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Os anos na Maison Aubert

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 47-53)

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO

3.1. Os anos na Maison Aubert

O episódio do encontro de Gustave Doré com Charles Philipon, que dará início a sua carreira artística, é uma construção narrativa elaborada pelo próprio Doré e propagada por diversos biógrafos ao longo dos anos. Ela segue o modelo criado por Vasari nas Vidas dos artistas que, por sua vez, era baseado no modelo das hagiografias medievais, das vidas dos santos. Uma narrativa construída a fim de apresentar o artista em potencial como um ser predestinado, encontrando na sua obstinação, a força necessária para derrubar barreiras e cumprir sua verdadeira vocação39

Em setembro de 1847, Gustave Doré e seus pais se encontravam em Paris para uma temporada de três semanas a fim de resolverem assuntos particulares. Encantado com a cidade, o garoto resolvera usar todos os artifícios para convencer sua família a permanecer por lá, pois ele já estava convencido de querer abraçar a carreira artística, embora essa ideia encontrasse resistência dentro de sua família. A Maison Aubert se localizava na place de la

Bourse, próxima ao hotel onde a família Doré estava instalada. Um dia, ao passar em frente à famosa editora de Charles Philipon, que costumava exibir em suas vitrines as gravuras de seus lançamentos, Doré teve uma ideia: ao retornar para o hotel, faria alguns desenhos no estilo daqueles que vira expostos e os levaria para uma entrevista com o editor assim que tivesse uma oportunidade. No dia seguinte, fingindo-se indisposto para escapar de um passeio com seus pais, juntou seus desenhos e pôs em prática o seu plano. A reação de Philipon, durante o primeiro encontro com o jovem Doré, é assim descrita por Dan Malan:

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O cavalheiro dos cabelos brancos não se impressionara tanto em sua vida. No momento em que se recuperava o suficiente para realmente prestar atenção nos desenhos, ele ficava ainda mais surpreso ao ver o quão bom eles eram. Não acreditava que aquele garotinho fosse capaz de realizar aqueles desenhos, principalmente quando soube que ele nunca tivera uma aula de artes. Ele insistia para que Doré fizesse mais alguns desenhos ali, naquele momento e chamava outros empregados para assistir. Imagine este grupo de

adultos observando, boquiabertos, aquele menino que fazia sketch atrás de sketch em segundos. Eles ficaram surpresos tanto pela sua confiança quanto por seu considerável talento; ele estava tão à vontade quanto se estivesse em casa brincando. (...) Paris nunca vira nada parecido, um verdadeiro Mozart com um lápis40.

Philipon olhava com atenção e boa vontade seus croquis enquanto o questionava sobre sua situação. No fim da entrevista, ao se despedir de Doré, deu-lhe uma carta na qual convidava seus pais para uma entrevista. Sua atitude mudara de uma descrença inicial para o fascínio. Não era sua intenção permitir que o garoto fosse embora sabendo que tinha uma mina de ouro em suas mãos. E então, sendo bastante insistente e utilizando todos os argumentos que pôde encontrar, Philipon conseguiu desfazer os receios dos pais de Doré de deixá-lo ingressar na carreira artística e pediu que lhe permitissem ficar em Paris, alegando que, desde aquele momento, ele já poderia fazer uso de seus desenhos e pagar por eles41

Uma versão menos fantasiosa dá conta de um encontro promovido, a princípio, pelo proprietário do apartamento em que a família Doré estava hospedada. Sua mãe, Alexandrine, foi quem levara os cadernos que continham os primeiros desenhos de seu filho, que se inspirava nos trabalhos Grandville, Töpfer e Cham, e entre os quais já se encontrava Les

travaux d’Hercule, seu primeiro álbum que seria publicado ainda naquele ano

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De qualquer modo que tenha ocorrido, o encontro se deu no momento preciso em que Philipon, o rei da caricatura, procurava caricaturistas para o lançamento de seu Journal pour

rire, e o velho editor reconhecia naquele garoto as qualidades necessárias para sua nova publicação; frescor de uma novidade e não envolvimento político, o contrário do que

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40 “The White-haired gentleman had never been so shocked in his life. When he recovered enough to actually look at the drawings, he was further amazed to see how good they were. He did not believe that this little boy could possible have made those drawings, especially when he learned that the little boy had never taken an art lesson. He insisted that Doré make some more drawings right then and there, and called in other employees to watch. Picture this group of adults, starring at this little boy with their mouths open, while he made sketch after sketch in seconds. They were flabbergasted as much by his confidence as they were by this considerable talent; he was as uninhibited as if he had been at home playing a game. (...)Paris had never seen anything like this, a veritable Mozart with a pencil.” (MALAN, 1995, p.21).

41 Cf. TROMP, 1932, p.6. 42 Cf. KAENEL, 2005, p397.

costumavam fazer seus jornais anteriores como La Caricature e Le Charivari, que tinham como característica principal a charge política.

Charles Philipon, famoso opositor do rei Luis Filipe e inventor de Gavarni, Grandville e Bertall, ficara realmente impressionado com o talento de Gustave ao ponto de querer contratá-lo imediatamente, mas seu entusiasmo se chocava com a objeção do pai do jovem, que jamais incentivara o talento artístico do filho.

Christophe Doré temia que a nova ocupação de caricaturista viesse a perturbar os estudos de seu filho no Liceu Charlemagne, porém, acabou convencido por Philipon através de um contrato que visava conciliar os interesses de ambas as partes: o adolescente continuaria com seus estudos em meio período e tudo o que recebesse por seus desenhos poderia cobrir seus gastos com o Liceu; já Gustave deveria fornecer à editora ao menos um desenho por semana que poderia ser aceito ou recusado. Este contrato vinculava Doré exclusivamente à Maison Aubert por três anos, onde ele receberia 40 francos por cada um de seus desenhos durante o primeiro ano, sendo aumentado para 50 e 60 francos nos anos subsequentes. Para termos uma ideia, o cartunista mais renomado da França naquela época, Daumier, recebia essa mesma quantia a cada vez que publicava um desenho no Charivari. Com isso, aos 17 anos, Doré se tornaria o cartunista mais bem pago da França43.

A família de Gustave Doré pertencia à média burguesia alsaciana. Metade dela composta por servidores do Estado, metade por pensionistas que viviam de renda. Do lado paterno, seu avô fora oficial do Império e morrera em Waterloo. Seu pai, Christophe Doré, era engenheiro de pontes e estradas, funcionário do distrito de l’Ain, em Bourg-en-Bresse. Ele desejava para seus três filhos, Ernest, Gustave e Émile uma educação politécnica como a sua e que seguissem na engenharia, pois considerava o serviço público uma carreira mais segura.

Do lado materno encontramos os parentes que terão maior peso na formação de seu

habitus primário44

Tentando equilibrar o desejo de seguir a carreira artística, como também queria sua mãe, com as expectativas de seu pai de fazê-lo optar por uma carreira estável, Doré se via preso a dois modelos distintos, que formaram a base de sua concepção de réussite bourgeoise: reconhecimento artístico, mas com a estabilidade do sucesso financeiro.

. Os avós, aos quais Doré se encontra bastante ligado, eram relativamente ricos e cultivavam o gosto pelas artes e pela literatura. Seu avô, um verdadeiro gentilhomme, lhe servirá de figura modelar quando adulto e sua avó, mais tarde, deixará todos os seus bens à família Doré, o que possibilitará a compra do luxuoso hotel da Rua Saint-Dominique, em Paris. Já sua mãe Alexandrine, pessoa de maior ascendência sobre Gustave, era a maior incentivadora de seu talento.

Durante os anos na Maison Aubert, encontrando-se sob a proteção de Charles Philipon, Gustave Doré será o cartunista mais popular da França. Além de ilustrar para o

Journal pour rire ele vai se dedicar a dar continuidade à tradição töpfferiana de contar histórias em imagens, através de álbuns litográficos, em formato oblongo, que farão parte da pré-história daquilo que hoje conhecemos como histórias em quadrinhos.

Em seu primeiro trabalho, Les Travaux d’Hercule, de dezembro de 1847, já é possível notar, pelo modo como Doré é apresentado ao grande público, o início da construção da imagem pública que ele vai assumir durante toda sua vida e que mais tarde vai se converter em sua imagem de Gênio.

Les Travaux d’Hercule foram compostos, desenhados e litografados por um artista de quinze anos que aprendeu o desenho sem mestre e sem estudos clássicos. (...) Quisemos fazer este registro aqui não apenas para chamar a atenção do público para o trabalho desse jovem desenhista, mas ainda para

44 Espécie de habitus que é construído durante a infância e no seio familiar, constituindo-se nas aquisições mais antigas e mais duráveis do indivíduo. Elas irão condicionar as aquisições ulteriores e, integrando-as ao conjunto, formarão um só habitus que seguirá em permanente atualização, de acordo com suas necessidades e novas situações (Cf. BONNEWITZ, 2002, p.61).

estabelecer bem o ponto de partida de M. Doré que acreditamos reivindicar um posto de destaque nas artes45.

Depois dele surgirão, em 1851, Dés-Agréments d'un Voyage d'Agrément e Trois

Artistes - incompris et mécontents, todos com imenso sucesso. Em meados dos anos 1850, alegando desejar ilustrar livros mais sérios, Doré vai elaborar sua primeira mudança de posição no campo da edição, abandonando a caricatura e os impressos pelos fólios literários ilustrados.

A transição dos trabalhos da Maison Aubert e suas “bandes dessinées” para os fólios literários vai começar por intermédio de Paul Lacroix, o Bibliophile Jacob, amigo de longa data da família Doré e que já conhecia o talento de Gustave desde criança.

Lacroix era uma espécie de figura paterna que Doré vai ganhar após a morte do pai, aconselhando-o e incentivando-o constantemente a estudar arte mais seriamente. É ele quem vai lhe fornecer a primeira oportunidade de se lançar como ilustrador de obras literárias ao sugerir a J. Bry, seu editor, dar uma chance ao rapaz de fazer as ilustrações para seu recente livro Oeuvres Illustrées du Bibliophile Jacob, em 1852. Apesar de não contar entre seus melhores trabalhos, a oportunidade rende frutos a Doré, pois o editor gosta tanto de seus desenhos que o convida para um segundo trabalho, ilustrar Oeuvres Completes de Lord Byron no ano seguinte.

Esses foram os primeiros textos aos quais Doré submete sua arte, não sendo ele o autor. Até então era ele próprio quem escrevia suas histórias. O sucesso dessas publicações deu-lhe a confiança de ilustrar, posteriormente, autores maiores como Rabelais.

Como todo artista que ambicionava as honras de sua profissão, Doré vai fazer sua estreia nos Salões já no ano de 1848, sendo aceito com dois trabalhos na seção de desenhos.

45 “Les Travaux d’Hercule ont été composés, dessinés et lithographiés par un artiste de quize ans, qui s’est appris le dessin sans maître et sans études classiques. (...) Nous avons voulu l’inscrire ici, non seulement pour intéresser davantage le public aux travaux de ce jeune dessinateur, mais encore pour bien établir le point de départ de M. Doré, que nous croyons appelé à un rang dintingué dans les Arts”. Introdução de Les Travaux d’Hercule (Cf. KAENEL, 2005, p.400).

Dois anos mais tarde, conseguirá expor sua primeira pintura de paisagens, Pins Sauvages. A opção por debutar no Salão de pintura por um gênero inferior está de acordo com sua formação, uma vez que seria muito difícil o júri aceitar o trabalho de um jovem pintor e autodidata pretendendo de início alcançar as glórias da pintura de história46

Apesar dos constantes apelos de Paul Lacroix e, mais tarde, do amigo Théophile Gautier para que se aprimorasse através de aulas de artes e que pintasse seus quadros a partir de modelos, Doré, que sistematicamente se recusava a fazê-lo, alegava não ver diferença entre ilustração e pintura. Ele confiava que apenas sua memória fotográfica e sua imaginação seriam suficientes para resolver seus problemas. Aliás, sua não formação em pintura era ainda motivo de orgulho, tanto que se vangloriava de nunca ter passado por ateliês, o que não era inteiramente verdade, uma vez que, durante algum tempo, frequentara o ateliê do pintor Ary Scheffer, onde teria tido instruções sobre pintura acadêmica por volta de 1849, além de passar incontáveis horas no Louvre, estudando os mestres Michelângelo, Rubens e Raphael

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Nesta ocasião, Doré mantinha um posicionamento até mesmo agressivo contra a figura do pintor acadêmico. Em sua ilustração (fig.5) intitulada Rats peintres (um jogo de palavras que faz alusão aos rapins, pintores medíocres)

. Essa atitude de querer apagar suas próprias pegadas ajuda a criar um leitmotiv que dentro da recepção crítica de sua obra visava forjar a lenda do artista que se faz sozinho e que trabalha puramente a partir de sua imaginação, ou seja, o Gênio.

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46 Cf. KAENEL, 2005, p402.

para o álbum La ménagerie parisiennne, de 1854, ele parodiava estudantes de arte concentrados em suas ocupações; um deles reproduzindo um gigantesco pé acadêmico numa tela de grande formato e, um outro, investigando com a lupa a bunda de um modelo nu que estava suspenso pelos braços como se fosse uma peça de açougue.

47 Cf. LECLERC, 2012, p.65. 48 Cf. Idem.

O verdadeiro alvo das criticas de Doré eram as instituições de ensino das artes, as quais julgava um reduto fechado, mais interessado em produzir artistas preocupados em copiar modelos antigos do que criar obras originais.

Fig.5

DORÉ, Rats peintres, La Ménagerie parisienne par Gustave Doré, 1854, p.9.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 47-53)