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A INVENÇÃO DA ESTAÇÃO CIENTÍFICA NA FLORESTA NACIONAL DE CAXIUANÃ

1.2 IBDF, IBAMA, Instituto Chico Mendes: as diferentes gestões da floresta

1.2.1 As Gestões da Floresta nacional de Caxiuanã

O primeiro chefe da FLONA, segundo informações de ex-funcionários do IBAMA teria sido Maurício Souza Pinto Lobo19 um técnico de carreira, que lá ficou até 1971, quando foi substituído por Iranildo Alves de Oliveira, gerente da Floresta Nacional de Caxiuanã até 2002, quando se aposentou. Chama atenção o longo período que esteve à frente da administração: 31 anos. Sua trajetória pessoal não fornece muitas pistas a respeito das razões que o levaram à gerência e à longa permanência no cargo. Nasceu em Portel, no rio Pacajá. Aos 5 anos de idade foi para Almeirim, tendo ficado lá até os 14 anos quando foi para Belém, indo residir em Icoaraci. Aos 17 voltou para Portel, e em agosto de 1967 começou a trabalhar em Caxiuanã, para o IBDF, como prestador de serviços, após ser apresentado por seu pai que era carpinteiro e realizava trabalhos para a instituição. Conta que com a saída de Maurício Souza Pinto Lobo, chefe da FLONA, começou a assumir a gerência em 1971, então com vinte e um anos. Os dados parecem mostrar que Iranildo teria apoio de famílias da elite local, além de militares citados em seu depoimento.

O ex-gerente da FLONA ocupa uma posição central nos depoimentos das famílias da floresta, bem como daqueles que foram retirados. Ele e outros funcionários locais são o pessoal da Floresta. É tido pelos nativos como o responsável direto pela retirada. A entrevista realizada com ele é fragmentada e não consegue dar conta de uma série de aspectos importantes. Ficamos de fazer nova entrevista, no entanto, nas ocasiões em que estivemos em Breves (minha orientadora e eu), onde reside atualmente, não conseguimos localizá-lo. Os dados que dispomos de sua trajetória revelam deslocamentos precoces, mas há apenas indícios do capital que fez valer para tornar-se chefe da FLONA. Possivelmente relações pessoais, algum nível de escolaridade e a dificuldade de se encontrar um gerente de carreira que se dispusesse a ficar isolado na sede do IBDF na floresta. Durante toda a entrevista produz o discurso ambientalista do

19 Empreendi alguns esforços para localizar a documentação da FLONA. Hoje é custodiada pela UFRA, no entanto, ainda não foi tratada e o acesso não foi permitido.

esvaziamento e atribui aos ribeirinhos a degradação da floresta. Não apenas os nativos o vêem como o agente da retirada, como ele próprio constrói esta imagem com base no discurso ambiental. A sua entrevista, e a de pessoas da floresta deixam entrever relações personalizadas que estariam na base de sua nomeação para o cargo e de manipulações posteriores. Diz ter cursado o segundo grau, situação de excepcionalidade para um morador do interior da Amazônia nos anos sessenta.

O processo de desapropriação, implementado a partir de 1976, é relatado como algo fabricado em casa, e os seus relatórios (bastante imaginosos)20, - que revelariam a preocupação com a preservação da floresta - , teriam ocasionado a ação do IBDF, que obtivera recursos do Polamazônia para a construção da base física do IBAMA em Caxiuanã. No seu depoimento, Iranildo utiliza conceituações contemporâneas para justificar sua posição, como, por exemplo, a sugestão de que teria oferecido a troca de terra por terra, que não teria sido aceita pelas famílias da floresta.

O ex-gerente da FLONA relata que foi instruído pelo IBDF a registrar tudo o que existia nos sítios: as casas de morada, o metro quadrado do terreno, a roça, as plantações, as árvores e o tamanho da área onde a família trabalhava.

... o que eles dissessem que tinha a gente anotava. Então a gente passou a anotar a idade mais ou menos das árvores, a idade média das árvores, o filhote qual a idade um ano, meio ano, jovem dois anos, três anos, adulto cinco anos, dez anos. Aí vinha com uma mangueira, quantos anos tu achas que tem essa mangueira? Trinta anos. E a castanheira? Vinte e cinco anos, cinqüenta anos, tal. Aí bem no fim eu perguntava há quanto tempo tu moras aqui? Essa era a pergunta final. Aí diz olha tô morando aqui há cinco anos, aí se botava cinco anos... Aí eu dizia muitas vezes, essa planta, tu moras há cinco anos aqui e tem uma mangueira de trinta anos como é isso? Tudo bem,deixa pra lá, as vezes eu apagava e botava cinco anos. Então quando vinha se pagava, naquela época a minha consciência era isso, mas a medida que a gente vai crescendo, vai evoluindo, sabe que não é só isso. Hoje se a senhora me perguntar foi justa a indenização pra eles? Eu diria pra senhora que pelo bem que ele deixou pra trás sim, mas pelo que ele conhecia lá não, porque ali ele sabia viver. Ali ele sabia onde podia matar um animal pra comer, sabia onde pescar, ele sabia tudo ali. Então esse conhecimento dele a gente não pagou. (Iranildo, ex-chefe da FLONA Caxiuanã).

O trecho acima mostra como o ex-gerente atualiza o seu discurso segundo a etiqueta ambiental, envolvendo, inclusive o conceito de população tradicional.

20 O meu pensamento era: se hoje tem 352 famílias, no mínimo se for caça serão trezentos e cinqüenta animais por dia, se for roça, no mínimo trezentos e cinqüenta hectares por ano desmatados e queimados... Trezentos e cinqüenta animais por dia, por mês, por ano, isso foi um número lá pra cima. A projeção do número de animais foi o que chamou a atenção do IBDF para a necessidade de desapropriação da FLONA (Iranildo, ex-chefe da FLONA, atualmente aposentado).

Iranildo afirma que houve pressão para que as pessoas saíssem, mas que ele procurou fazer tudo da melhor maneira possível e que mantém boas relações com os antigos ocupantes da FLONA. Pudemos observar como o gerente utiliza suas relações para prestar pequenos favores, - o que ocorre ainda hoje -, intensificando o sentimento de obrigação e lealdade que os atuais e antigos ocupantes têm em relação a ele.

As pessoas que ainda vivem na FLONA relatam que muitos saíram assustados e chorando, deixando para trás tudo o que tinham. Esse clima de urgência pode ser explicado pelo assassinato de Evaristo e de seu filho Zeca, de oito anos, cometido, segundo familiares, pelos funcionários do IBDF, com o intuito de assustar os moradores. O crime teria se dado porque Evaristo teria desobedecido à ordem de proibição de extração do látex da maçaranduba.

A única referência de Iranildo com relação a esse fato, é a de que “não gosta do senhor Jacinto”. Jacinto é irmão do morto e ainda mora com sua família na FLONA Caxiuanã. Foi ele que nos deu a primeira versão da violência praticada . Até então, os demais entrevistados não haviam tocado no assunto. Não é necessário dizer, que Iranildo foi imediatamente avisado de nossa visita a Jacinto.

Iranildo justifica o fato de muitas famílias haverem sido retiradas sem indenização dizendo: As outras saíram livre e espontaneamente. Só queriam o transporte que a gente dava e elas saiam. É difícil imaginar uma família que mora num determinado lugar há gerações, concorde em sair de livre vontade de sua terra, aceitando apenas o transporte. É possível que o evento acontecido com a família do senhor Jacinto tenha instalado o medo – embora não diretamente relacionado com a saída – transformando-se no principal motivo para a saída apressada das famílias. Os moradores que ficaram em Caxiuanã, à exceção de Jacinto, não comentam o assunto. A grande maioria, quando perguntada, informa que o processo de desapropriação aconteceu de forma tranqüila. Outros dizem que as pessoas saíram chorando, mas não se referem ao crime. Para eles, o motivo do choro era somente porque as pessoas estavam deixando para trás as suas terras, suas benfeitorias e o seu modo de viver. Ainda hoje predomina o silêncio a respeito do ocorrido. Segundo Iranildo permaneceram na FLONA aqueles que detinham títulos de propriedade. Esta informação, no entanto, não corresponde à realidade, uma vez que Jacinto não possui título de terra e pelo menos dois dos entrevistados retirados da FLONA possuíam título de propriedade. Os dados e

os relatos dos nativos mostram que as relações pessoais e de compadrio com o gerente da FLONA foram fundamentais para que estes pudessem permanecer na FLONA.

Segundo os dados levantados, as famílias que permaneceram, exceto a de Jacinto, eram de posseiros e possivelmente tomavam conta da propriedade. Se lembrarmos o padrão de dominação vigente na Ilha de Marajó21 e a formação de grandes propriedades por meio de ocupação e registro em cartório, pode-se entender que “os posseiros” permaneceram em virtude da influência política dessas famílias poderosas, cujas propriedades, reais ou fictícias, nunca foram desapropriadas. Nos relatos e depoimentos por nós colhidos fica evidente a relação entre as famílias influentes, o gerente da FLONA e as famílias que vivem em Caxiuanã. Entre este e aquelas, excetuando-se a de Jacinto há relações de compadrio. Foram exatamente essas as famílias as que puderam permanecer.

Estas famílias vivem em meio a grandes restrições e controles, referentes à área onde têm suas casas, que não pode ser ampliada, e à utilização dos recursos naturais. No passado, como relatam, não era permitido vender o açaí excedente que era deixado e apodrecia na mata.

Até o ano de 2004 a castanha do Pará, ao ser retirada da floresta, era dividida meio a meio com o IBAMA, a título de pagamento de uma taxa que ninguém, nem mesmo os funcionários do IBAMA sabem esclarecer ao certo a origem. Este assunto foi suscitado por Silveira (1977) e Ninni, (2001), chamando a atenção de um grupo de pesquisadores da Estação Científica Ferreira Penna que ajudou os ribeirinhos a preparar uma carta ao IBAMA solicitando o cancelamento do pagamento. Embora fosse necessário verificar, com mais exatidão os motivos desta cobrança, lembramos que o velho código florestal previa um pagamento para a extração de frutos e sementes, enquanto que o novo (1965) proibia qualquer atividade extrativista até a elaboração do plano de manejo, cuja regulamentação levou trinta anos. É bem possível, que em vista da realidade local tenha-se feito um arranjo. Permitir a colheita da castanha, mediante um tributo pago em espécie. Não só com esse arranjo, de alguma forma, a lei, embora revogada, estaria sendo atendida, e ao mesmo tempo, eventuais coletores externos seriam desencorajados. Esse fato mostra como os controles e as restrições são exercidos, e centralizados na figura do gerente do IBDF/IBAMA, transformando em dívida e sentimento de obrigação cada pequena concessão.

Após a aposentadoria de Iranildo, os gerentes foram nomeados entre técnicos concursados e as relações dos ribeirinhos com a administração local do IBAMA se modificou. Embora a elaboração e aprovação do plano de manejo não tenham sido concluídas, a gerente Vanderléia Almeida e Maria Lúcia Carvalho, chefe substituta da FLONA Caxiuanã, tem clareza a respeito dos direitos das populações tradicionais e estabeleceram com os grupos familiares relações de colaboração. O que é feito em duas mãos, uma vez que são os ribeirinhos que informam o IBAMA a respeito da presença de madeireiros, caçadores ou geleiras22.

Figura 2 Sede do IBAMA na Floresta Nacional de Caxiuanã (Foto Diana Antonaz, 2007)