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O artista preso entre a academia e a crítica

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 77-81)

3. TRAJETÓRIA E TENTATIVAS DE REPOSICIONAMENTO NO CAMPO

3.5. O artista preso entre a academia e a crítica

Gustave Doré demonstra ter consciência da hierarquia das posições no campo artístico. Desde cedo, elabora sua trajetória no mundo das artes, transformando o caricaturista em ilustrador e, depois, o ilustrador em pintor; neste caso, particularmente, respeitando a hierarquia dos gêneros ao iniciar pela pintura de paisagens no Salão de 1850, atravessando pelas cenas de gênero e chegando, por fim, às cenas de batalha “pró-napoleônicas”. Esperava com isso alcançar a glória do reconhecimento ao seu talento, porém, a menção honrosa recebida no Salão de 1857 valeu mais como um sinal de fracasso do que como uma premiação, acostumado que estava com o prestígio obtido no campo dos impressos e pelo suporte dado pela crítica romântica.

Vê-se, então, obrigado a reformular seus planos, efetuando mais um deslocamento no espaço dos possíveis. Encontra na promoção da xilogravura ao nível de uma obra de arte, um projeto estético inovador, fazendo de seu livro Le Juif errant, o embrião de seu projeto editorial de livros de luxos, ao mesmo tempo, o responsável por sua autonomia no campo da produção. Para Doré, o sucesso monetário não bastava. Alcançar sua réussite bourgeoise passaria, necessariamente, pelo reconhecimento do métier artístico.

Daí, os acontecimentos do Salão de 1861 serem fundamentais para a compreensão de suas ambições. Aproximando-se dos trinta anos, entende ser este o momento propício para efetuar o salto em sua carreira, tentando converter todo o capital simbólico adquirido no campo da edição em favor de seu reconhecimento como “grande artista” através da exibição de sua tela monumental Dante et Virgile.

No entanto, ao invés da consagração tão desejada por meio de sua pintura, ele vai ser feito Chevalier de la Légion d’honneur por sua obra gravada, o que o faz perceber a situação paradoxal na qual se encontrava: quanto mais o ilustrador triunfava, mais fracassavam suas pretensões de pintor. Notando a situação inconciliável das duas carreiras, fará de sua

versatilidade e produtividade a tentativa definitiva em favor da sua aprovação pelas instituições artísticas e pela crítica de arte.

A atitude hostil com que tratara a figura do pintor acadêmico e a academia de pintura durante os anos de caricaturista do jornal, certamente, não lhe foi favorável quando o que desejava dependia exclusivamente da boa vontade do júri por ocasião das premiações nos Salões de pintura. Contudo, nada foi mais prejudicial a si próprio do que a postura radical de não querer estudar a pintura a sério.

Ao assumir voluntariamente o papel de Gênio que a crítica romântica lhe atribuía, optou por um caminho que não lhe permitia se submeter ao ensino de um mestre que poderia lhe ter emprestado seu prestígio numa estratégia de filiação ou que poderia ter intercedido a seu favor em momentos decisivos. A falta de uma formação em pintura quer seja nas escolas de arte ou nos ateliês de pintores, não era apenas a retórica de um discurso de genialidade. Ela também se evidenciava nos problemas técnicos de suas telas, tais como a composição deficiente, que fazia suas pinturas parecerem vinhetas aumentadas, e a pincelada apressada que conferia à pintura, a aparência de obra inacabada. Problemas que seus promotores faziam questão de ignorar enquanto seus detratores adoravam evidenciar.

No entanto, Doré era um artista popular. Vir do meio dos impressos e do campo da edição lhe dava notoriedade em todas as classes sociais. Seu nome era sinônimo de ilustração para a classe mais pobre, que o acompanhava desde os tempos do Journal pour rire e para a classe mais rica, a quem destinava suas edições de luxo; também para o público estrangeiro por causa de suas pinturas religiosas que tanto sucesso fizeram na Inglaterra.

Sendo assim, reconhecer o talento de Gustave Doré seria estar de acordo com o julgamento popular e aceitar a inversão da lógica que atribuía a um corpo de especialistas o poder de consagrar ou não um artista. Desse modo, a rejeição exemplar de suas pretensões artísticas se constituía numa estratégia de conservação que visava proteger o status quo.

As atitudes da crítica de arte em relação às obras de Gustave Doré vão depender fundamentalmente de seus interesses específicos, estando eles ligados às posições que ela própria ocupa dentro do campo artístico. Num sistema de alianças e rivalidades entre grupos que disputam a posição hegemônica que “dita” as tendências estéticas do século XIX, os seguidos elogios de Gautier e Nadar vão se converter em uma faca de dois gumes.

Se, por um lado, eles ajudam fornecer para Gustave Doré uma notoriedade, por outro lado ganham ares de promoção interessada, encorajando posições contrárias. Assim, Doré se encontrará no epicentro da disputa entre os defensores do idealismo e os partidários do realismo, servindo de modelo aos interesses ora de Théophile Gautier, ora de Émile Zola.

Gautier via em Doré uma espécie de antídoto contra o realismo na arte. Ao compará-lo a Michelangelo e a Delacroix, louvava sua facilidade para executar suas obras, seu virtuosismo técnico e, sobretudo, sua originalidade, como características próprias do gênio. Argumentos, estes, refutados pelos críticos que apoiam os novos movimentos realistas e naturalistas e que entendem essa “facilidade de execução das obras”, tema recorrente na crítica romântica, como uma afronta àqueles que tinham se dedicado uma vida inteira aos estudos. Doré será para eles um romântico da decadência86

A mudança de opinião de Émile Zola que, no inicio de sua carreira de jornalista, mostrava-se entusiasmado com o talento criativo e a originalidade de Gustave Doré em obras como Dante et Virgile ou Don Quichotte, será reveladora. Ao se converter ao realismo, passa a recriminá-lo por pintar paisagens de sua imaginação e o acusa de ser uma caricatura de Michelangelo atacando implicitamente o Doré fabricado por Gautier

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Por volta dos anos 1870, este tipo de comentário que compara Doré a Michelangelo vai se basear menos em seus quadros e mais na variedade de sua produção, que consistirá, além das ilustrações e da pintura, na sua incursão pela água-forte, aquarela e escultura. Essa

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86Cf. KAENEL, 2005, p.427. 87Ibidem, p.430.

multiplicidade de talentos vai se voltar contra ele, levando seus detratores a entenderem este virtuosismo como a expressão de sua imaturidade artística. Seus trabalhos serão vistos como números de circo suplementares, rendendo-lhe o apelido de acrobata, por parte da imprensa nem sempre amistosa88

Desse modo, entendemos Gustave Doré vítima da violência simbólica imposta por aqueles que regulavam o mercado de artes, nesse caso, a crítica e a academia, pois, de acordo com a definição do sociólogo Pierre Bourdieu, não se trata de violência física, mas de um tipo de violência que é exercida, em parte, com o consentimento daquele que a sofre, já que é assimilada como natural e fundamentada no reconhecimento do direito dos grupos dominantes de exercê-la com vistas à permanência da dominação

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Ao reconhecer a autoridade das instituições artísticas bem como a da crítica de arte como legítimas, Doré submete-se voluntariamente a seus julgamentos, orientando sua produtividade por de uma série de deslocamentos que corresponderão a tomadas de posição em busca do reconhecimento a seu talento que, no entanto, sempre lhe será negado.

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88Ibidem, p.457.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 77-81)