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CIÊNCIA PAISAGEM E MEIO AMBIENTE

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho procurei discutir a produção do conhecimento científico e relacioná-lo, dentro do contexto da Floresta Nacional de Caxiuanã, ao conhecimento tradicional, indispensável para o avanço das pesquisas dos cientistas que ali trabalham. A seu modo, tanto o conhecimento científico quanto o conhecimento tradicional são indispensáveis.

Circunscrito a pequenos agrupamentos humanos, o conhecimento tradicional geralmente é passado de geração em geração através da oralidade, obedecendo quase um ritual. Diariamente as crianças são lembradas de como agiam seus avós, de como agem seus pais, quais os valores a serem perseguidos e os costumes aceitos naquele grupo. Mesmo analfabeto, um indivíduo que nasceu e cresceu numa comunidade isolada como a de Caxiuanã chega a ser respeitado e reverenciado pelos outros moradores pelo nível de sabedoria que detém e demonstra nas diversas situações do dia a dia.

O conhecimento científico, diferentemente, segue um protocolo dominado pela racionalidade. Desde cedo, ainda na graduação, o indivíduo que pretende seguir a carreira científica começa a aprender os códigos que pautarão toda a sua vida acadêmica. As regras formalmente elaboradas e publicadas, existem para todas as situações, desde a apresentação de trabalhos acadêmicos, a elaboração de monografias, dissertações e teses, a apresentação de projetos, a publicação de livros, a orientação à docentes e demais atividades pertinentes à carreira. O rigor científico está em todas as etapas da carreira. Um cientista renomado passa por diversos estágios e provas. Via de regra, antes de atingir o ápice, o cientista é sempre aprendiz de algum outro. O orientador tem a responsabilidade de moldar o seu aprendiz para que ele venha a ser um dia um cientista. Esta rede que se forma entre mestres e alunos no mundo científico é totalmente diferente da relação entre mestres e alunos na escola. Ali as relações são superficiais. Ao longo da vida, guarda-se na memória um ou outro professor que por alguma razão tenha se destacado na nossa formação. Os orientadores na carreira científica, no entanto, são inesquecíveis. Dificilmente alguém esquecerá quem foi o seu orientador de mestrado ou doutorado, porque a área de atuação destes se confunde e o mundo que o aprendiz vai percorrer é o mesmo já percorrido por seu orientador. Cria-se

um elo, uma “cumplicidade” entre orientador e orientado que se arrasta ao longo da vida. É sabido, no entanto, que o mundo científico não se restringe a orientandos e orientadores, doutores e estudantes de pós-graduação. Há um mundo que gira em volta dos cientistas na condição de auxiliares de laboratórios e guias de campo que geralmente não aparecem no resultado das pesquisas. Nenhuma grande obra foi escrita ou produzida apenas pelo detentor da honraria. Há uma legião de pessoas flutuando ao seu redor e auxiliando.

Os dados coletados junto a pesquisadores e moradores de Caxiuanã, nos permitem vislumbrar qual a situação que hoje ocorre na região, oriunda do contraponto entre a produção de conhecimento científico e a sua relação com as populações locais. A conclusão deste trabalho indica duas claras linhas de pensamento, dissociadas e de difícil convergência: a) - os moradores esperavam mais da ECFPn, uma vez que ela está ali para produzir conhecimento, para conhecer o meio onde eles vivem e de alguma forma traduzir isso em ações que pudessem transformar suas vidas; b) - Os pesquisadores se voltam única e exclusivamente para suas pesquisas e vêem o guia de campo apenas como um instrumento para alcançar seus objetivos de forma mais rápida e segura. Essa dicotomia não prejudica o avanço do conhecimento científico porém causa frustração aos moradores.

O ideal, no caso do Museu Goeldi que optou por implementar uma Estação Científica dentro de uma Unidade de Conservação onde moram populações tradicionais, seria aproveitar esse diferencial em favor de suas pesquisas e reconhecer a sua importância. O guia de campo que disponibiliza todo o seu conhecimento a determinado pesquisador, deve ter o seu trabalho reconhecido ao final daquela pesquisa, como um importante componente para o avanço do conhecimento. De “simples trabalhador braçal” como pensam alguns pesquisadores, o guia de campo é também aquele que define o melhor local para a localização de um equipamento de pesquisa por conhecer melhor do que ninguém aquele rio, baía ou parte da floresta em que vive. Esse conhecimento permite, conforme os próprios pesquisadores, diminuir em até seis meses o tempo que aquela pesquisa levaria se o cientista tivesse que ficar observando a maré até definir o “ ponto ótimo” de colocação do equipamento. Como equacionar a questão é uma pergunta que fica em aberto. Esta discussão guarda alguma proximidade também com a discussão que vem sendo feita a respeito da proteção aos conhecimentos das sociedades tradicionais.

A principal iniciativa da Estação Científica Ferreira Penna no sentido de uma aproximação com os moradores de Caxiuanã, ocorreu no passado, através do Programa Floresta Modelo de Caxiuanã, interrompido antes de completar o tempo previsto, ou seja, cinco anos. Esse programa criava a interface necessária entre o mundo científico e o saber tradicional que se completavam e geravam ações extensivas que podiam proporcionar uma melhoria na qualidade de vida local, anseio dos moradores desde que os primeiros pesquisadores do Museu chegaram ao local. É importante notar que a inserção desse programa era uma determinação do documento base do Plano de Manejo da ECFPn, formulado em novembro de 1995 em dois seminários com especialistas internacionais em unidades de conservação e populações de entorno. Ao implementar tal programa, a Estação iniciava em 1996, o trabalho que permitia justificar, do ponto de vista social local, a presença da pesquisa científica na área. O programa foi endossado pelas comunidades, que participaram da sua criação e gestão e que nele depositavam esperança de dias melhores para a educação, saúde e economia local. O guia de campo faz parte de um contexto em que se inserem todos os demais moradores da Floresta. O distanciamento deste guia, que passa a perceber um salário fixo ou remuneração eventual, dos cientistas e seu conhecimento não é o recomendável. Este guia pode ser um elo entre a ciência e o conhecimento tradicional.

Com referência a atuação dos pesquisadores em Caxiuanã, o conhecimento da biodiversidade está centrada nos estudos de flora e fauna. O homem tem sido visto de forma periférica, como um coadjuvante. Isso ocorre porque os pesquisadores são primordialmente oriundos das Ciências Naturais (Flora, Fauna, Climatologia e Geologia), com uma visão mais centrada em suas especialidades sem buscar nas suas pesquisas a interatividade do homem local com a natureza. Essa falta de uma visão mais abrangente (salvo raras exceções) que inclui os moradores da Flona como parte essencial para a conservação daquela Floresta acaba por não se traduzir em realidade. O saber local é subestimado e de certa forma desvalorizado, apesar de ser imprescindível à maioria dos pesquisadores que ali trabalham. Falta, portanto, a visão de parceria que poderia trazer melhores resultados para ambas as partes. Há uma ilusão por parte do Museu Goeldi de que seria necessário um grande número de cientistas sociais trabalhando em Caxiuanã para reverter esse quadro. Entendemos que a presença de cientistas sociais em Caxiuanã poderia impulsionar a geração de conhecimento, dando visibilidade aos ribeirinhos e sua cultura. Trata-se de uma questão de postura em relação

ao próximo e de amplitude de visão. Ao estudar o seu objeto, é oportuno considerar também o ambiente onde se trabalha e aprender a enxergar que existem pessoas atuando de diversas formas para que o resultado da pesquisa seja o adequado. Reconhecer esta realidade é demonstrar respeito com o guia de campo e com os moradores da Floresta Nacional de Caxiuanã.

Ao mesmo tempo em que os pesquisadores reconhecem, por exemplo, que sem o guia de campo, precisariam de seis meses de estudo, somente para achar o ponto ótimo onde instalar seus equipamentos, no mesmo instante se referem a este guia de campo como “apenas um trabalhador braçal”. Este conhecimento adquirido pela vivência permanente no local revela que dinheiro e tempo podem ser economizados com as informações repassadas pelos moradores aos pesquisadores. Mas, do ponto de vista do pesquisador, o fato de pagarem diárias para os ribeirinhos é uma forma de reconhecimento do bom relacionamento e uma forma de remuneração ao seu conhecimento, como se esse conhecimento tradicional tivesse um valor menor, uma vez que ninguém questiona se este guia de campo está satisfeito com o valor da diária paga (em torno de onze reais em 2006), por sua contribuição, que inclui toda a gama de conhecimentos que ele detém sobre a floresta, seu modo de vida e sua capacidade de sobrevivência naquele meio. Se até hoje o Museu Goeldi não conseguiu definir um valor em dinheiro que permita “segurar” suas coleções científicas de “valor inestimável”, como pensar que uma diária pode remunerar o conhecimento adquirido pelo guia de campo ao longo de sua vida? Como os guias de campo precisam viver e custear suas despesas, certamente precisam ter o seu trabalho remunerado dignamente, porém o conhecimento absorvido pelos cientistas durante o trabalho de campo não deve ser desprezado. Deve ser valorizado e reconhecido em todos os níveis.

Ao serem perguntados se dividiriam a co-autoria de um trabalho científico com os guias de campo alguns pesquisadores ficaram perplexos, o que demonstra que o guia de campo não é visto como um igual. Apesar de reconhecido por todos, o saber tradicional é colocado numa outra instância, diríamos que inferior. Isso não contraria todas as atuais recomendações de reconhecimento do saber local, valorização e inclusão das populações tradicionais, no contexto da sociedade?

Nos parágrafos finais desta tese utilizo Ingold (2000 : 25), porque pode iluminar e ajudar a entender a relação entre ciência e conhecimento tradicional. O autor retoma uma expressão de David Anderson para explicar a relação de pastores e caçadores de

Taimyr (norte da Sibéria) com animais e outros elementos do ambiente: sentient ecology. Esta noção é baseada no sentimento e consiste nas aptidões, sensibilidades e orientações desenvolvidas numa experiência construída na longa duração no sentido de poder dirigir a própria existência em determinado ambiente. Outra palavra que pode ser utilizada para esse tipo de sensibilidade e capacidade de resposta é intuição, categoria esta desqualificadora para a ciência e o pensamento ocidental, fortemente embasados na racionalidade. A intuição tem sido vista como um conhecimento de ordem inferior. A intuição não é monopólio das sociedades tradicionais, mas cada um de nós dela lança mão a cada instante na vida cotidiana. Os cientistas como outros humanos dependem dessas capacidades e aptidões. Por isso, a perspectiva de domínio da razão abstrata que fundamenta a ciência ocidental é praticamente inatingível. A compreensão intuitiva não se coloca contrária à ciência. Sustenta-se na capacidade de percepção, que emergem para cada pessoa, através de um processo de desenvolvimento em um ambiente historicamente específico. Estas habilidades, sustenta o autor, fornecem os fundamentos para qualquer sistema científico que lida com o ambiente como objeto. Esses conhecimentos não constituem uma ciência alternativa “nativa” diferente da ciência ocidental, mas algo mais próximo de uma poética do lugar (poetics of dwelling, no sentido de ambiente), que contém o saber tradicional.

A aquisição desses conhecimentos é histórica e processual, por isso podem ser inventariados, mas a experiência em que se baseiam, fundamental para produzir a ciência do lugar e no lugar não pode ser adquirida em curto prazo, por meio da racionalidade. Acho que esta perspectiva contribui no entendimento da imprescindível colaboração dos nativos.