• Nenhum resultado encontrado

A INVENÇÃO DA ESTAÇÃO CIENTÍFICA NA FLORESTA NACIONAL DE CAXIUANÃ

1.1 A Floresta Nacional de Caxiuanã

A FLONA de Caxiuanã, a primeira a ser criada na Amazônia12, situada nos municípios de Melgaço e Portel, no Estado do Pará, é fruto do Decreto-lei 239, de 28 de novembro de 1961. No ato de sua criação, constava que tinha 200 mil hectares, localizados no interflúvio entre os rios Xingu e Tocantins.

Atualmente a extensão mais aceita para a FLONA é de 330 mil hectares, o que representa quase o dobro daquela indicada no decreto que a criou, tendo como limites oficiais (cf. mapa na pág seguinte): a leste – a margem esquerda do rio Anapu e das baías de Caxiuanã e de Pracuí; a norte – a partir da baía de Caxiuanã, segue em direção oeste pelo divisor de águas entre os afluentes do rio Caxiuanã e os afluentes da margem direita do rio Amazonas; a oeste – segue na direção sul, limitando-se no divisor de águas entre os afluentes da margem direita do rio Xingu e os afluentes das baías de Caxiuanã, Pracuí e do rio Anapu, a sul – segue o paralelo 2o. e 15’ S, desde o limite oeste até a margem esquerda do rio Anapu (Lisboa, 2002).

A extensão informada pelo IBAMA deverá ser confirmada quando da elaboração do Plano de Manejo da Floresta Nacional, em discussão há algum tempo. No segundo semestre de 2005, reuniões foram realizadas por representantes do IBAMA de Brasília com os moradores de Melgaço e Portel para discutir algumas ações relacionadas ao Plano, especialmente a criação de associação de moradores das diversas comunidades do interior desses municípios, ainda sem resultado em nossa última incursão a campo em maio de 2007. Essas formas de organização exógenas são estranhas aos ribeirinhos, que tem o parentesco como eixo de organização da vida social, e por vezes não dão as respostas esperadas pelas instituições.

O significado da FLONA para aqueles que a habitam não pode ser desvinculado das intervenções que estes sofreram no passado, fruto de mudanças de legislação e práticas administrativas que refletem e refletiram interesses políticos mais amplos do que a simples preservação de bens naturais. A FLONA será, portanto, analisada, a partir de sua perspectiva histórica (ANTONAZ & BEZERRA, 2006) , de forma a explicitar os contextos temporais em que as intervenções foram realizadas.

A Floresta Nacional de Caxiuanã foi instituída sob a égide do Código Florestal de 1934 (Decreto 23.793 de 23 de outubro de 1934), que regulamentava a

proteção das florestas, ficando a aplicação do Código a cargo do Serviço Florestal do Ministério da Agricultura. A floresta era vista como um bem de interesse comum, sendo que a sua preservação convergia para vários objetivos que englobavam o econômico (a retirada de madeira e a proteção contra queimadas), a preservação de recursos naturais como cursos dágua e dunas, a preservação da paisagem, da configuração territorial da nação e a promoção da segurança nacional13. O decreto previa, ainda, a desapropriação das áreas das FLONAS, no entanto, os grupos familiares que viviam no interior da Floresta de Caxiuanã lá permaneceram ainda durante muitos anos, sem que percebessem qualquer alteração em sua vida cotidiana.

O código florestal de 1965 (lei 4771 de 15/9/1965) amplia as definições de área protegida e prevê proteções adicionais para a Amazônia, enfatizando a relação entre florestas e segurança nacional. Neste instrumento legal os guardas florestais ganham poder de polícia e passam a andar armados. Esse código proíbe a extração de produtos florestais, sujeitando sua retirada à aprovação de planos de manejo, que nunca foram concretizados.

Em 1976, vinte e cinco anos após a criação da Floresta Nacional de Caxiuanã, período durante o qual estiveram em vigência dois códigos florestais (tanto o de 1934, quanto o de 1965) que previam a desapropriação de áreas de floresta, o IBDF (Ministério da Agricultura), ordena a retirada da população da FLONA Caxiuanã. O entendimento do contexto da época pode sugerir algumas pistas a respeito de como se deu esse processo. Em primeiro lugar, na década de setenta ocorreram eventos internacionais promovidos pelas Nações Unidas a respeito do futuro da terra, durante os quais, a proteção do meio ambiente e a noção de desenvolvimento sustentável se consolidaram enquanto valores dos novos tempos. Apesar da posição do Brasil na Conferência de Estocolmo de 1972, que temia que controles ambientais pusessem um freio ao crescimento industrial, em 1973 é criado o primeiro órgão que leva o rótulo “ambiental” em nível federal, - a SEMA (Secretaria do Meio Ambiente) -, subordinada ao Ministério do Interior, e que tem por objetivo demarcar as estações ecológicas14 . Entre 1974 e 1976 são criados órgãos ambientais de competência estadual nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo (Leite Lopes, J.S. et. al., 2004).

13 Em anexo, encontram-se os textos legais referentes às florestas nacionais.

14 Unidades de preservação integral, destinadas principalmente à preservação e reprodução de espécies e à pesquisa científica.

Figura 1. mapa da FLONA de Caxiuanã com localização da ECFPn. Fonte: Lisboa, 2002

Mais dois fatores são relevantes no contexto da época: a experiência recente das guerrilhas na Amazônia, que ocasiona o controle de áreas passíveis de serem ocupadas por guerrilheiros, seja por esvaziamento, como é o caso de Caxiuanã, ou por ocupação maciça, como é o caso da Transamazônica, e a disputa de competências entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Interior (instituição

que tem sua competência aumentada no período do governo militar). Ao longo de décadas, fruto da industrialização e do deslocamento de poder, o Ministério da Agricultura foi sofrendo gradativo esvaziamento, concretizado por meio da transferência de importantes órgãos para outros ministérios. O Ministério da Agricultura exerceu desde o início do século XX papel preponderante na vida do país. Regulava e administrava toda a hinterland, o comércio interno e externo e centralizava em seus institutos as principais atividades de pesquisa, como a química, as ciências agrárias e os produtos naturais. Ao longo das décadas de 50/60, esses institutos foram sendo transferidos para as universidades, principalmente para a Universidade do Brasil (atual UFRJ), localizada na então Capital Federal. É razoável supor, que no momento em que o Ministério da Agricultura ia sendo paulatinamente esvaziado, o IBDF tivesse procurado desenvolver ações que lhe dessem visibilidade dentro da nova filosofia ambientalista que marcou aquela década, ou seja a da preservação de belezas naturais intocadas, a fim de ganhar espaço e financiamentos na disputa em curso.

Diegues (1981) sugere que as áreas protegidas foram criadas no Brasil seguindo o modelo idealizado nos Estados Unidos, no século XIX, que recortava áreas de natureza conservada (flora e fauna) com o fito de prover espaços idílicos a serem visitados pelas populações das grandes cidades. O autor chama a atenção para o fato de que no Brasil, onde a situação é ecológica, social e culturalmente distinta, mesmo nas florestas tropicais aparentemente vazias, vivem populações indígenas, ribeirinhas, extrativistas e pescadores artesanais, portadores de cultura e mitos próprios e de relações com o mundo natural distintas das existentes nas sociedades urbanas. A legislação brasileira que cria as unidades de conservação prevê a transferência dos moradores dessas áreas, causando uma série de problemas de caráter ético, social, político e cultural.15

É nesse quadro que o IBDF promoveu o esvaziamento da floresta de Caxiuanã. No entanto, em virtude de relações pessoais e de compadrio de algumas famílias com o então gerente da FLONA no IBDF e da manipulação de títulos de propriedade, algumas famílias puderam permanecer.16

15 O livro de Diegues é datado e enfoca justamente esse conservacionismo promovido pelo governo brasileiro nos anos 1970.

16 Uma análise detalhada do processo de retirada e permanência das “famílias” da FLONA é apresentada no paper de Antonaz, D. e Bezerra, M.G.F., 2006.

Por ocasião da retirada forçada viviam em Caxiuanã 352 “famílias”. O termo família se refere aqui à categoria empregada pelos órgãos de intervenção: o IBDF, seu sucessor, o IBAMA e o Museu Goeldi. A “família” aqui considerada é a família nuclear, constituída de pais e filhos. O mesmo termo tem significação englobante para os nativos, o de grupo familiar, ou seja, aqueles que viviam no mesmo sítio e que mantinham relações de parentesco e solidariedade. Para o IBAMA, permaneceram na FLONA 24 famílias, totalizando 262 pessoas. Na “comunidade” de Caxiuanã, segundo os nativos, apenas quatro. A retirada forçada ficou marcada pela memória do assassinato de um ribeirinho por um guarda florestal, sendo que essa experiência que instalou o medo e acelerou a saída das pessoas, foi internalizada pelas gerações que viveram a expulsão e baliza ainda hoje a relação daqueles que viveram a retirada forçada com as instituições de governo.

A crescente autonomização da área ambiental culmina com a criação do IBAMA em 1989 e do Ministério do Meio Ambiente em 1992. Com isso, o ambiente passa de bem de uso comum para um bem que tem um valor em si (ANTONAZ ,D; BEZERRA, M.G.F., 2006, apud AHRENS, S.), ou seja, da regulação do uso por pertencer a todos, a um bem transgeracional ao qual são associados valores simbólicos e concretos. Leite Lopes, J.S, et al. (2004) , inspirando-se em Norbert Elias, elaboram a noção de “etiqueta ambiental”, ou seja um código de comportamentos desejáveis face ao meio ambiente como valor.

Dentro dessa nova ordem, em 1994 são regulamentados artigos do código florestal de 1965, visando a efetiva implantação dos planos de manejo. Neste documento aparece pela primeira vez o direito de permanência “dos legítimos ocupantes”. Em virtude dos processos de mobilização social dos anos 80 na Amazônia, - e no Acre em particular -,culminando com o assassinato de Chico Mendes em 1989 -, os “legítimos ocupantes” passam a ser denominados “populações tradicionais”, categoria que expressa direitos, tendo portanto relevante significação política.