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Ilustração: Discurso de escrevência, discurso de escritura

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 82-87)

4. O DISCURSO DO ILUSTRADOR

4.2. Ilustração: Discurso de escrevência, discurso de escritura

Compreendemos as ilustrações como discurso enquanto pertençam ao campo da produção artística, porque é durante a produção que o artista detém o controle de sua obra.

Explicando melhor, a ilustração é um produto das escolhas estéticas operadas pelo ilustrador que dentro do seu nível de conhecimento, de sua liberdade criativa, seleciona livremente os códigos, os signos que vai utilizar em sua criação. Ele os organiza dentro de um projeto que entendemos ser intencional; se é um projeto, supomos a existência de um pensamento por detrás que o estrutura e o elabora com uma determinada finalidade. Percebemos haver nele uma escritura transitiva portadora de mensagem90

Essa intencionalidade, se de fato existe, é consequência de um posicionamento enunciativo que nos permitirá compreender este trabalho como discurso, pois como nos ensina a crítica formalista; todo dizer é resposta, todo falar é dialógico. Estamos sempre falando para alguém, respondendo alguma coisa. Neste sentido, ao se sentir mobilizado, o autor é levado a tomar a palavra e produzir, na enunciação, seu discurso, exercendo influência sobre uma determinada audiência a fim de fazê-la aderir ao universo de sentido proposto por ele. Para Maingueneau, isso se deve à escolha do ethos que o artista vai projetar e que demonstra seu desejo de transmitir algo.

e construída com a intenção de comunicar.

O leitor como consumidor de imagens participa da construção desse discurso do ilustrador no papel de coenunciador, através do reconhecimento dos traços enunciativos do artista que entendemos serem produto das instâncias formadoras do indivíduo artista, que vão se refletir em seu estilo, no seu modo de fazer e suas preferências estéticas. Essas instâncias seriam advindas, sobretudo, de seus habitus e capitais cultural, econômico, social e simbólico. Recorrendo à teoria bourdieusiana, definiremos habitus como:

Sistema de disposições duráveis adquiridos pelo indivíduo no curso dos processos de socialização que gera e organiza as práticas e as representações dos indivíduos e dos grupos, funcionando como princípios inconscientes de ação, operação e de reflexões e moldam uma visão de mundo91.

90 PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 37. 91 BONNEWITZ, 2002, p.60.

O grupo social do qual a família de Doré fazia parte era a média burguesia. Originário da Alsácia, região fronteiriça entre França e Alemanha, a obra de Gustave Doré traz marcas da cultura germânica e seu imaginário romântico. As paisagens montanhosas, as florestas e a arquitetura gótica da Catedral de Estrasburgo foram referentes visuais de sua infância que se revelaram mais tarde nas suas escolhas estéticas92

Como foi referido no capítulo anterior, seu pai, um engenheiro civil, desejava para o filho uma educação politécnica e que seguisse a carreira na engenharia. Sua mãe vinha de uma família aristocrática. Seu avô maternal, um grand bourgeois, seria para Doré a figura modelar de comportamento e de gosto pelas artes

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93. Esse habitus de grupo familiar contribuiu

com o acúmulo de capital cultural de Doré que, mais tarde, completará sua formação ao estudar no Liceu Charlemagne, tradicional instituição de ensino, localizada em Paris, onde também estudaram os poetas românticos da boemia dos anos 1830 como Gérard de Nerval (1808-1855) e Théophile Gautier94

Aos 15 anos ele surge fazendo caricaturas e ilustrações de humor para o Journal pour

rire de Charles Philipon (1800-1861). Era tratado como o menino prodígio da Maison Aubert, que dava prosseguimento à concepção de livros ilustrados de Töpffer (1799-1846), mais tarde tido como embriões da Bande dessinée, sendo considerado um dos pioneiros das histórias em quadrinhos

. O Liceu, fundado por Napoleão Bonaparte, tinha como modelo os estudos clássicos dos mais tradicionais, de acordo com o modelo renascentista e foi lá que Doré tivera formação nas humanidades com conhecimento, sobretudo, em arte e literatura. 95 92 TROMP, 1932, p.8. . 93 Cf. KAENEL, 1987, p.44. 94 Cf. MELLO, 2007, p.168. 95 PICKFORD, 2007.

Quando inicia sua carreira nos Salões de pintura nos anos 1850, Doré é apontado pela crítica de arte ligada à estética romântica como o Delacroix das gerações futuras96, obtendo a proteção de críticos influentes da época como Gautier e Nadar (1820-1910), e sendo apadrinhado por Paul Lacroix, o bibliophile Jacob (1806-1884); agentes sociais que ajudam a promover sua imagem numa rede discursiva que intenta atribuir a ele a imagem de Gênio. Imagem frequentemente reforçada pelo próprio Doré como sua identidade, seu estilo97

O estilo do artista é devido à sua mitologia pessoal, suas instâncias formadoras; e os valores que se projetam a partir dele estão ligados ao habitus como valores que são introjetados, aprendidos dentro de uma sociedade. Na retórica da imagem, Barthes define estilo pelo viés da recepção, como “um sentido segundo, cujo significante é um certo tratamento da imagem sob a ação de seu criador e cujo significado estético ou ideológico será compreensível pela sociedade que o recebe”

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Estilo é o que permite a identificação de um artista, é sua marca pessoal que leva à criação de um significante novo, sendo este sua escritura. Ele abre portas para a catalogação e filiação de sua produção a um campo discursivo, induzindo no leitor um ethos prévio que indica um posicionamento enunciativo. A “marca” que Doré traz do campo da edição é a do ilustrador romântico, do artista bem sucedido, que se converte, então, em forte capital simbólico.

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A genialidade que se atribuía a Doré era a marca de sua originalidade. Sua capacidade inventiva estava ligada à ideia de um talento inato. Ele era aquele capaz de criar a partir de sua própria alma, de suas visões interiores e não de modelos prontos para serem imitados. Como um autodidata orgulhoso, Doré jamais admitiu ter recebido alguma instrução artística ou passado por nenhuma escola99

96 Cf. KAENEL, 2005, p.407.

. O objetivo dessa rede discursiva da qual faziam parte os

97 Ibidem, 2005, p.406. 98 BARTHES, 1990, p.11. 99 MALAN, 1995, p.31.

críticos românticos e o próprio Doré era atribuir-lhe a imagem do artista romântico por excelência.

Os românticos entendiam gênio como uma marca de exceção. O artista como um ser dotado de genialidade é uma potência criadora, que tal qual um deus é capaz de criar a partir do nada. O olhar romântico, que conferia ao artista essa capacidade de criação ex-nihilo, contamina o autor como a figura de um demiurgo e é contra este imaginário cristalizado de autor a que Barthes vai se opor.

Quando escreve a respeito da morte do autor, Barthes quer mostrar que a criação não parte dele como uma origem, assim como o mundo partiria de Deus. A criação se dá a partir de elementos que nos foram dados pela sociedade, “fruto de múltiplas escrituras, oriundas de várias culturas e que se encontram em diálogo umas com as outras”100; e o autor, como figura personificada do criador, deve apagar-se para que a obra sobreviva. Ele indica a necessidade de se colocar a própria linguagem no lugar daquele que era até então considerado seu proprietário; “É a linguagem que fala, não o autor”101

O autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujet”, não uma “pessoa”, e esse “sujet” vazio, fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la

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102.

Trata-se de retirar do sujeito (autor) seu papel de fundamento originário e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso. Para Foucault, o desaparecimento do autor permite descobrir a função autor que ele resume como

ligada ao sistema jurídico e institucional que contém, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações especificas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar

100 BARTHES, 2004, p.64. 101 Ibidem, p.59.

simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar103.

Mas como podemos relacionar o caráter discursivo do trabalho do ilustrador com a natureza simbólica da imagem? Para isso, consideremos as ilustrações como o lugar onde o discurso vai se manifestar.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 82-87)