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A INVENÇÃO DA ESTAÇÃO CIENTÍFICA NA FLORESTA NACIONAL DE CAXIUANÃ

CIENTISTAS NA ESTAÇÃO CIENTÍFICA FERREIRA PENNA

3.4 Conservação da natureza, coleções e bio-pirataria

Ao mesmo tempo em que o cientista natural se “sente em casa” quando chega na floresta, pode-se dizer que é “tomado” pelo ímpeto de coletar materiais para sua pesquisa e para a formação de coleções. Nesse sentido, é comparável ao colecionador que persegue o objeto desejado . Esse comportamento é transmitido para os alunos de pós- graduação e para os técnicos que acompanham as excursões. A fim de evitar excessos por parte do cientista, que venham a comprometer a biodiversidade, uma série de mecanismos de controle são postos em prática. Pedro Lisboa refere que durante sua

gestão à frente da Estação Científica Ferreira Penna (1993-2001) “todos os projetos a serem realizados em Caxiuanã passavam por análise criteriosa do Conselho Consultivo de Caxiuanã e não eram aceitas metodologias que de alguma forma impactassem negativamente a floresta”. Naquela época, para o IBAMA a biopirataria ainda era uma questão distante70, mesmo assim, o Conselho de Caxiuanã já funcionava como um rigoroso crivo para a saída de material de pesquisa da FLONA. A coleta de material biológico é regulada pela Instrução Normativa no. 19, de 11 de outubro de 2006. Porém as facilidades de retirada de material biológico da Amazônia são amplas, considerando-se sua vasta extensão e a precariedade dos meios de fiscalização. O IBAMA emite autorização de coleta para cada pesquisador, por expedição científica onde consta o tipo de material a ser coletado e a quantidade. Só que a fiscalização é feita por amostragem em “blitz” realizadas pelo órgão e não rotineiramente.

Após tantas críticas feitas ao governo brasileiro devido à questão da biopirataria, foram criados programas dentro do Ministério da Ciência e Tecnologia, com o objetivo de fazer coleta e inventário de material biológico para a formação de coleções científicas e a permuta de material entre instituições similares. Dentro do TCG, o MCT também criou um indicador71 para medir o incremento das coleções científicas no Museu Goeldi e no INPA, unidades de pesquisa daquele ministério na Amazônia. Este índice mostra uma curva ascendente após a implantação do PPBIO, tendo avançado de 2,34 em 2003 para 3,16 em 2006.

No passado, na década de 70 houve um esforço da mesma magnitude, empreendido pelo CNPq: o projeto Flora72, que propiciou o aumento exponencial do herbário e das coleções zoológicas do Museu. Estas “forças-tarefas”empreendidas pelo governo brasileiro tem por objetivo mapear a biodiversidade existente na região

70 No primeiro semestre de 2006, o IBAMA apreendeu material em duas expedições científicas de interesse do MPEG, causando sério mal estar na comunidade científica.

71 Índice de Incremento Médio das Coleções Científicas (IMCC).

72 Projeto Flora Amazônica, cujo objetivo era “estabelecer os meios de execução de um levantamento básico da vegetação e da flora do Brasil, a curto prazo, focalizando a potencialidade científica, econômica e social das espécies, usando as seguintes estratégias: 1. Realização de inventários botânicos de herbários brasileiros e do exterior, formando um banco de dados de fácil acesso sobre a flora em geral, assim como bancos específicos para plantas úteis; 2. Realização de um levantamento dos recursos bibliográficos referentes à flora brasileira em bibliotecas nacionais e estrangeiras; 3. Fortalecimento ou estabelecimento de centros de pesquisa botânica no país e aperfeiçoamento científico de brasileiros na área de taxonomia vegetal; 4. Coleta intensiva, através de excursões botânicas, em áreas pouco conhecidas e áreas ameaçadas de destruição ambiental” (Lisboa, 1994)

amazônica para garantir o conhecimento sobre espécies que certamente serão extintas, objeto muitas vezes dos próprios projetos “desenvolvimentistas”do governo e também para assegurar a salvaguarda de “princípios ativos” existentes na rica biodiversidade regional, objeto de cobiça de grandes empresas de fármacos e medicamentos internacionais.

Durante a minha qualificação um dos membros da banca, o Prof. Alex Fiúza de Melo, cientista político e reitor da Universidade Federal do Pará, colocou a seguinte questão: “a ciência também é biopirataria?”

De acordo com o relatório final da Comissão sobre direitos de propriedade intelectual – CIPR o termo “biopirataria” foi lançado em 1993 pela ONG RAFI(hoje ETC-Group) para alertar sobre o fato que recursos biológicos e conhecimento indígena estavam sendo coletados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científicas e que as comunidades que há séculos usam e conservam estes recursos e geraram os conhecimentos não estão participando nos lucros. O termo ainda não é consensual nem pode ser usado para expressar a prática de crime e o código penal atual não tipifica o crime de biopirataria. O Decreto no. 5.459 de 07.06.2000, regulamenta o artigo 30 da Medida Provisória no. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001 disciplinando as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Por outro lado, a coleta de material biológico destinado à pesquisa científica sendo regulada, coloca os cientistas e a ciência na legalidade, pelo menos enquanto estes não transgredirem ou driblarem as regras estabelecidas. Nisto o cientista natural é privilegiado em relação ao cientista social. Pois apesar de regulamentada a questão do acesso ao conhecimento tradicional, a assinatura daquela autorização de consentimento prévio na prática, não significa o reconhecimento daquele saber objeto do estudo científicamente. Significa apenas que as pessoas estão cientes de que o seu conhecimento está sendo pesquisado por cientistas. Quando um cientista faz uma tese sobre utilização de plantas medicinais nas comunidades de Caxiuanã, toda a base da pesquisa é propriedade intelectual daquela população, é a sua vivência, o seu dia-a-dia. É conhecimento passado de geração em geração, geralmente através das mulheres bisavós-avós-mães-netas. A autoria do trabalho, no entanto, é do cientista. A dificuldade no meu entender, está no ritual de consagração dos dois tipos de

conhecimento. O tradicional baseado na oralidade e na cultura é um conhecimento mais “fluido”, é imanente às pessoas. O científico, que acaba por se traduzir sempre num paper, um livro, um vídeo, é mais palpável. Latour (2000 : 90-91) traduz com maestria o que tento trazer à discussão.

Quanto mais nos inteiramos das sutilezas da literatura cientifica, mais extraordinária ela nos parece. Passa a ser uma verdadeira ópera. Multidões são mobilizadas pelas referências; dos bastidores são trazidas centenas de acessórios. À cena são chamados leitores imaginários aos quais se pede não só que acreditem no autor, mas também que soletrem os tipos de torturas, provas e testes porque os heróis precisam passar antes de serem reconhecidos como tais... O autor vai acrescentando mais e mais testes impossíveis, parece que só pelo prazer de ficar vendo o herói supera-los. Desafia platéia e heróis, mandando um novo vilão, uma tempestade, um demônio, uma maldição, um dragão... e os heróis vencem. No fim, os leitores, envergonhados das primeiras dúvidas, têm de aceitar tudo o que o autor disse. Essas óperas se desenrolam milhares de vezes nas páginas de Nature ou da Physival Rewiew (para deleite, admito, de poucos, pouquíssimos espectadores mesmo)

Enfim, o cientista passa a existir a partir de um ritual de instituição e acende a posições no campo por meio de sucessivos rituais de consagração. Como já foi dito anteriormente há uma rígida hierarquia no mundo científico e quem não se enquadra nos moldes estabelecidos, ocupa posições marginais na comunidade científica, muitas vezes produzindo conhecimento relevante, muitas vezes a reboque de figuras consagradas socialmente que sirvam de apresentação para os projetos. Quando o cientista não obteve o título de doutor, muitas vezes, apesar de grande conhecimento acumulado, é considerado não habilitado para uma série de práticas científicas. No entanto, dependendo do capital social e científico que acumulou pode assumir cargos de direção em instituições e assumir a coordenação de projetos internacionais.