recebiam em torno de 50 francos por mês

". Para isso, recruta o que havia de melhor entre autores e ilustradores com o intuito de criar uma literatura infantil voltada para a instrução e a recreação, na forma de belos livros, de edições bem acabadas suscetíveis de serem adquiridos pelas escolas ou pelos pais, como estes cadeaux d'étrennes.

25

Sendo uma obra de caráter elitista, nem todos estariam de acordo com este tipo de publicação. O sociólogo francês Proudhon, que recebera um exemplar de Hetzel, demonstra através de uma carta toda a sua falta de entusiasmo com o livro:

.

Isso é lindo, caro e dispendioso. Se o senhor vendeu apenas mil destes, seu lucro já será considerável, sem ser exorbitante, mas creio que o senhor conseguiu mais, e aqui está o motivo: os tempos de pobreza são justamente os tempos de luxo. Aquele que não comprará um calendário de dois tostões, se presenteará com as quarenta e duas gravuras de Doré ( ... ). O amador terá

23 Cf. CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean, 1985, p. 425. 24Ibidem, p.424.

(35)

comprado um empastado. ( ... ) Dito isto, caro Sr. Hetzel, lhe perguntarei a quem o senhor destinou esta rica joia, ao ma endereçar. Se para mim, gostaria de salientar que eu sou pouco entusiasta de curiosidades caras, de bibelôs dispendiosos e que em minha biblioteca empoeirada, incompleta, descosida, não há nenhum lugar onde eu possa colocar o seu in-folio. ( ...) Se for para as minhas meninas , devo avisá-lo que elas estão em uma idade em que só podem receber presentes de seu papai, principalmente presentes tão caros como este.( ... ) Enfim, elas são incapazes de apreciar um livro assim, de outro modo que as crianças o apreciam, o que vale dizer que uma edição de 75 centavos, bastaria.26

A Edição de luxo promovida por Doré participa de um tipo de leitura ostentatória e mundana que explorava as novas capacidades financeiras de uma burguesia enriquecida pelo desenvolvimento econômico do Segundo Império. Livros que eram feitos para serem expostos sobre mesas num salão, muito mais para serem vistos e folheados do que para serem propriamente lidos27, este tipo de álbum aparece como ponto culminante da concepção

romântica que buscava aliar arte e indústria.

2.6.O livro de luxo e o livre de peintre

O século XIX apresenta uma revolução tecnológica que moderniza os modos de produção da indústria de livros. Novas máquinas e novas práticas que levam, como consequência, a novas estratégias comerciais. Desde os anos 1820, já era possível fazer interagir texto e imagem numa mesma página, em virtude da técnica da xilogravura de topo que havia invadido o mercado da edição e provocado, assim, uma mudança nas formas de se

26 “ Voilà qui est beau, qui coûte cher et revient cher. Si vous en avez vendu seulement Mille, votre bénéfice será déjà joli, sans être exorbitant ; mais je crois que vous avez placé davantage, et voilà pourquoi : les temps de paupérisme sont justement les temps de luxe. Tel qui n’achètera pas un calendrier de deux sous se donnera les quarante-deux gravures de Doré (...). L’amateur aura de la pâte pour son argent. (...) Cela dit, cher monsieur Hetzel, je vous demanderai à qui vous avez destiné ce riche bijou en me le faisant adresser. Si c’est à moi, je vous ferai remarquer que je suis peu amateur de curiosités chères, de bibelots coûteux, et que ma bibliothèque pouilleuse, dépareillée, décousue, n’a pas de place où je puisse mettre votre in-folio. (...) Si c'est pour mes filles, je dois vous prevenir qu’elles commencent à être d’un âge où elles ne peuvent plus recevoir de cadeaux que de leur papa, sourtout des cadeaux aussi chers que celui-là. (...) Enfin, elles sont incapables d'apprécier un pareil livre, autrement que ne l'apprécient les enfants, ce qui veut dire qu'une édition de 75 centimes, gaufrée, leur eût suffi”. Carta de Proudhon para Hetzel citada por KAENEL, 2005, p.412-413. T. do A.

(36)

fazer o livro. É cada vez mais frequente o uso de imagens que se tornam atrativos para as novas publicações.

Neste sentido, o livro romântico foi seu maior expoente, pois o ideal romântico de vulgarização da cultura seria posto em prática através das edições que utilizassem imagens como meio de facilitar a instrução para o povo. No entanto, para que isso acontecesse, era preciso resolver um dilema: como tornar tais edições acessíveis a todos uma vez que produzir livros ilustrados de qualidade custava caro?

A partir de 1860, o mercado vai se dividir nitidamente em dois, diversificando sua produção para atender a uma gama cada vez maior de leitores de todas as classes. Assim, o livro popular, de qualidade inferior e que será vendido a baixo custo, encontrará na

Bibliothèque des chemins de fer, de Hachette, seu maior representante, enquanto que o livro

de luxo, impresso em papel de boa qualidade e fazendo uso das mais modernas técnicas de reprodução, representará o esforço da indústria de livros para instaurar um mercado de elite, voltado para uma classe burguesa abastada.

Especializando-se cada vez mais na tentativa de suprir as demandas de uma clientela de bibliófilos e amadores de arte ávida por novidades, a indústria de livros faz surgir o livre

de peintre. Livro de caráter eminentemente artístico, ele vai apelar para o conceito de

produção restrita, através da destruição das matrizes originais após ser alcançado um certo número de cópias, tornando a obra rara, com o objetivo de aumentar seu caráter especulativo.

(37)

Ao invés do uso da xilogravura, técnica mais utilizada na indústria de livros por permitir grandes tiragens sem perda de qualidade, a opção pela água-forte fazia parte de uma estratégia da crítica de arte que buscava elevá-la à condição de obra de arte através do conceito de estampa original. Cada gravura a água-forte é um desenho original, pois não é possível estabelecer um controle sobre sua produção. Cada desenho apresenta características próprias que o farão único (porque cada água-forte é diferente devido à ação do ácido) e, ao mesmo tempo, múltiplo (porque se podem fazer várias cópias a partir da mesma matriz).

2.7.Ilustrar Perrault

O aumento do público consumidor de livros no século XIX não se dera pelas classes populares, recentemente alfabetizadas a partir da reforma do sistema educativo francês promovido pelo ministro Guizot (1787-1874), mas sim por uma pequena e média burguesia, desejosas de compartilhar os valores de uma elite letrada; e é em função delas que os editores desenvolvem novos gêneros e novas formas de livro.

Em relação ao livro destinado aos jovens, a intenção de Hetzel era criar uma opção para o tipo de literatura moralizante da época. Para isso, a instrução deveria apresentar-se com uma forma que provocasse interesse, caso contrário, fracassaria e se tornaria tediosa. Neste sentido, um livro como Les contes de Perrault parecia ser uma escolha coerente, uma vez que as ideias do acadêmico a respeito da educação atrelada à diversão eram semelhantes à do editor.

(38)

autores cânones da literatura, neste caso, uma obra que a tradição consagrou como literatura voltada para o publico infantil e que estaria dentro do contexto do desenvolvimento de um mercado de livros paradidáticos proporcionado pela lei Guizot de 1833.

Contudo, Doré não escolhera ilustrar Perrault apenas por julgá-lo parte do patrimônio literário universal. Todos os autores que se encontravam no seu plano de ilustração28

Primeiramente, devemos notar que a obra se dá de modo concomitante a L’Enfer, de Dante, que fora o ponto de partida para seu projeto de reclassificação no campo artístico

seriam dignos dessa honraria. Para entendermos a importância que ele atribuía ao texto é preciso considerar outros fatores que o levaram a fazer deste o segundo livro de seu ambicioso projeto de edições de luxo.

29

Enquanto executava intrepidamente às suas custas e assumindo todos os riscos e perigos a sua magnífica e sombria ilustração de Dante, Gustave Doré quis que ao mesmo tempo e no mesmo esplêndido formato fossem publicados, como um contraste e um contraponto, os contos de fadas de Perrault. (...) Ele queria também, ao mesmo tempo, acalmar seu lápis, saindo dos horrores um pouco monocórdios do Inferno e comprovar a diversidade do seu talento

. Lemos no prefácio da edição Hetzel, escrito pelo próprio editor, a seguinte afirmação:

30.

Nesse momento, o editor-prefaciador cria um cenário de equiparação entre os dois trabalhos, levando essa discussão para um nível mais elevado, de equivalência de valor simbólico entre os dois textos, e que envolve também a questão do artista capaz de lidar, ao mesmo tempo, com duas cenas genéricas totalmente diferentes. De um lado, a Divina Comédia, que é um épico cristão moderno e obra fundadora da identidade nacional e do idioma italiano; do outro, os contos populares, numa obra voltada para crianças.

28 Ver p.48. 29 Ver p.51.

(39)

Num momento em que as grandes nações europeias buscavam se afirmar através da busca por sua identidade, Les Contes de Perrault representava essa identidade nacional francesa, do mesmo modo que Dante representava a identidade nacional italiana.

Não podemos desconsiderar também que, como artista romântico, o conceito de Gustave Doré (fig.2) a respeito de Charles Perrault não diferia da opinião geral de seu grupo estético. Atribuía-se ao acadêmico, que no século XVII fora figura de proa na Querela dos antigos e modernos, o papel de folclorista e guardião da tradição popular. Desse modo, ilustrá-lo significava ligar-se a uma cultura popular e tê-lo como instância legitimadora de um discurso moderno a favor do progresso nas artes, combatendo o poder das instituições acadêmicas que regulavam a produção cultural.

Fig. 2

(40)

2.8.A simbologia dos frontispícios de Les contes de ma mère L'Oie e Les contes de

Perrault.

Em seu texto Mother Goose illustrated31, Ségolène Le Men nos sugere duas maneiras possíveis de trabalhar ao se realizar um estudo sobre ilustrações: uma delas é fazer a análise da narrativa de uma determinada história por meio das sequencias de imagens da edição, opção que escolhemos para analisarmos o conto Barba-Azul nesta dissertação; outro modo é investigar as transformações ocorridas em uma dada ilustração ao longo do tempo, justamente o que nos propomos a fazer agora com a ilustração dos frontispícios das edições de Les contes

de ma mère l’Oie, de 1697 (fig.3) e de Les Contes de Perrault, de 1862 (fig.4). Desse modo,

poderíamos tentar entender as mudanças de leitura conferidas pelos artistas Clouzier e Doré a este mesmo episódio e compreender efeitos de recepção por parte dos espectadores.

Fig. 3

CLOUZIER, Frontispício de Les contes de ma mère L’Oye. Paris. 1697.

(41)

A ilustração do frontispício de Les contes de ma mère l’Oie nos mostra uma cena familiar e intimista onde uma mulher, de perfil, está sentada em um banquinho, fiando com seu fuso e roca, ao mesmo tempo em que conta histórias para uma plateia atenta. Ela é composta por três jovens elegantemente vestidos, que contrastam com os trajes simples da camponesa, evidenciando sua condição burguesa.

Vemos um rapazinho ajoelhado que mantém as mãos sobre o colo da velha; ao seu lado, uma garota que conserva as mãos aquecidas por uma manta e um jovem de chapéu, sentado em uma cadeira, de costas para uma lareira acesa. Sobre esta, encontra-se um castiçal com uma vela reluzente. Há na cena ainda um gato peludo, de olhos abertos, localizado entre a cadeira do jovem e a lareira.

De acordo com Marc Soriano, os três jovens presentes na cena seriam os filhos de Charles Perrault32 e aquele, sentado de costas para lareira, provavelmente Pierre Darmancour, o filho a quem Charles atribuíra a autoria dos contos33

Ao fundo existe uma porta fechada e uma placa, colocada acima da cabeça dos personagens, onde podemos ler Contes de ma mère l’Oye. Esta inscrição tem um papel determinante na interpretação simbólica da imagem, pois levanta questões a respeito da autoria do livro. Ela proporciona uma associação direta com a personagem que conta as histórias e reforça a estratégia adotada por Charles Perrault de esconder sua identidade de autor, com a intenção de valorizar o aspecto da transmissão oral dos contos.

. Na cena, ele atua como uma testemunha ou uma espécie de autoridade que registra o que a velha conta.

A partir da ilustração poderíamos entender que o frontispício era um indicativo da maneira adequada de se ler os contos da edição. Ao representar um lar burguês em seu

32 Cf. SORIANO, 1968, P.318.

(42)

ambiente privado e aconchegante, onde a família se encontrava reunida em frente à lareira para ouvir histórias, ele fazia referências explícitas ao hábito medieval das veillées34

O maior obstáculo, segundo Darnton, seria a impossibilidade de se escutar as narrativas como eram feitas pelos contadores de histórias medievais.

. Para fruir da obra seria necessário reconhecer, na simbologia do frontispício, informações que indicassem que ela era um convite para se partilhar o modo de viver dos antigos camponeses ou ao menos buscar, imaginariamente, as mesmas circunstâncias propostas por ela, no que diz respeito à forma de leitura.

Por mais exatas que fossem as versões escritas dos contos, elas não poderiam transmitir os efeitos que deviam ter dado vida às histórias (...). As pausas dramáticas, as miradas maliciosas, o uso dos gestos para criar cenas e o emprego de sons para pontuar as ações. Todos esses dispositivos configuravam o significado dos contos e todos eles escapavam agora35.

Na opinião de Marin, não se tratava de um retorno à oralidade popular, tampouco de uma regressão de adultos ao estado infantil, mas sim, de um jogo de leitura capaz de construir e propor cenários eficazes para a apropriação da obra36

Como se tratava de contos ilustrados, primeiramente, dever-se-ia tirar partido dos desenhos; olhá-los enquanto se efetuava a leitura e, depois, recitar os contos em voz alta, numa atitude similar à da velha contadora de histórias representada no frontispício. Enfim, adotar outra atitude mental de recepção dos contos que ali estavam propostos, como um novo modo de literatura.

.

34 Reuniões junto à fogueira onde os homens consertavam suas ferramentas enquanto suas mulheres costuravam (Cf. DARNTON, 2010, p.32).

35Idem.

(43)

Fig. 4

DORÉ, Frontispício de Les contes de Perrault, Hetzel-Stahl. Paris. 1862.

O frontispício da edição Hetzel-Stahl nos apresenta uma cena bem mais iluminada do que a da edição original. Sua composição tem um papel fundamental na hierarquização do olhar e, portanto, na orientação de sua leitura. A ilustração preenche a página toda e oferece o ponto de vista do leitor infantil, através de um enquadramento em contre-plongée; suas linhas de força convergem para um determinado ponto do desenho que representa seu núcleo: ao traçarmos uma linha imaginária unindo todas as cabeças encontradas na cena, notaremos uma trajetória em espiral que vai circundar o livro, colocando-o no centro perceptivo do desenho.

(44)

paterna, reforça a ideia do caráter pedagógico do livro infantil, uma vez que a educação das crianças era basicamente uma das atribuições dadas ao sexo feminino.

A velha que conta histórias mantém aberto sobre os joelhos um livro que apenas ela toca, numa atitude reveladora de posse, de domínio. É a própria Mamãe Ganso da edição original dos contos! A representante da cultura popular vê-se agora retratada como uma figura pedagógica. Uma vovozinha sentada numa poltrona aconchegante onde crianças de várias idades se espalham a seu redor para ouvir seus ensinamentos. Os óculos que ela usa são o símbolo da cultura daquela que já leu muito. Ela desempenha a função de ligação entre o livro e a família. O médium responsável pela transmissão da essência sagrada da cultura popular para a cultura erudita.

A imagem do livro é o elemento focal da ilustração. Estando colocado no centro da página e cuidadosamente valorizado pela composição, ele brilha como se fosse um objeto mágico, encantando as pessoas ao seu redor.

A mulher que se encontra atrás é a mãe da família. Ela, que com os braços abertos faz a ligação entre a velha e as crianças, confere um aspecto poético à cena, pois representaria a estação intermediária entre a ingenuidade infantil e a experiência da velhice, reforçando um simbolismo de passagem temporal e completando o sentido de um hábito familiar que passa de geração para geração.

Os três jovens ouvintes do frontispício da edição original agora dão lugar a sete crianças, que representam o público ao qual o livro está endereçado: crianças de várias idades que vão do bebê, passando pela menininha, até o garoto. A grande quantidade de personagens em volta do livro demonstra o papel que a leitura pode proporcionar na união da família.

O conceito do frontispício da primeira edição de Les contes de ma mère l’Oie

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modificações que apenas reforçavam seu sentido icônico até o século XIX, quando então assistimos a uma etapa decisiva na transição dos sentidos conferidos aos contos, a partir do surgimento da literatura infantil como gênero literário.

Surgidos no século XVII, os contos de fadas eram um gênero moderno que pertencia à cultura dos salões, fundamentalmente o das preciosas, e que apesar de seu conteúdo moralizante permanecia sendo uma espécie de literatura de divertimentos. A mudança de sentido que eles sofreram foi produzida especialmente pela geração romântica que via em Charles Perrault um folclorista e salvador da cultura popular e no contexto da reforma do sistema educacional francês promovido pela lei Guizot, que fez surgir um mercado de livros escolares paradidáticos, no qual Les Contes de Perrault veio a se tornar um clássico.

A comparação entre os frontispícios dessas duas importantes edições registra a série de mudanças ocorrida na cultura da leitura durante esses dois séculos, separando as obras e marcando de vez a introdução dos contos de Perrault na literatura infantil. O frontispício da primeira edição desenhado por Clouzier incluía muitos detalhes que enfatizavam, sobretudo, sua origem oral. O da edição ilustrada por Doré era a culminação de todo o processo que levou à transformação de contos populares em obra de arte da literatura universal.

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3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO ARTÍSTICO FRANCÊS DO SÉCULO XIX.

A trajetória de Gustave Doré no campo artístico francês pode ser compreendida segundo o conceito de Pierre Bourdieu. De acordo com o sociológo, trajetória se refere à "sequência de posições ocupadas sucessivamente por um agente ou grupo de agentes, em diferentes estados e momentos do campo37

Cada deslocamento para uma nova posição implica a exclusão de um conjunto mais ou menos vasto de posições substituíveis e, com isso, um fechamento irreversível do leque dos possíveis inicialmente compatíveis, assinalando uma etapa do processo de envelhecimento social

", sendo que

38.

Seus contínuos deslocamentos através dos espaços dos possíveis, identificados no campo da produção de bens culturais, se configurariam em tentativas de reclassificação no campo artístico. A figura do ilustrador como profissional do campo da edição ainda estava em constituição no século XIX, encontrando-se em uma posição intermediária entre o artesão e o pintor. Doré, egresso do jornal, era consciente da hierarquia simbólica de seu métier que conferia ao caricaturista da imprensa uma posição dominada em relação ilustrador do livro e, a este, uma posição dominada em relação ao pintor acadêmico.

Desse modo, as tomadas de posição efetuadas por um artista ambicioso, capaz de reconverter seus capitais, sobretudo o simbólico do campo da edição, são parte de uma estratégia de se conseguir não apenas sucesso financeiro, mas prestígio social, no seu caso, o reconhecimento de seu talento como um grande artista por parte das instituições acadêmicas e da critica.

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3.1.Os anos na Maison Aubert

O episódio do encontro de Gustave Doré com Charles Philipon, que dará início a sua carreira artística, é uma construção narrativa elaborada pelo próprio Doré e propagada por diversos biógrafos ao longo dos anos. Ela segue o modelo criado por Vasari nas Vidas dos artistas que, por sua vez, era baseado no modelo das hagiografias medievais, das vidas dos santos. Uma narrativa construída a fim de apresentar o artista em potencial como um ser predestinado, encontrando na sua obstinação, a força necessária para derrubar barreiras e cumprir sua verdadeira vocação39

Em setembro de 1847, Gustave Doré e seus pais se encontravam em Paris para uma temporada de três semanas a fim de resolverem assuntos particulares. Encantado com a cidade, o garoto resolvera usar todos os artifícios para convencer sua família a permanecer por lá, pois ele já estava convencido de querer abraçar a carreira artística, embora essa ideia encontrasse resistência dentro de sua família. A Maison Aubert se localizava na place de la

Bourse, próxima ao hotel onde a família Doré estava instalada. Um dia, ao passar em frente à

famosa editora de Charles Philipon, que costumava exibir em suas vitrines as gravuras de seus lançamentos, Doré teve uma ideia: ao retornar para o hotel, faria alguns desenhos no estilo daqueles que vira expostos e os levaria para uma entrevista com o editor assim que tivesse uma oportunidade. No dia seguinte, fingindo-se indisposto para escapar de um passeio com seus pais, juntou seus desenhos e pôs em prática o seu plano. A reação de Philipon, durante o primeiro encontro com o jovem Doré, é assim descrita por Dan Malan:

.

O cavalheiro dos cabelos brancos não se impressionara tanto em sua vida. No momento em que se recuperava o suficiente para realmente prestar atenção nos desenhos, ele ficava ainda mais surpreso ao ver o quão bom eles eram. Não acreditava que aquele garotinho fosse capaz de realizar aqueles desenhos, principalmente quando soube que ele nunca tivera uma aula de artes. Ele insistia para que Doré fizesse mais alguns desenhos ali, naquele momento e chamava outros empregados para assistir. Imagine este grupo de

Imagem

ilustração de 1855. O trabalho encantou os críticos, pois não imaginavam que tais efeitos  fossem possíveis de serem conseguidos através da xilogravura

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