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As empresas de electricidade de Buenos Aires e as nacionalizações

3. Perón, a nacionalização e centralização: (1943-1955)

3.2. As empresas de electricidade de Buenos Aires e as nacionalizações

Um dos acontecimentos da história argentina que ainda se mantém numa situação pouco clara é a não nacionalização das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires durante o governo de Perón. A onda das nacionalizações que teve como emblema a estatização dos caminhos-de-ferro de capitais ingleses incluiu companhias de telefone, de gás, de transporte e de electricidade (QUADRO 1.2.). Curiosamente, ficaram excluídas dessa vaga as empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires. Vejamos em detalhe os acontecimentos.

Entre 1936 e 1945, em consonância com a crescente desconfiança sobre as holdings, foram realizadas quatro investigações sobre as companhias estrangeiras de electricidade. As duas primeiras foram encomendadas pelos poderes provinciais a comissões especiais e os seus relatórios contribuíram para alterar as relações com as empresas nas províncias de Córdoba (1936) e Tucumán (1941). As outras duas pesquisas foram encomendadas pelo Presidente da Nação, General Ramirez, em 1943; uma, para avaliar a actuação das empresas do grupo EBASCO114 no território nacional e, a outra, para estudar o desempenho das empresas de electricidade na cidade de Buenos Aires115. A primeira das comissões designadas por Ramirez elaborou um relatório muito crítico das concessões do grupo EBASCO que foi publicado nos jornais a 2 de Fevereiro de 1945. A segunda, também elaborou um relatório muito crítico das concessões da CHADE/CADE e da CIAE116.

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As empresas que dependiam do grupo EBASCO também eram conhecidas como ANSEC, iniciais da região à que pertencia cada uma das empresas do grupo: Compañía de Electricidad

de los Andes (A), Compañía de Electricidad del Norte Argentino (N), Compañía de Electricidad del Sud Argentino (S), Compañía de Electricidad del Este Argentino (E), Compañía Central Argentina de Electricidad (C). Cf. Genta, G., Política y servicios públicos: el caso del servicio público de electricidad de la Ciudad de Buenos Aires (Desde sus orígenes hasta su estatización: 1887-1962), Tese de Mestrado, FLACSO, 2006, p.70.

115

Decreto 4.910, B.O. de 6 de Agosto de 1943.

116

Genta, G., Política y servicios públicos..., ob.cit., pp.5-9. Cf. Cámara de Diputados de la Nación Argentina, Informe de la Comisión... ob.cit.

Relativamente ao último relatório citado, há uma questão que surpreende: foi deliberadamente ocultado nos anos em que Perón esteve no poder. A revolução de 4 de Junho de 1943 tinha colocado o General Ramirez como presidente da Nação. As suspeitas de que a CHADE tinha subornado vereadores e apoiado economicamente Alvear na sua campanha presidencial, contribuíram para motivar ao Governo a investigar o caso. Assim sendo, o presidente Ramirez cria uma comissão investigadora117 para estudar as ordenanças que outorgavam a ampliação da concessão às empresas de electricidade de Buenos Aires.

Em Dezembro de 1943 Perón é designado para a Secretaria de Trabalho e Previsão Social. A 25 de Fevereiro de 1944 Edelmiro Farrell assume como presidente da Nação e Perón é nomeado Ministro da Guerra. A 27 de Maio de 1944, já na presidência de Farrell, a comissão elevou a consideração do poder executivo dois projectos de decreto que propunham medidas extremas contra a CADE e a CIAE. No primeiro, se sugeria o retiro da personalidade jurídica da CADE; no segundo, aconselhava-se que os bens da CADE fossem declarados de utilidade pública, sujeitos a expropriação118. Em síntese, a comissão aconselhava a expropriação da CADE e da CIAE. Como consequência dos projectos de decreto da Comissão, a 21 de Junho de 1944, em ausência do presidente Farrell e do Ministro de Negócios Estrangeiros, foram confiscadas as acções da CADE (por um valor de o$s 280.000.000), pertencentes à Société Sovalles, e que tinham sido depositadas por René Brosens no Banco Central. Esta primeira medida teve impacto na bolsa da Suíça, uma vez que 90% da CIAE e 30% da CADE eram de propriedade suíça. A medida, e a possível expropriação das empresas, eram de tal forma problemáticas para os capitalistas suíços que os embaixadores da Espanha e da Suíça intervieram perante o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Argentina119. Pouco tempo depois, a 7 de Julho, Perón é nomeado vice- presidente da República, mantendo também o anterior cargo de Ministro da Guerra. Depois desta “confiscação” de acções o Governo não avançou com outras medidas tendentes à expropriação. Os membros da Comissão, ao não obterem resposta sobre o

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A Comissão estava formada pelo Coronel Matías Rodriguez Conde, pelo engenheiro Juan Sábato e pelo advogado Juan Pablo Oliver.

118

Sábato, Jorge A., SEGBA cogestión y Banco Mundial, Buenos Aires, Juárez Editor, 1971, pp.17-20; Cámara de Diputados de la Nación Argentina, Informe de la Comisión... cit, p.3-4.

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Documents Diplomatics Suisses (DDS), “Notice sur les relations financières avec l’Argentine”, 1944, vol.15, doc.163, p.459-460, url : http://www.dodis.ch/de.

relatório, insistiram com um memorandum a Agosto de 1944. Como resposta à insistência da Comissão, o Presidente Farrell ordenou que desse por concluída a sua investigação e entregassem todas as cópias do relatório. A 12 de Fevereiro de 1945 a Comissão entregou o relatório que constava de 1012 páginas e 18 anexos. Perón sabia dos dois projectos de decreto e tinha-lhe pessoalmente prometido a Juan Sábato, integrante da Comissão, apoiar as sugestões neles contidas120.

A 4 de Junho de 1946, Perón assumiu o cargo de presidente da Nação em eleições abertas. Durante o seu Governo, interrompido pelo golpe militar de 21 de Setembro de 1955, o relatório manteve-se oculto. Será apenas em 1959 que o Congresso da Nação publicara o relatório, tornando-se popularmente conhecido como Informe Rodriguez Conde121. No contexto das nacionalizações efectivadas durante o governo de Perón, este informe teria sido uma ferramenta fundamental para justificar a transferência ao Estado das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires122. A questão fundamental, então, é determinar porque Perón não nacionalizou essas empresas e manteve oculto o relatório.

A versão que muitos autores repetem, mas ninguém documenta123, é que Perón recebeu um suborno de 1 milhão de pesos para a sua campanha presidencial de 1945 por parte dos directivos da CHADE124. Esta versão é acompanhada de depoimentos que mostram um vínculo de quase amizade entre René Brosens, Director Geral da CADE, e Perón. Numa entrevista Brosens descrevia a sua relação com Perón:

Conocí a Perón por intermedio del consejero de la Embajada de Bélgica en Buenos Aires a mediados de 1943, poco después de haberse iniciado la investigación Rodríguez Conde. Me pareció un hombre inteligente y preparado y no tengo inconveniente en decir que simpaticé inmediatamente con él. Le expliqué nuestra posición frente a la investigación iniciada por el gobierno de

facto y conversamos varias veces sobre el asunto (...) Así se

creó una vinculación con Perón a la que no podía calificar de

120

Sábato, Jorge A., SEGBA cogestión...,ob.cit., pp.17-20.

121

Cf. Cámara de Diputados de la Nación Argentina, Informe de la Comisión..., ob.cit.

122

Como foi referido, o “Informe Rodriguez Conde” aconselhava a promulgação de dois decretos que determinavam a expropriação das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires.

123

De facto, é difícil documentar um suborno deste tipo.

124

Cf. Gambini, H., Historia del peronismo. El poder total (1943-1951), Buenos Aires, Vergara, 2007, p.160; Sábato, Jorge A., SEGBA cogestión...,ob.cit., p.21; entre outros.

amistad; pero hubo cierta frecuencia que seguiría durante todo su gobierno posterior.125

Portanto, Brosens e Perón conheceram-se no contexto da investigação sobre as empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires. Era uma relação de frequentes contactos em que, segundo o Director Geral da CADE, intercambiavam opiniões em bons termos. Inclusive, destaca que devido à sua intervenção junto do, então, Coronel Perón, este foi quem salvou à CADE a partir de ocultar o relatório da Comissão. Convencê-lo que o relatório era irracional foi fácil:

(...) [no relatório] lo que se sugería al gobierno en relación al futuro de la empresa era tan desmesurado y arbitrario que me costó poco demostrar a Perón su irrazonabilidad. Perón debe haber resuelto entonces “enterrar” el informe Rodríguez Conde y así ocurrió.126

Portanto, restam poucas dúvidas de que Perón ocultou deliberadamente o relatório. Relativamente à questão do suborno, como é óbvio, Brosens nega que a CADE como tal tenha pagado a Perón, mas deixa a questão em aberto ao sugerir a hipótese de os accionistas terem “agradecido” Perón por salvar a empresa:

En cuanto al apoyo económico que CADE habría dado a Perón en su campaña electoral, debo decir que la CADE, como tal, no dio dinero. Si los accionistas extranjeros de la compañía fueron solicitados en este sentido, teniendo en cuenta que Perón había salvado a la CADE de una expropiación injusta u otras medidas arbitrarias, eso no lo sé.127

As poucas vezes em que Perón fala do caso, salienta a ideia de que no affaire CHADE de 1936 os vereadores corruptos obrigaram à empresa a pagar subornos para poder ampliar a concessão128. Assim sendo, na versão de Perón dos factos a empresa é

125

Luna, F., El 45, Madrid, Hyspamérica, 1984, p.200. Os depoimentos de Brosens e de Perón aqui citados surgem de entrevistas feitas por Felix Luna e reproduzidas, em notas de rodapé, no livro El 45. 126 Luna, F., El 45, ob.cit., p.200. 127 Luna, F., El 45, ob.cit., pp. 200-201. 128

Luna, F., El 45, ob.cit., p.199; Perón, J.D., La Fuerza es el derecho de las bestias, Montevideo, Ediciones Cicerón, 1958 [1956], p.35.

vítima da corrupção dos vereadores e, portanto, não deve ser penalizada. De facto, o que Perón faz é reproduzir os argumentos de Brosens sobre o acontecido129.

Se houve ou não suborno a Perón é impossível de confirmar. Há poucas dúvidas que a atitude de Perón esteve fortemente influenciada pelas ideias de Brosens. Também sabemos que houve pressões por parte das embaixadas de vários países da Europa para que não se avançasse com as expropriações das empresas da SOFINA. Como foi referido, por um lado, Perón conhece Brosens por intermédio do embaixador da Bélgica e, por outro lado, os embaixadores da Espanha e da Suíça intervieram aquando da confiscação das acções da CADE. Portanto, na altura em que Perón ainda não era presidente tinha contactos com os embaixadores que pressionavam para que não expropriasse a CADE. Segundo Lanciotti, a SOFINA contava com acesso directo ao Governo, já que alguns dos seus consultores e directivos foram funcionários entre 1943 e 1955. Devido a isto, foi possível evitar a expropriação em 1944130. Uma sorte diferente tiveram as empresas da EBASCO, de capitais americanos, já que ao não contar com esse acesso ao Governo, foram expropriadas pelos Governos provinciais131.

Há ainda um outro elemento de peso, mostrado por Brosens, que pode ter contribuído para que Perón “salvasse” à CADE:

129

Numa entrevista de Felix Luna a Perón, em Janeiro de 1969, este reproduz os argumentos de Brosens sobre o caso: “El señor Brossens [dijo que] ellos habían ofrecido la prolongación de los servicios de la Compañía y en el Consejo Deliberante habían dicho que no, que iban a hacer caducar la concesión si no se les pagaba algo así como once millones de entonces... Entonces la compañía dijo que si, que pagaban, y pagaron los once millones a los que iban a tratar el asunto, o sea los concejales. (...) Brossens me dijo una cosa muy lógica; me dijo ‘es como si fuera por la calle, le ponen el revólver en el pecho y le dicen que entregue la cartera. Yo saco la cartera y se la doy... ¿y usted me quiere meter preso a mi?’ ¡Tenía toda la razón del mundo!” Luna, F., El

45, ob.cit., p.199.

130

Lanciotti, N., “Ciclos de vida en empresas de servicios públicos. Las compañías norteamericanas y británicas de electricidad en Argentina, 1887-1950”, Revista de Historia

Económica, XXVI, 2008 (3), pp.432.

131

Segundo Maria Inés Barbero, Norma Lanciotti e Mónica Wirth, os relatórios foram transferidos aos Governos provinciais para que estes realizassem as expropriações das empresas de electricidade. Assim sendo, o Governo nacional não efectivou as expropriações, mas foram os executivos provinciais os encarregados dessa tarefa entre 1943 e 1948. Ver: Barbero, M.I., Lanciotti, N. e Wirth, M.C., “Capital extranjero y Gestión local. La Compañía Italo Argentina de Electricidad. 1912-1950”, comunicação apresentada ao VII Coloquio de Historia de empresas, Universidad de San Andrés, 1 de Abril de 2009, url: http:// www.udesa.edu.ar, p.26; Lanciotti, N., “Foreign Investment in Electric Utilities: A Comparative Analysis of Belgian and American Companies in Argentina, 1890-1960”, Business History Review, 82, 2008, pp. 519- 522. Para uma análise comparativa dos caminhos das empresas da American & Foreign Power (americana) e da SOFINA (belga) na Argentina ver: Lanciotti, N., “Foreign Investment...”, ob.cit.; Lanciotti, N., “Ciclos de vida..., ob.cit., pp.403-438.

Perón resolvió dejarlo de lado [al informe] porque sus proposiciones, si se hubieran adoptado, hubieran sido desastrosas para la empresa, pero sobre todo, para el país. No hay que olvidar que los equipos de provisión eléctrica de Buenos Aires debían renovarse parcialmente de manera urgente y los nuevos grupos generadores sólo podían fabricarse en los Estados Unidos, donde SOFINA – cuyo presidente, Heineman, vivió en Nueva York durante la guerra – tenía influencia. Una medida arbitraria contra CADE podía aparejar la imposibilidad de renovar esos equipos... Perón entendió la situación perfectamente.132 [sublinhado nosso]

Segundo Brosens, na altura da segunda Grande Guerra, Perón compreendeu que se expropriavam a CADE a cidade de Buenos Aires ficava sem a hipótese de renovar o equipamento das centrais. A outra cara da moeda, é que “salvar” à CADE significava para Perón ficar em boas condições para negociar as tarifas.

Em síntese, deixar à cidade de Buenos Aires e a área metropolitana circundante, que era abastecida pelas centrais da cidade, com problemas de fornecimento eléctrico, era uma questão muito sensível ao governo de Perón iniciado em 1946. Veremos a seguir o uso que fez Perón das tarifas dos serviços públicos, o que também permitirá compreender porque as boas relações com Brosens e a CADE eram necessárias, uma vez que procurava garantir electricidade barata para Buenos Aires e a sua área metropolitana.