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Mudança no campo: da caricatura aos fólios literários

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 53-60)

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO

3.2. Mudança no campo: da caricatura aos fólios literários

Em 1849, portanto, ainda sob contrato com a Maison Aubert, Doré já se mostra decidido a abandonar a caricatura dita de circunstâncias, que faz para o Journal pour rire, para investir nas caricaturas de costumes, gênero de crônica social que estava em voga na França daquele tempo desde o surgimento da série de livros Les Français peints par eux-

mêmes (1839-1842). Em uma carta escrita ao pai, ele explica os motivos pelos quais resolve promover essa mudança em sua carreira e anuncia ainda a realização de novos projetos:

Submetera-me durante um tempo à caricatura de circunstâncias (...) e negligenciei meu talento aos acontecimentos da atualidade, pois sei o quanto as piadas circunstanciais têm pouca solidez; o quanto são efêmeras e

sucumbem de um dia para o outro. Preferi dedicar meu talento (correndo o risco de não ser publicado durante um tempo) à caricatura que tem por objetivo o estudo de costumes, caricatura que é de todo tempo e que será eterna. (...) As séries em que começo a trabalhar serão publicadas, em seguida, também em álbuns separados, publicação que me servirá ainda mais do que essa49 que o jornal lançará50.

A caricatura de costumes também era uma atividade que apresentava poucos riscos de melindrar as autoridades. Tratava-se de representar o lado pitoresco da sociedade. Ao invés de personalidades, anônimos eram retratados por desenhistas que se tornavam verdadeiros cronistas do quotidiano.

Somente após o fim de seu contrato com Philipon, entre 1854 e 1859, é que esses álbuns serão lançados. Trata-se de La Ménagerie Parisienne (1854), Les Folies Gauloises (1854) e Les Différents Publics de Paris (1859). Álbuns litográficos inspirados nos trabalhos de Daumier e Cham contendo páginas inteiras de desenhos satíricos que hoje servem de testemunhas da sociedade francesa do século XIX.

Em 1854 Doré realiza aquele que seria seu último álbum de arte sequencial: Histoire

de la Sainte Russie, seu primeiro e último livro de caráter político. Era uma obra de cunho patriótico lançada na época da guerra da Criméia. Contava uma história inverossímil feita com o intuito de debochar dos russos. Perdeu toda sua relevância ao final da guerra, não voltando mais a ser reeditada na França, até que, durante a primeira guerra mundial, foi descoberta e reutilizada pelos alemães para atacar a aliança entre franceses e russos51

Nesse mesmo ano, ainda pelo editor J. Bry, Doré ilustra Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, obtendo bastante sucesso, verificado na recepção entusiasmada de nomes como Théophile Gautier e da revista Le Mousquetaire, de Alexandre Dumas. Já em 1855, com Les

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49 Provavelmente o Album du Journal pour rire.

50 “J'avais cédé pendant un temps le pas à la caricature de circonstance ( . .. ) et j'ai négligé de fixer mon esprit sur l'actualité des événements, car je sais combien les plaisanteries de circonstance ont peu de solidité; combien elles sont éphémères et tombent d'elles-mêmes du jour au lendemain. J'ai préféré appliquer mon esprit (au risque de ne pas paraître pendant un moment) à la caricature qui a pour but l'étude des moeurs, caricature qui est de tout temps et qui sera de tout temps ( ... ) Les séries que j’entreprends paraîtront ensuite en autant d’albums séparés, publication qui me servira même beaucoup plus que celle qu’en fera le journal.” (KAENEL, 2005, p.399). 51Cf. MALAN, 1995, p.33.

Contes Drôlatiques, de Balzac, não repete o mesmo êxito, sua obra, porém, apresenta uma revolução em termos de ilustração. Os desenhos não eram mais submissos ao texto. O público deveria, antes de tudo, ter um olhar educado para compreendê-las, pois suas composições elaboradas necessitavam de um certo conhecimento para serem entendidas52

Por ocasião da exposição universal de 1855, Doré acredita estar preparado para efetuar um salto no campo da pintura. Investindo finalmente no gênero da pintura de história, ele consegue expor no Salão três telas a óleo que celebravam os grandes feitos da política militar de Napoleão III, porém suas obras passam quase que despercebidas.

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Aos vinte e três anos, qualquer artista que tivesse três telas selecionadas para um evento tão importante quanto o Salão já se daria por satisfeito, mas para um jovem ambicioso que já possuía certo prestígio por seu trabalho como ilustrador e que, por isso, acreditava que seu reconhecimento como pintor viria automaticamente, a frieza por parte da crítica fez com que ele se sentisse rejeitado como artista. Doré ignorava que o campo da pintura exigia de seus agentes capitais específicos os quais ele não possuía, como a chancela das instituições artísticas, a filiação a uma escola ou a proteção de um artista de renome que o legitimasse.

Insistindo numa atitude que certamente visava angariar a simpatia do Estado, ele envia para o Salão de 1857 mais uma enorme cena de batalha em homenagem ao segundo Império;

La Bataille d’Inkermann que, dessa vez, vai lhe render uma menção honrosa.

Naturalmente, as primeiras críticas positivas a respeito do trabalho de Gustave Doré vão acontecer justamente no meio próximo a Charles Philipon. Nesse mesmo ano de 1857, Félix Nadar vai dedicar seu Nadar Jury a Gustave Doré e, utilizando toda sua notoriedade para promovê-lo, ele vai apresentá-lo àqueles que “ditam a opinião dos outros”, especialmente, a Théophile Gautier53

52Cf. TROMP, 1932, p.15.

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53 Rascunho de carta de Nadar endereçada à Madame Doré: "Depuis quelques anées que je connais votre fils, Madame, il a toujours, absent ou présent, trouvé en moi un ami dévoué et un enthousiaste fervent. (...) Ce que je ne compte pas, ce sont les services que j’ai pu lui rendre comme admirateur de son talent. (...) Quand je lui ai

Gautier, um dos grandes nomes do romantismo francês, já havia construído uma sólida carreira na crítica dos Salões de pintura quando é apresentado a Doré. Desde o primeiro encontro, ele reconhece no jovem, a quem vai apelidar de Gamin de gênie, um potencial fora do comum, predizendo que em pouco tempo ele seria o maior pintor de sua época. Em 1856 e 1857 vai dedicar-lhe dois artigos, na prestigiosa revista L’artiste, da qual é editor, nos quais reconhece no jovem artista uma qualidade tão rara que não encontra coragem de censurá-lo por suas lacunas e imperfeições, sob pena de que, ao tentar corrigi-las, ele venha a desnaturar esse dom tão precioso que se chama imaginação54

Após ver suas expectativas frustradas com o Salão de 1855, Gustave Doré concebe a ideia de fazer suas ilustrações como se fossem pinturas. Se não era possível tornar o ilustrador famoso um pintor reconhecido, decidira então que faria de suas ilustrações, verdadeiras obras de arte, assumindo de vez o papel de promotor da xilogravura de topo.

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O ano de 1856 marcará uma virada tanto em sua obra gráfica quanto na história da ilustração. Com La légende du Juif errant (a lenda do Judeu errante) o ilustrador deixa de lado a vinheta romântica e passa a evocar a grande gravura de reprodução (tarefa destinada à calcografia) utilizando a xilogravura de topo para emular os efeitos do buril (fig.6). Esta obra vai provocar uma mudança em seu estilo de ilustrar e definir a estética que o consagrou.

No prefácio, Paul Lacroix define o livro como uma revolução no campo das imagens populares (l’imagerie populaire). Um grande desafio, sobretudo, para os artistas da xilogravura que segundo o bibliophile Jacob “tinham razão ao pensar que as imagens

conduit Th. Gautier, quand j'ai entraîné nuitamment, et à la chandelle, Préault dans son atelier, quand j'ai été lui quérir partout où ils sont, où ils me connaissent, où ils m'aiment et où ils me respectent, Madame, les hommes qui dictent l'opinion des autres et dont je savais que Gustave ne pouvait manquer de se faire aussitôt des amis, c'est pour moi que j'agissais, et il n'a pas a m'en savoir gré" (NADAR in KAENEL, 2005, p.404)

populares deveriam ser vistas como obras de arte” e que “para que se operasse uma revolução no campo da xilogravura, bastava apenas um trabalho bem sucedido55

A xilogravura ocupava uma posição inferior na hierarquia do campo da gravura estando ligada, em sua origem, às imagens de santo e a cultura popular. Posteriormente vai se destacar tanto no mercado de livros ilustrados quanto em jornais e revistas por se adaptar melhor à reprodução em série.

”.

A xilogravura tradicional, que Beraldi chamava de Gravure en fac-simile56

A partir da utilização de desenhos feitos a traço ou com aguada, diretamente aplicados sobre o bloco de madeira que devia ser entalhado seguindo a técnica da xilogravura de topo, surge a técnica chamada bois de teinte ou d’interprétation. Ela oferecia a possibilidade de representar uma gama de cinzas através de tramas elaboradas, produzindo efeitos que se aproximavam da gravura em buril. Os gravadores encarregados de executar tais desenhos deviam preservar fielmente os traços do artista, interpretando os meios-tons com grande habilidade.

, se assemelhava a um desenho a bico-de-pena, apresentando um violento contraste de preto e branco, cuja técnica consistia em se fazer o entalhe no sentido dos veios da madeira. Nos anos 1820, vai conhecer um desenvolvimento na França a partir da importação da técnica do topo, vinda da Inglaterra, em que o entalhe da madeira se dava transversalmente ao sentido das fibras, favorecendo uma imagem com traços precisos e delicados. Ela promoverá uma revolução no campo da edição ao permitir que texto e imagem fossem colocados no mesmo clichê tipográfico.

O sucesso desse novo modo de fazer xilogravura no mercado de livros ilustrados se deveu principalmente a Gustave Doré, porém, seu valor artístico era bastante contestado pelos

55"Ils s’est rencontré de notre temps trois artistes, trois graveurs, passionnés pour leur art et impatients de créer de grandes oeuvres, à l'exemple des vieux maîtres en bois. (...) Ils ont pensé avec raison que l'imagerie populaire devait se rattacher à l'art, et qu'il ne fallait qu'un heureux essai pour opérer une révolution complète dans la Gravure en bois". (DORÉ, 1856, p.6).

defensores da gravura tradicional que lhe opunham o argumento de que a xilogravura vivia do traço e que desde o momento em que ele era substituído por hachuras, a xilogravura perdia toda sua identidade, convertendo-se numa arte estranha que vivia da emulação de outras técnicas57

Doré não fazia qualquer esboço preliminar. Ele desenhava diretamente sobre a madeira, no seu caso o buis, que tinha a vantagem de poder ser trabalhado do mesmo modo que o metal graças a sua dureza. O buis devia ser preparado anteriormente com uma camada de cerusa ou gesso, possibilitando que o desenho fosse feito como sobre o papel. Com a ajuda de um pincel e nanquim, ele trabalhava e dava forma a suas figuras, aplicando pontos de luz com o guache. Ao final, detalhava as imagens com o uso da pena

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Este trabalho complexo exigia gravadores experientes e naquele momento Doré percebe que precisa desenvolver sua própria escola, com artistas selecionados e treinados por ele, a fim de alcançar os efeitos que desejava para suas gravuras e maximizar sua produção. Ele queria mostrar até onde poderia chegar a arte do ilustrador, dedicando para isto suas próprias finanças, seu trabalho e seu talento.

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O Judeu Errante é a lenda de um sapateiro judeu que debocha do Cristo ao vê-lo passar, carregando sua cruz, em direção ao monte Calvário. Jesus então lança uma maldição sobre este homem, que terá que caminhar até o final dos tempos, condenado a observar os sofrimentos do mundo, sem condições, no entanto, de remediá-los. Le Juif errant era uma narrativa bastante popular na França nos anos 1850, principalmente pelo sucesso do romance homônimo de Eugène Sue, publicado em 1844-1845 com ilustrações de Gavarni.

O livro La légende du Juif errant corresponde ao protótipo das edições de luxo dos grandes clássicos da literatura que Gustave Doré vai produzir, a partir de seu plano de

57Idem.

ilustração de 1855. O trabalho encantou os críticos, pois não imaginavam que tais efeitos fossem possíveis de serem conseguidos através da xilogravura.

A partir deste livro, Doré conseguirá um acumulo de capital econômico que vai garantir sua autonomia, permitindo, então, que ele escolha o que fazer e para qual editor trabalhar. Desse modo, começará sua cruzada de elevar a xilogravura, então atrelada à gravura popular, ao nível de uma obra de arte.

Fig.6

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 53-60)