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Neste capítulo vimos como questões próprias das infra-estruturas de rede surgem em diferentes momentos. No primeiro momento analisado – instalação dos serviços públicos –, as empresas desenvolvem estratégias (fusão e divisão do mercado) para criar um mercado monopolístico. Nessa altura, a fiscalização das empresas de electricidade é feita pelos funcionários da Câmara e atinge resultados satisfatórios para os diferentes grupos. No segundo momento, os consumidores iniciam reclamações de tarifas baratas, colocando-se a questão da regulação destes monopólios naturais. Os efeitos da crise económica de 1929 e a conjuntura política da cidade de Buenos Aires transformam o problema das tarifas numa questão de Estado. Em 1936 são beneficiados quer os consumidores com uma diminuição das tarifas, quer a empresa com uma ampliação da duração do contrato. O terceiro momento é de viragem na propriedade dos serviços públicos, em consonância com o que acontecia internacionalmente. Na Argentina, paralelamente às nacionalizações, as tarifas dos serviços públicos são usadas como instrumentos de distribuição da riqueza. No curto prazo, Perón atinge os seus objectivos: aumento do consumo e melhoramento da distribuição da riqueza. A consequência no médio prazo é uma crise energética provocada pela falta de investimento. É somente a partir de 1958, (no pós-peronismo) que se estabelece o princípio de que as tarifas devem garantir os custos de produção, uma determinada taxa de lucro e futuros investimentos172. Nessa altura, a fiscalização passa a ser centralizada, e as empresas nacionalizadas operam em dependência do poder executivo. No quarto momento analisado, as privatizações são apontadas pelo Banco Mundial como exemplo de celeridade na execução. O aumento significativo das tarifas permite a obtenção de lucros acima da média, mostrando que a “urgência” com que as privatizações são executadas cria uma regulação ineficaz. Todavia, os consumidores não se queixam porque também são beneficiados pelas políticas económicas. A consequência é um endividamento externo que leva à crise de 2001.

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Além da mudança na propriedade dos serviços públicos que contribuiu para a expansão do consumo nos dois governos peronistas, observámos o episódio, central para o nosso trabalho, da continuidade em mãos privadas da CADE. Em 1936, do ponto de vista dos consumidores, ficou resolvida a questão das tarifas da cidade de Buenos Aires com a “nacionalização” da CHADE e a redução tarifária introduzida no novo contrato. Uma comissão investigadora demonstrou que este novo contrato foi feito com subornos ao presidente Alvear e aos vereadores municipais. O relatório que chegou a estas conclusões propunha o fim da concessão e a estatização das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires. Nessa altura, Perón era vice-presidente e ocultou deliberadamente o relatório da comissão investigadora. Durante a sua presidência, foram nacionalizados a maior parte dos serviços públicos, sendo expropriadas muitas empresas de electricidade pelos poderes executivos provinciais. Contudo, foram evitadas as nacionalizações das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires, permanecendo oculto o relatório. Apesar da forte associação que há entre Perón e a nacionalização dos serviços públicos, este episódio demonstra que privilegiou as suas relações pessoais sobre a orientação do seu Governo. É possível afirmar que foi devido a relações de tipo pessoal com René Brosens e George Messersmith que Perón não expropriou a CADE. De facto, o presidente conhecia muito bem Messersmith, embaixador dos EUA na Argentina (1946-1947), que viajou por pedido de Dannie Heineman, para tentar evitar a expropriação da CADE em 1951 (ver Conclusão).

Como foi possível constatar, a associação entre nacionalismo e peronismo faz parte das circunstâncias do pós-guerra. O governo de Menem desenvolve uma política económica diametralmente oposta, baseada nas privatizações das empresas de serviços públicos. Apesar destas diferenças, nos dois Governos a mudança na propriedade dos serviços públicos foi feita com urgência e sem debate prévio. Este modo de agir contribuiu para cumprir os objectivos dos Governos no curto prazo: o aumento do consumo. É de salientar que nestes dois Governos houve saltos qualitativos no consumo de electrodomésticos. Quer as tarifas políticas de Perón, quer as privatizações de urgência de Menem criaram a ilusão de melhoramento dos serviços públicos no curto prazo. Todavia, no longo prazo, os serviços públicos entraram em crise. Ao centrar a atenção apenas nas tarifas, estes Governos colocaram num segundo plano outros factores (investimento, lucros, etc.) fundamentais para as políticas públicas das infra- estruturas de rede.

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MA FISCALIZAÇÃO AD HOC EM

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DELEGADO173 DO

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OVERNO JUNTO DAS EMPRESAS

A 2 de Abril de 1925, o deputado João Camoesas, enquanto discute a questão do monopólio dos fósforos, relata à Câmara que “tendo sido nomeado comissário régio de uma companhia dentro da República, não só não tomei posse do cargo, como cortei as relações com a pessoa que me nomeou julgando fazer-me um favor”174. A sua decisão deveu-se a que considerava moralmente inapropriado a existência do cargo de comissário régio (ou do Governo) junto das sociedades anónimas. Contudo, também parece ser relevante o facto de a opinião pública ter uma má imagem deste cargo. Assim, afirmava: “Sim, Sr. Presidente! Precisamos de acabar com essa série de representantes junto de bancos e companhias, que anda a levantar a indignação popular do norte a sul e de este a oeste de Portugal”175. Quase um ano mais tarde, no quarto número da Revista de Comércio e Contabilidade, Fernando Pessoa e Francisco Caetano Dias publicavam um artigo intitulado “A inutilidade dos conselhos fiscais e dos comissários do Governo nos bancos e nas sociedades anónimas”. Aí afirmavam: “Dos Comissários do Govêrno nem é bom falar. (...) São nomeados por obscuros lances do xadrêz partidário, em prémio de serviços políticos e para que veraneiem todo o âno no seu comissariado; são nomeados para não fazer nada, e é efectivamente o que fazem. Dêles, pois, é o Reino dos Céus... Deixemo-los e volvamos á terra”176. Esta visão põe a ênfase na distribuição de favores políticos que o cargo representa. Isto permite compreender a atitude do deputado acima citada. Rejeitou o cargo, porque era considerado pela opinião pública como um lugar para a devolução de favores políticos.

173

A coincidir com a legislação e os debates parlamentares sobre o tema, vamos usar a expressão “comissário do Governo” ou “delegado do Governo” segundo seja costume na época.

174

Assembleia Nacional (AN), Diário de Sessões dos Senhores Deputados (DSD), nº60, de 2 de Abril de 1925, p.44.

175

Ibidem.

176

Pessoa, Fernando e Caetano Dias, Francisco, “A inutilidade dos conselhos fiscais e dos comissários do Governo nos bancos e nas sociedades anónimas”, em Revista de Comércio e

Não é privativo da Primeira República a preocupação pelos comissários do Governo dentro das sociedades anónimas. Uma década mais tarde, o deputado do Estado Novo, Diniz da Fonseca leva o problema ao campo da eficiência perguntando-se de modo retórico: “¿Quantas vezes nós ouvimos, Sr. Presidente, o público português queixar-se da ineficácia de todas as fiscalizações exercidas junto das companhias, apesar de o Estado ter junto delas um representante? ¿Quantas vezes ouvimos nós o público queixar-se de não ser melhor servido, apesar de existirem fiscais junto das companhias?”177. Neste depoimento, surge novamente a preocupação sobre a opinião pública, relativamente aos comissários do Governo. Contudo, desta vez a questão está orientada para a ineficácia da fiscalização. A acusação é que os comissários do Governo são ineficazes à hora de controlar às empresas que prestam um serviço público.

Favor político, cargo inútil, ineficácia são algumas das características atribuídas ao cargo de comissário do Governo durante a primeira metade do século passado. Apesar do estigma apresentado nestes depoimentos, este cargo, que visava a fiscalização das sociedades anónimas, perdurou durante o século XX todo. Tratou-se duma instituição singular, serem representantes do Governo com acesso à vida administrativa da empresa, uma vez que estes comissários/delegados participavam das Reuniões do Conselho de Administração e das Assembleias Anuais nas empresas que fiscalizavam. Durante o século vinte, que finaliza com as privatizações, estes representantes do Governo fiscalizam determinadas sociedades anónimas, nomeadamente as de serviços públicos. Nas páginas que seguem tentaremos dar conta desta instituição que nasce na Monarquia Constitucional e está presente em todos os regimes políticos portugueses do século XX.