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O sucesso inglês e Doré escultor

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 67-77)

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO

3.4. O sucesso inglês e Doré escultor

Entre 1856 e 1864, havia apenas quatro livros de Gustave Doré publicados na Inglaterra, porém, a partir de 1865, esse cenário vai mudar radicalmente. O mercado editorial inglês será invadido por uma enxurrada de títulos do ilustrador francês dentre os quais, Don

Quixote, Milton’s Paradise lost, The Doré Bible, La Fontaine’s fables. A editora Cassel será a responsável por cerca de 3/4 dessas edições, fazendo com que ela seja reconhecida como a sua editora “oficial” em terras britânicas. Ela vai se valer de todo tipo de publicação: fascículos, edições encadernadas, edições de luxo, edições populares e as distribuirá por todo o território inglês e, mais tarde, também nos Estados Unidos. O enorme sucesso levará as revistas de arte inglesa a descreverem o ano de 1866 como o Doré year o ano dourado para os editores britânicos de Doré70

La Sainte Bible ilustrada por Doré, primeiramente publicada na França em 1865 pela editora católica Mame, nasce como um projeto audacioso capaz de explorar todos os recursos da indústria de livros da época. A editora, que possuía uma papelaria, gráfica própria, ateliês de estereoscopia e de encadernação, cursos de desenho e de xilogravura,

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69Cf. KAENEL, 2005, p.504-505.

possibilitou a realização de um livro extremamente luxuoso, feito com papel especialmente criado para a edição e vendido por 300 francos. Na Inglaterra, ela é lançada em fascículos durante o ano de

70Cf. MALAN, 1995, p.77. 71Cf. KAENEL, 2005, p.412.

1866 e, no ano seguinte, publicada em uma edição de dois volumes chamada de The Doré’s

Bible, sendo prontamente adotada pelo público inglês.

Tamanha repercussão alcançada em terras inglesas levou a uma onda crescente de interesse por Gustave Doré e sua obra, fazendo com que se multiplicassem resenhas a respeito do artista em revistas especializadas de arte que não cansavam de louvar seu talento. No entanto, em meados de 1867, começam a surgir artigos que falam não mais sobre o quanto “Doré havia elevado a ilustração a um nível nunca antes sonhado72

Doré acabara de submeter novas telas ao Salão de pintura de Paris, sendo novamente execrado pela crítica de arte francesa. Porém, jornalistas britânicos que tinham ido cobrir o Salão, escreveram críticas diametralmente opostas sobre suas telas, cobrindo-o de elogios, afirmando não se tratar apenas de um excelente ilustrador, mas também de um grande pintor.

”, mas sim, abordam pela primeira vez seu trabalho como pintor.

Os britânicos pareciam não se alimentar dos mesmos preconceitos em relação às pinturas de Doré do que os franceses, talvez por o terem conhecido quando já era o ilustrador mais famoso do mundo, enquanto que os franceses lidavam com suas pretensões artísticas de grandeza desde os tempos de caricaturista do jornal.

A recepção positiva de seus trabalhos na Inglaterra o levou a uma primeira viagem a Londres, em 1868, para participar de uma exposição na Egyptian Hall, na qual se encontrava seu famoso Dante et Virgile, La fille de Jephté (uma cena bíblica) e o polêmico Le Tapis

vert73

72MALAN, 1995, p.77.

. Apesar da repercussão medíocre, dois comerciantes ingleses do mercado de artes, Fairless e Beeforth, aproximam-se de Gustave Doré e conseguem convencê-lo a ceder, por mais alguns meses, suas obras para uma outra exposição, agora na German Gallery, mais de

73Le Tapis vert foi uma obra bem contestada no Salão de 1867 por retratar um tema mundano como o jogo. (Cf. KAENEL, 2005, p.506).

acordo com o gosto do público inglês ou com o que ele esperava ver de Doré, que tanta fama desfrutava por causa de sua Bíblia ilustrada.

Com o intuito de promover esta exposição, eles encomendam uma grande pintura a óleo chamada Le triomphe de la chrétienté sur le paganisme e Gustave vai ceder-lhes também um busto seu e se comprometer a pintar outros quadros também de temática religiosa, que serão a base das exposições permanentes de Doré em Londres.

A exposição se revela, desta vez, um imenso sucesso levando os dois comerciantes a proporem uma sociedade a Gustave Doré, onde o artista se comprometerá a realizar ao menos um quadro por ano, além de fornecer outros trabalhos como aquarelas e água-forte, tudo isso concomitantemente com sua atividade de ilustrador. No ano seguinte eles vão ocupar definitivamente o espaço da German Gallery e transformá-la em Doré Gallery, facilitando assim a venda de seus produtos de arte na Inglaterra.

Doré se torna uma celebridade em todo o país. Suas visitas anuais serão verdadeiros acontecimentos sociais, em que fará amizades importantes como a família do príncipe de Gales. “Seu retrato se encontra espalhado por toda parte e não raro é possível encontrar alguma criança ou mulher do povo capaz de reconhecer seu rosto ou gritar seu nome74

Em 1869, a Doré Gallery era conhecida como a maior coleção de pinturas religiosas do mundo. Uma visita à galeria chegava a ser considerada uma peregrinação recomendada por líderes religiosos que muitas vezes iam pessoalmente como guias turísticos e onde, comumente, pastores ministravam sermões diante dos quadros

”. Este sucesso na Inglaterra talvez seja a explicação para o fato de duas de suas biografias fundamentais, ainda durante o século XIX, terem sido publicadas primeiramente em língua inglesa; uma feita por um escritor inglês, Blanchard Jerrold e a outra, por uma jornalista americana, Blanche Roosevelt.

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74ROOSEVELT, 1887, p.291.

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Durante sua temporada em Londres, um grupo de discussão foi formado em torno de suas famosas pinturas. Uma questão então foi levantada: dentre as mais importantes passagens bíblicas, qual ainda não havia sido representada? O Reverendo Frederick Harford, um amigo de Doré, afirmou que a única cena que ele não se lembrava de ter visto era a do momento em que Jesus Cristo deixava o palácio de Herodes em direção ao Calvário, passando pelo meio da multidão76. Seduzido pelo suposto ineditismo da obra, Gustave Doré, imediatamente, se pôs a elaborar seu gigantesco quadro de 6x9 m, dando origem a uma de suas mais famosas pinturas

Le Christ quittant le prétoire (fig.8), que só será concluído em 1872, após o fim da guerra franco-prussiana. Desse modo, Doré finalmente encontrava na sua relação com a Doré

Gallery o mecenato que desejava da Igreja. A galeria lhe encomendava frequentemente telas de pintura religiosa que faziam grande sucesso junto ao público inglês, rendendo-lhe inclusive o apelido de Painter-preacher.

Fig.8

DORÉ, Le Christ quittant le prétoire, 1872.

L’entrée du Christ à Jérusalem é uma pintura irmã de Le Christ quittant le prétoire, tanto por suas dimensões quanto por sua composição, exibida no Salão de 1877. Novamente Doré é recebido com grande entusiasmo pelos críticos britânicos, que o saúdam como um dos maiores pintores franceses do século XIX, contrastando com a falta de entusiasmo e até mesmo o deboche dos críticos franceses que naquela época já se mostravam aborrecidos com o nível de popularidade alcançado por Doré, na Inglaterra.

A diferença de opinião se intensificara ao ponto de os britânicos, cada vez mais entusiastas de Doré, fecharem os olhos para graves defeitos técnicos de suas pinturas, preocupados que estavam em apenas louvar o aspecto dramático das cenas. Para eles, o fato de suas pinturas se assemelharem a uma “ilustração aumentada” significava que elas eram tão boas quanto suas ilustrações. Já para os franceses isso significava que elas eram terríveis.

Anne Roquebert, pesquisadora da obra de Gustave Doré, afirma que é a mistura entre realismo e simbolismo, tão contestada pela crítica de arte francesa que será apreciada pelo público inglês. Para ela, não é de se admirar o sucesso de Doré em terras inglesas, pois, em sua opinião, há correspondência entre a arte do pintor alsaciano e os Pré-Rafaelitas77

Gustave Doré não era um religioso praticante como se poderia supor. Pelo contrário, de acordo com sua namorada da época, a atriz Sarah Bernhardt, ele estava mais para um “místico hedonista

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77 "Pour Anne Roquebert, autre exégète de l'oeuvre du Strasbourgeois, c'est au contraire ce mélange entre réalisme et symbolisme, si contesté par la critique de Paris, qu'ont apprécié les Anglais. Ce succès n'est pas étonnant, selon elle, car « il existe des "correspondances" entre l'art du peintre alsacien et les oeuvres des Préraphaélites » dont la peinture repose sur une étrange alchimie entre réalisme et symbolisme." Anne Roquebert, « Gustave Doré, une vie d'artiste », dans L'Enfer Doré, Dante et Virgile dans Le neuvième cercle de l'Enfer, avec Jean Lacambre et Sylvie Carlier, monastère royal de Brou, Bourg-en-Bresse, Éditions Fage, 2005, p. 18. (Citado por LECLERC, 2012, p.223-224).

”. De fato, Doré apenas se aproveitara da oportunidade que caiu em seus braços, que o fez tornar-se um pintor de temas bíblicos e alcançar grande popularidade na Inglaterra, graças a sua bem sucedida Bíblia ilustrada. Porém, há uma grande diferença em relação a esses dois tipos trabalho; enquanto a Bíblia de Doré tem sido impressa e reimpressa

em vários países ao longo dos anos, o sucesso de suas pinturas religiosas foi um fenômeno de curta duração, típico do século XIX e específico da sociedade vitoriana, sendo estas obras hoje praticamente desconhecidas.

Mas não só de pintura religiosa viverá Doré durante esse tempo. Ao dedicar-se cada vez mais à água-forte, ele contribuirá com uma gravura para o livro Sonnets et eaux-fortes (1869), marco no estabelecimento da gravura água-forte como estampa original e considerado o primeiro livre de peintre79

London, tecnicamente, é considerado um livro seu, embora tanto a ideia quanto o texto sejam de seu amigo e escritor Blanchard Jerrold, o mesmo que fará uma de suas primeiras biografias póstumas. A ideia era tirar partido da fama que Doré desfrutava na Inglaterra naquele momento para que, com sua genialidade artística, traçasse um olhar profundo e crítico sobre a sociedade inglesa da era vitoriana, retratando tanto os segmentos ricos quanto os pobres, lugares famosos e bairros miseráveis, a alta sociedade e a indigência.

; a guerra Franco-prussiana, em 1870, vai lhe inspirar quadros como La Marseillaise (1870) e L’Énigme (1871); de sua relação com os ingleses surgirão ainda dois álbuns importantes em sua trajetória London, a pilgrimage (1872) e The rime of

ancient mariner (1876).

Grande parte da crítica inglesa, que normalmente lhe era favorável, não aprovou desta vez seu trabalho que foi considerado de mau gosto e de certa forma injusto com a cidade que tão bem o acolhera. O realismo com que Doré apresentava as mazelas da cidade industrial chocara a sociedade londrina tão acostumada com seu universo fantástico.

Considerado uma referência visual sobre a Inglaterra do século XIX, o significado social deste álbum de Doré pode ser medido pelo modo com que frequentemente ele é relacionado ao trabalho do escritor inglês Charles Dickens, e a indústria cinematográfica foi

especialmente feliz ao se amparar em suas ilustrações para construir, nos anos 1940, os cenários e o ambiente dos filmes Great Expectations e Oliver Twist80

London, a pilgrimage foi publicado primeiramente em Londres durante o ano de 1872, em 12 fascículos, e depois em forma de álbum. Na França, foi lançado pela Hachette apenas em 1876, porém com texto do escritor Louis Enault

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Quanto a The rime of ancient mariner, pode-se dizer que se constituiu da primeira e última experiência de Gustave Doré como editor. Doré tinha muito cuidado com seus trabalhos e frequentemente entrava em conflito com seus editores por discordar de questões relacionadas aos direitos de publicação. Aproveitando-se do espaço de que dispunha agora na

Doré Gallery, resolve então produzir e editar por conta própria seu livro, utilizando a galeria como ponto de venda. Diferentemente do seu bem sucedido livro Inferno, a experiência revela-se um verdadeiro fracasso, terminando com uma grande quantidade de livros encalhados.

. Apesar de não ter sido tão popular quanto seus outros trabalhos, o álbum teve admiradores importantes como o pintor Vincent van Gogh que, impressionado com a gravura The Newgate prison yard, utilizou-a como modelo para fazer seu quadro Prisioners Exercising (1890).

É possível que a publicação não tenha vendido bem não só por causa de sua inexperiência como editor, que não conseguiu distribuir e promover o livro de maneira adequada, mas também em função de um projeto editorial que se mostrou equivocado.

Primeiramente tratava-se de um poema sem muita relevância até a metade do século XIX82

80Cf. MALAN, 1995, p.129.

; depois, apresentava um projeto gráfico sem atrativos visuais, sem elementos decorativos, muito embora o papel fosse de boa qualidade; a encadernação estranha que dava a impressão das páginas estarem rasgadas ou soltas dentro o livro ao invés de costuradas, e

81Ibidem, p.127. 82Ibidem, p. 131.

por último, o fato de ser uma edição muito cara para um livro tão fino83

O ano de 1877 marca o início de sua carreira de escultor, à qual vai se dedicar pelos seis anos restantes de sua vida e que será sua última aposta visando o reconhecimento por parte das instituições oficiais.

. O projeto provavelmente tinha a intenção de permitir que as gravuras fossem destacáveis, reforçando seu conceito de produto de arte, mas acabou se mostrando ineficaz como um produto editorial.

Foram mais de trinta trabalhos, dos quais, a grande maioria era de alegorias que portavam as mesmas marcas de fantasia e originalidade de suas pinturas e, consequentemente, atraíam o mesmo tipo maldoso de crítica em que era acusado de fazer “ilustrações de gesso” ou em três dimensões, com o mesmo intuito de sempre: atingi-lo como artista ao acusá-lo de ilustrador.

La Parque et l’Amour, exibida primeiramente no Salão de 1877, teve, no entanto, uma boa repercussão. A revista La vie parisienne sugere inclusive que sua estátua fosse colocada sobre a tumba de Alfred de Musset84

Nesse mesmo ano ele cria La Gloire, uma escultura que contava a história de uma mulher alada (a glória) que ao abraçar por trás um belo jovem, envolve-o com os louros da vitória, cravando-lhe um punhal na altura do coração. Uma peça em que Doré deixava entrever, claramente, suas desilusões com a carreira artística ao se fazer representar na figura do jovem.

, ideia esta que vai deixar Doré entusiasmado, uma vez que era um grande desejo seu decorar algum lugar público, fato que só vai se concretizar, depois de sua morte, quando da inauguração do monumento a Alexandre Dumas. A escultura foi depois reexibida na exposição universal de 1878, onde recebeu uma menção honrosa.

83Ibidem, p. 133.

La Madone, de 1880, era uma escultura tradicional que representava Maria segurando o menino Jesus em seus braços. Apresentava um Doré de volta aos temas religiosos, só que, desta vez, voltado para suas origens católicas. O traço original dessa obra seria o modo como o menino Jesus está representado; de braços abertos como se antevisse, com seu movimento, a crucificação. Para a surpresa do artista, a escultura foi bastante elogiada pela critica e premiada com uma medalha de terceira classe no Salão, gerando rumores de ser uma espécie de compensação pela não premiação de La vigne, um grande vaso ornamental que fizera sensação na exposição universal de 187885

Em 1878, um comitê formado por gente de todas as classes, como escritores, comediantes, pintores, escultores, editores e banqueiros, havia sido criado para desenvolver o projeto de uma estátua em homenagem a Alexandre Dumas pai (fig.9). Ao tomar conhecimento do fato, Doré apresentou prontamente o projeto de um monumento para o qual se baseara em um sonho contado por Dumas pai a seu filho. Assim, o monumento se dividia em três partes: Alexandre Dumas sentado no topo com a pena na mão, tendo abaixo e na sua frente um grupo de três pessoas comuns, sentadas e lendo um livro, que simbolizaria o sucesso do escritor junto ao público, e atrás, representado de corpo inteiro, seu famoso d’Artagnan (fig.10).

. Uma cópia dessa escultura se encontra ornamentando o túmulo da famosa cortesã Alice Ozzy, no cemitério do Père Lachaise de Paris.

A intenção original era, baseado no projeto de Doré, encomendar a escultura a um outro artista, mas o fato é que, em 1881, o comitê não conseguira arrecadar a quantia suficiente de dinheiro para a empreitada. Foi então que, alegando também ser um escultor, Doré se dispôs a fazer o trabalho de graça em homenagem ao amigo morto. O monumento

para Alexandre Dumas é considerado a maior escultura de Gustave Doré e foi inaugurado na Praça Malesherbes, dez meses após sua morte.

Fig.9

DORÉ, Monumento a Alexandre Dumas, Place Malesherbes, 1883.

Fig.10

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