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Em 1898, a Deutsch Ueberseeeische Elektricitäts Gesellschaft (DUEG- CATE14), uma holding criada pela AEG e um consórcio de bancos alemães (Deutsche Bank e Berliner Handels-Gesellchaft) recebe uma autorização para instalar centrais e fornecer electricidade na cidade de Buenos Aires. Depois de um importante investimento entre 1903 e 1906, que incluiu a aquisição de várias pequenas centrais, assina um contrato por 50 anos, que começou a vigorar em Janeiro de 190815. O rápido crescimento será interrompido pela Primeira Grande Guerra. Em Junho de 1920, perante os problemas em que se encontravam os bancos alemães relativamente à falta de capitais, além da depreciação das acções da CATE devido à depreciação do marco, o Deutsche Bank opta por vender a empresa16. Para isso, é criada a CHADE – uma sub- holding da SOFINA radicada em Madrid – destinada a adquirir os activos da CATE (1898-1919). Deste modo, a partir de Julho de 1920, a empresa de electricidade de Buenos Aires muda de nome e passa a ser controlada pela holding belga SOFINA e os bancos alemães evitam a depreciação da sua empresa. Sob a gestão de Dannie Heineman, presidente da SOFINA, a CHADE cresce de modo considerável durante o período de entre guerras. Em 1936, a hipótese de expropriação por causa da guerra civil espanhola e os problemas com as tarifas na cidade de Buenos Aires, levam à transferência do património da CHADE (1920-1936) para a CADE. Desde 1910, a CADE (1937-1961), que pertencia à CATE, distribuía electricidade nos municípios circundantes à cidade de Buenos Aires. Como todas as subsidiárias da CATE, em 1920 fica sob o controlo da SOFINA, portanto, na altura da transferência da CHADE para a CADE, as duas empresas eram subsidiárias da holding belga. De modo que, esta “nacionalização”, como é destacado nos relatórios da empresa, foi uma manobra da SOFINA para manter o controlo da empresa de electricidade. Depois da Segunda Grande Guerra, a empresa não foi atingida pela vaga de nacionalizações dos serviços públicos realizada por Perón. Contudo, a CADE em Outubro de 1961 foi adquirida por

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A DUEG era conhecida na Argentina como Compañía Alemana Transatlántica de

Electricidad (CATE).

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Lanciotti, Norma, “Ciclos de vida de empresas de servicios públicos. Las compañías norteamericanas y británicas de electricidad en Argentina, 1887-1950”, em Revista de Historia

Económica, Ano XXVI, nº3, 2008, pp.411-412.

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Hausman, W.J., Hertner, P. e Wilkins, M., Global Electrification. Multinational Enterprise

and International Finance in the History of Light and Power, 1878-2007, Cambridge,

uma empresa estatal – Servicios Eléctricos del Gran Buenos Aires (SEGBA) – e a SOFINA fica desvinculada da sua gestão.

Já em Lisboa, em 1846 é formada a Companhia Lisbonense de Iluminação a Gás por grupos industriais nacionais. Para resolver a necessidade de capitais, foi necessário contrair empréstimos com o Banco de Portugal. Nas décadas de 1860-1870 havia uma grande dispersão de accionistas e, na década seguinte, o desempenho da empresa foi muito lucrativo, repartindo dividendos até 25%. Em 1887, a Câmara assina um contrato de concessão com outra companhia para o fornecimento de gás à cidade, a Sociedade Gás de Lisboa. Esta companhia estava constituída por empresas e bancos franceses e belgas. As duas empresas concorriam no fornecimento do gás a particulares, enquanto a Sociedade Gás de Lisboa era a única dedicada à iluminação pública17. Em 1891, a CRGE nasce da fusão da Cª Lisbonense com a Cª Gás de Lisboa. A CRGE assina em 1891 um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Lisboa para fornecimento de gás e electricidade à cidade em regime de exclusividade por cinquenta anos. Desde 1889 até 1903, havia uma pequena central eléctrica a vapor que iluminava a Praça dos Restauradores, instalada pela Cª Gás de Lisboa. Nessa altura, é criada uma nova central na rua da Boa Vista para fornecimento de electricidade nas ruas que iam da Avenida da Liberdade até ao centro e à zona industrial do Tejo. Devido ao crescimento da procura, foi contraído um empréstimo com a casa S. Propper & C.ª de Paris18. Na época, a empresa tinha fundamentalmente capitais franceses e belgas. As necessidades de novos investimentos levaram a que em 1913 fossem emitidas 96.000 acções, fossem reformulados os estatutos e se incorporasse a SOFINA como principal accionista. A guerra veio interromper os planos da rápida construção da grande central previstos pela holding. Em 1919, começa a funcionar o primeiro grupo gerador da Central Tejo19. A CRGE produzirá e distribuirá em exclusivo gás e electricidade em Lisboa e nalguns municípios fora da capital, assente nas sucessivas ampliações da Central Tejo até 1951. Nesse ano, com a entrada em laboração da Central hidroeléctrica de Castelo de Bode – propriedade da Hidroeléctrica Alto Alentejo –, a CRGE dedicar-se-á cada vez menos à

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Cardoso De Matos, Ana, “A indústria do gás em Lisboa”, em Penélope, nº29, 2003, pp.109- 112.

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Faria, Fernando, Cruz, Luís e Barbosa, Pires, A Central Tejo. A fábrica que electrificou

Lisboa, Lisboa, Bizâncio, 2007, pp.21-23.

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produção (a ficar a Central Tejo como reserva), mantendo a concessão da distribuição. Desde 1914 até à sua nacionalização em 1975, a SOFINA fez a gestão da CRGE.

I-A

S EMPRESAS DE SERVIÇOS PÚBLICOS NA

A

RGENTINA

(1880-

2000)

Nota introdutória aos capítulos I e II: Intervenção Estatal e empresas

de serviços públicos.

A comparação entre Portugal e a Argentina é pouco frequente. Não houve entre os dois países grandes intercâmbios comerciais, culturais ou migratórios que convidassem a estudá-los de forma comparada. Apesar disto, na primeira metade do século XX viram surgir líderes nacionalistas que influenciaram a vida política futura. Eis o caso de Juan Domingo Perón e António de Oliveira Salazar. Trata-se de nomes próprios que ficam imediatamente associados aos seus países devido à natureza pessoal de exercício do poder. Têm gerado identidades pela sua forma de agir, ficando ligados os seus nomes à singularidade do devir nacional. Assim sendo, dentro de cada país surgem identidades a favor e contra estas dirigentes pessoas, identificando-se como peronistas e anti-peronistas, salazaristas e anti-salazaristas.

Ao falarmos de peronismo e salazarismo, pensamos imediatamente em formas de governar. Em ambos os casos existia um parlamento, mas que funcionava de maneira particular. Tratava-se de parlamentos débeis, que agiam na dependência do poder executivo. Da mesma forma em que existiu esta semelhança houve muitas diferenças. Enquanto o salazarismo esteve no poder durante 48 anos consecutivos, o peronismo, a incluir o Governo actual, tem governado três vezes durante 10 anos consecutivos cada, mais uma outra de 4 anos. Perón e os seus sucessores eram líderes populares, enquanto Salazar era um líder afastado das massas. Perón era militar de formação, e directamente ou através da sua mulher, era um líder que procurava mobilizar o povo; Salazar era advogado, adepto de uma sociedade “civilista” e teve vários choques com os militares apoiantes do Estado Novo. Com semelhanças e diferenças, a maior coincidência destes regimes é o seu peso na história nacional do século XX.

Ambos são regimes que têm fugido aos modelos clássicos. É difícil enquadrar o peronismo dentro dos regimes democráticos com funcionamento dos três poderes de

modo independente. Também é difícil encaixar a “República Corporativa” de Salazar nas variantes mais autoritárias de regimes como o fascismo ou o nazismo. O contrário ainda é mais complicado. Como poderíamos considerar o peronismo um Governo autoritário, uma vez que foi escolhido em eleições livres e democráticas? Ninguém pode considerar o salazarismo um regime democrático, uma vez que o cargo de Presidente do Conselho de Ministros era praticamente vitalício apesar de existirem “eleições” para o Presidente da República. Esta dificuldade de comparar estes regimes com os modelos “clássicos” tem colocado um desafio aos historiadores: tentar compreender a singularidade destes Governos. A análise das particulares formas de governar de cada um dos regimes pode trazer luz sobre as histórias nacionais do século XX.

Os capítulos I e II visam mostrar duas formas de agir que de algum modo caracterizam a cada um destes Governos. Consideramos que na singularidade destes processos é que se pode começar a compreender melhor estes regimes. O caso escolhido é o dos serviços públicos e a intervenção estatal. Centraremos a atenção nas estratégias desenvolvidas pelo peronismo e pelo salazarismo no século XX, a incluir os antecedentes de Governos anteriores. Serão desenvolvidas questões como a propriedade dos serviços públicos (privada, mista ou estatal) e as formas de fiscalização que os Governos nacionais desenvolveram sobre estes serviços.

Mostraremos que estes Governos, mediante executivos fortes, desenvolveram estratégias particulares relativamente aos serviços públicos. No caso do peronismo, veremos que as políticas dos serviços públicos tinham como fim o fomento do consumo. Veremos que no salazarismo do pós-guerra a reelaboração da figura do delegado do Governo junto das empresas procurou tornar mais eficaz a fiscalização dos serviços públicos, visando satisfazer a opinião pública. Por outro lado, a propriedade das empresas de serviços públicos mostra dois países com singularidades relevantes. Num caso, a alternância na propriedade dos serviços públicos (i.e. nacionalizações e privatizações) foi realizada sobretudo sob governos peronistas. Noutro caso, o caminho escolhido para a intervenção estatal foi o da empresa mista, para cujo controlo o Governo usou administradores e delegados seus junto das empresas.

Introdução: Peronismo e serviços públicos

“Mejor que decir es hacer” Juan Domingo Perón

Em 2006, durante o governo do presidente Néstor Kirchner, foi criada uma empresa provincial20 – Aguas Santafesinas S.A. – para o fornecimento de água potável e para a recolha de esgotos na província de Santa Fe. Isto aconteceu depois de ter sido retirada a concessão da distribuição de água potável, na cidade de Rosario (a maior cidade da província), à empresa Aguas Argentinas por incumprimento do contrato. Esta empresa – criada aquando das privatizações realizadas durante o governo do presidente Carlos Menem – tinha recebido em Abril de 1993 uma concessão por 30 anos. Aguas Argentinas substituía a empresa provincial Dirección Provincial de Obras Sanitárias, que se tinha constituído a partir da descentralização da estatal Obras Sanitarias de la Nación, realizada pelo governo militar entre 1978 e 1980. Por seu lado, a Compañía Consolidada de Aguas Corrientes del Rosario, de capitais privados estrangeiros, encarregada da distribuição de água na cidade de Rosario desde 1896, foi integrada em 1948 na empresa estatal Obras Sanitarias de la Nación, durante as nacionalizações realizadas por Perón. O ciclo cronológico privado/público/privado/(público21), deste serviço, não difere muito de outros casos latino-americanos e europeus. A singularidade do caso argentino reside no facto de as nacionalizações e as privatizações terem ocorrido sob a administração da mesma organização política: o peronismo. Perón, Menem e Kirchner são representantes do partido Justicialista (peronista). O objectivo principal desta secção é desvendar se estas mudanças se deram por mero acaso ou por alguma característica intrínseca a estes Governos.

As nacionalizações e privatizações tiveram como principal alvo os “serviços públicos”. Estes, também tratados pela literatura como infra-estruturas de rede

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A Argentina tem três instâncias governativas relevantes para os serviços públicos. A nação (a cargo do presidente da República), que se divide em 23 províncias (a cargo dos governadores) e as cidades (a cargo dos presidentes das câmaras municipais). Um caso à parte é a cidade de Buenos Aires que, até 1994, tinha um presidente da Câmara eleito pelo presidente da nação.

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A questão do sucesso/insucesso das privatizações e um possível regresso a situações intermédias (i.e. empresas de propriedade mista) foi levantada por Pier Angelo Toninelli; Cf. Toninelli, P.A. (2000), “The Rise and Fall of Public Enterprise: The Framework”. In Toninelli, P.A. (org.) The Rise and Fall of State-Owned Enterprise in the Western World, Cambridge: Cambridge University Press, p. x.

(caminhos-de-ferro, electricidade, gás, água, esgotos e telefone), constituem o clássico caso de monopólio natural. A sua principal característica é a existência de custos fixos elevados e a ineficiência na multiplicação das redes. O facto de se tratar de monopólios torna necessária a sua regulação por parte do Estado, quer a partir de instituições reguladoras, quer a partir da propriedade pública das empresas22. Essa regulação visa encontrar um equilíbrio entre os interesses dos investidores e dos consumidores23. Um dos problemas específicos destes serviços públicos é que devem ser capazes de financiar os seus investimentos futuros e de satisfazer a procura existente24. No caso da electricidade, uma vez que não pode ser armazenada, há uma forte ligação entre a estrutura da procura e os investimentos na capacidade instalada (procura de ponta)25. Isto obriga os investimentos a anteciparem-se à procura e, consequentemente, à necessidade de planificação no médio e até no longo prazo.

Na Argentina, a intervenção do Estado neste sector é consequência das características anteriormente enunciadas, não sendo inaugurada pelo peronismo. Na década de 30, os consumidores fazem-se ouvir, colocando a questão das tarifas. Estas são o factor ao qual são mais sensíveis os consumidores, tornando-se no elo mais visível da regulação. Todavia, o estabelecimento de determinadas tarifas, gera efeitos noutros domínios como no dos investimentos futuros, nos lucros razoáveis, nos subsídios cruzados, etc. Nos casos que serão aqui analisados, procuraremos mostrar que os processos de mudança na propriedade tiveram como objectivo, no curto prazo, o aumento do consumo das classes populares. Julgamos que o modo de agir com “urgência” faz parte de algumas características próprias do peronismo, rejeitando assim a ideia do “falso peronismo”26 de Menem. Julgamos, também, que a planificação limitada aos objectivos de curto prazo determinou que ficassem relegadas para segundo

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Chick, M., “The power of networks: defining the boundaries of the natural monopoly network and the implications for the restructuring of electricity supply industries”, Annales Historiques

de l’Électricité, 2, 2004, p.91.

23

Newbery, D., Privatization, Restructuring, and Regulation of Network Utilities, Cambridge, MIT Press, 2001, p.1.

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Newbery, D., Privatization, Restructuring...., cit, p.3.

25

Chick, M., “Productivity, pricing and investment in the French and UK nationalised electricity industries, (1945-1973)”, XIII Economic History Congress, Buenos Aires, 22-26 de Junho de 2002, p4.

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Menem foi acusado de não ser verdadeiro peronista uma vez que privatizou os serviços públicos que Perón tinha nacionalizado.

plano questões fundamentais na economia política das infra-estruturas de rede, tais como os investimentos futuros e os lucros excessivos.

Na primeira secção do capítulo, analisaremos o nascimento das empresas de serviços públicos durante a belle époque da Argentina (1880-1914). A relação entre as empresas (i.e. concorrência, cooperação) e a origem dos capitais são elementos centrais para compreender a tendência para o desenvolvimento de práticas não concorrenciais por parte das empresas. Depois, será abordada a questão da fiscalização das empresas de electricidade na fase em que o órgão de controlo é municipal. Na segunda secção, será mostrado que, durante o período de entre-guerras, as classes médias de Buenos Aires adquirem representação política e se produzem conflitos com as empresas de serviços públicos de capitais estrangeiros. O chamado “affaire CHADE” é apenas um dos muitos conflitos que, em torno das questões tarifárias, coloca em confronto os interesses de empresas de serviços públicos, os consumidores e o Governo. Na terceira secção, mostraremos as mudanças introduzidas pelo governo de Perón. Em primeiro lugar, revemos brevemente a nacionalização dos caminhos-de-ferro e a fiscalização centralizada dos serviços públicos para compreender de que forma a administração peronista se transformou no símbolo do nacionalismo económico. Em segundo lugar, procura-se compreender quais foram os factores que contribuíram para evitar a nacionalização das empresas de electricidade da cidade de Buenos Aires. Na quarta secção, apresentaremos as políticas de Perón, nomeadamente, as alterações na distribuição da riqueza que contribuíram para o fomento do consumo. Os efeitos destas políticas serão exemplificados com a questão das tarifas dos serviços públicos. Finalmente, observaremos aspectos da “revolução” neoliberal de Menem e as diferentes leituras sobre as privatizações.