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2 DELETREANDO

3.10 Curtamão: memória e lacuna

3.10.1 As lacunas da memória

Voltemos ao início do conto: “Revenho ver: a casa, esta, em fama e idéia.” (Curtamão, p. 42). Ao iniciar a narrativa, o personagem-narrador já vivenciou todos os obstáculos, que serão revividos no plano da memória. Além de ser metalingüístico, o texto é memorialista e, nesse sentido, é uma escrita cujo processo de construção e desconstrução se assemelha ao de Nenhum, nenhuma.

No início da narrativa, percebemos que, no plano dos afetos, há um eu faltante – o personagem-narrador – que vem rever a casa, que está pronta e que não foi usada pelo dono, mas que virou lugar de leitura, a escola. Trata-se de um eu fragmentado, que quer se integrar ao leitor (“CONVOSCO componho”) – (Curtamão, p. 34), através do processo da escrita no instante em que recorda. Ao mesmo tempo em que busca a memória, escreve, não só com palavras mas com o som, isto é, compõe solfejos, modulações, rascunhos de uma canção por vir. No instante da enunciação, ao rever essa casa-texto-escola, o personagem-narrador é um

leitor do tempo do enunciado, tentando soletrar o passado. Esse processo de decodificação do vivido é também uma composição: escrita-leitura que se reinventa enquanto nasce.

Lúcia Castello Branco (1994, p. 28) estudando o processo da memória, a partir de Bachelard e Deleuze, afirma que o tempo não é contínuo, mas lacunar. O processo da memória é como “uma obra, um trabalho, uma construção do sujeito, diante sobretudo da angústia que significa para ele a experiência da memória, o ato de reviver o desaparecido (e portanto, o descontínuo), de enfrentar a morte” (Grifo nosso).

Através da relação construção da casa/construção do texto e partindo do princípio de que o personagem-narrador faz uma releitura do passado, podemos desenvolver aqui, a partir do texto de Lúcia Castello Branco, a proposta de que o ato de recordar é também um trabalho de construção do sujeito e não um texto dado.

Desse modo, o protagonista do conto, o alvenel (personagem-narrador que relê – via memória – o passado da construção da casa) acaba construindo uma outra morada, o texto que lemos. Uma vez que o tempo do enunciado do personagem-narrador não coincide com o tempo da enunciação, o instante em que ele narra, o processo de recordação é tecido a partir de buracos do vivido. Recordar é, pois, um ato descontínuo, diríamos, uma desconstrução, já que o passado nunca vem de modo pleno, mas deformado. A casa revisitada, no instante em que é recordada, já é descrita com outro olhar. A escrita de memória, sendo lembrança, é assim um ato de esquecimento, como uma parede cheia de furos na qual se apóiam os andaimes do edifício-texto, nunca acabado, sempre precário e sempre reconstruído. O que resta das lembranças são estilhaços do vivido.

Nesse sentido, o título da narrativa é sugestivo. O vocábulo “curtamão” é um esquadro grande, usado pelos pedreiros para adequar o ângulo da parede que está sendo construída. Segundo o dicionário, a palavra “curtamão” vem de “corta-mão”. Como vimos anteriormente, o alvenel é metáfora do construtor do texto. No entanto, há aqui uma diferença. A construção, enquanto texto de memória, não é acabada. O personagem-narrador, com seu curtamão, isto é, o processo de recordação, tenta, assim, inutilmente, adequar a parede do passado ao presente, já que ele está assujeitado à linguagem. Há sempre cortes, pois a parede do relembrado é cheia de furos e o vivido é construído, metaforicamente, com pedaços de tijolos-palavras.

Ao relembrar, ele se depara não apenas com o dito, mas com o não-dito. Essas palavras-tijolos tentam inutilmente preencher a parede do tempo, mas a casa nunca se completa: “E o que não digo, meço palavras” (Curtamão, p. 44). Essa frase aparece três vezes na narrativa. Na página 43, ela apenas é insinuada: “[...] e o que não digo.” Na página

seguinte, aparece completa. No final do conto, novamente ela retorna, de modo diferente: “[...] e o que não dito.” (Curtamão, p. 46, grifo nosso). Em outros termos, o que não foi dito, o material de construção não utilizado, os solfejos, isto é, o rascunho da canção deverão ser soletrados pelo leitor e recriados na sua imaginação a partir dos significantes do texto: “Primeiro o sotaque depois a signifa” (Curtamão, p. 36).

Escrever como o construir supõe o uso do “corta-mão”, isto é, o curtamão-caneta, que corta palavras ou o próprio estilete que corta e faz incisões. Num outro enfoque, escrever e recordar, enquanto ato de deformar, supõe uma escrita com um esquadro, um corta-mão diferente, que mede ângulos e linhas nem sempre perpendiculares. Escrever é como um gesto descontínuo, um perigo, um cortar a mão, já que o feitiço pode até se voltar contra o feiticeiro, o estilete pode ferir o dono do texto.

Curtamão, texto de lembrança cuja escrita consiste no apagamento. O que sobra do passado são traços, inscrições, restos que se dão a conhecer, texto outro que sofre constante deslocamento. Recordar é reelaborar uma falta que nunca se completa, processo paradoxal de construir desconstruindo. Recordando, o protagonista reinventa precariamente, o que se perdeu. A casa que o personagem-narrador vê, no instante da enunciação, possibilita a construção-desconstrução de uma outra casa, o texto que ele constrói sempre outro, sempre diferente nas suas modulações. E esse texto nasce no instante em que ele vê a casa construída, que já tem outra função, não mais de acolher noivos, mas de permitir o soletramento, uma escola.

O texto de Curtamão nasce de ruínas da memória e o presente da escrita acaba sendo uma forma de driblar a decepção, evocada pelo protagonista no início do estória. A casa-texto nunca se constrói totalmente, não podendo ser medida por um curtamão geométrico, mas por um processo descontínuo, já que a memória é constituída de farrapos de lembranças.

Como já mostraram vários pesquisadores, os textos de Tutaméia quase sempre nascem da fala. Ruth Silviano Brandão (1989, p. 43), citando Lacan, afirma que, contrariamente ao que o bom senso afirma, não é a escrita que permanece, mas a fala, já que o que se fala é da ordem da voz e está inscrito no sujeito.

Lendo esta narrativa, há expressões que se referem ao corpo: “Suave o Armininho: - ‘Vai, vou...’ referia o montante de suspiros, durante cada fiada de tijolos” (Curtamão, p. 44, grifo nosso). Em outra passagem encontramos: “Tal o que meu, sangue ali amassei, o empenho e dívidas” (Curtamão, p. 45, grifo nosso). A construção da casa-texto está associada a um desgaste do corpo, a um pulsar de afetos que vêm à memória no instante

em que é revivida, uma vez que o personagem-narrador encontrou vários obstáculos para colocar o edifício de pé. Tais afetos, no instante da enunciação, se manifestam enquanto ruínas de lembranças e são devolvidos ao leitor que, com o personagem-narrador, reconstrói e recompõe o texto, mas sempre precariamente, já que o que não foi dito se inscreveu no corpo e é mais importante do que o que veio à lembrança no tempo da enunciação: “A casa, porém de Deus, que tenho, esta, venturosa, que em mim copiei – de mestre arquiteto – e o que não dito.” (Curtamão, p. 46, grifos nossos).

Buscando o silêncio, Guimarães se inclina para a letra. Lacan afirma que a verdade não pode ser dita por inteiro. Ela só pode se meio-dizer. A letra sozinha não discerne, mas efetua, afirma Milner (BADIOU, 2000, p. 50). E Rosa, revisitando sua obra, propõe uma escrita a curtamão capaz de suportar o murmúrio do indiscernível.

OE PARATEXTOE DE

TUTAMÉIA

No terceiro capítulo, refletimos sobre o processo de construção e desconstrução na obra rosiana. Ressaltamos que tanto o excesso quanto a subtração do sentido funcionam como elementos importantes na produção da opacidade da escrita do escritor mineiro. Nas correspondências de Guimarães Rosa, estudadas no primeiro capítulo, fica evidente a preocupação do autor de Tutaméia em construir um texto opaco. No comentário que faz à novela Campo geral, de Corpo de baile, como vimos anteriormente, Rosa faz referência ao elemento “algébrico”, isto é, à construção de um parágrafo obscuro, que deveria permanecer na tradução. Ora, excesso, subtração e opacidade do sentido remetem à letra.

Gostaríamos aqui de estabelecer uma relação entre a letra e o resto a partir do par criado por Lacan letter/litter: letra/lixo. Veremos em seguida como esse par tem a ver com a natureza relacional e móvel da letra, possibilitando também uma aproximação com os paratextos, sendo enfocados como resíduos das estórias de Tutaméia, resíduos estes importantes na construção da ilegibilidade da escrita rosiana.

Em Lituraterra, Lacan lança mão da expressão “a letter, a litter”, explorando a suspensão fônico-semântica através da relação letra/carta, lixo/resto:

Esta palavra é legitimada pelo Ernout et Meillet: lino, litura, liturarius. Mas me ocorreu pelo jogo da palavra com que nos sucede fazer chiste: a aliteração nos lábios, a inversão no ouvido.

Este dicionário (que se vá a ele)me pressagia auspício por estar fundado de um ponto de partida que tomei (partir, aqui, é partir de novo) no equívoco com que Joyce (James Joyce, digo) desliza de a letter para a litter, de letra/carta (traduzo)para lixo ( LACAN, 2003, p. 15 ).

Para o psicanalista francês, a noção de letra, lettre, estaria ligada à idéia de resto, litter, lixo, resíduo. Ora, o título das Terceiras estórias é Tutaméia e, dentre os sentidos propostos pelo escritor mineiro para a palavra “tutaméia”, estão os vocábulos “nicas”, “nonadas”, “bagatelas”, além de outros.

Essa relação da letra ao dejeto nos levou a estudar alguns paratextos (prefácios, provérbios e epígrafes) de Tutaméia, não para enfocá-los como fonte que geraria outros contos das Terceiras estórias, mas para tentar entendê-los como elementos marginais do texto que, aparentemente funcionando como lixo (litter), contribuem para a construção do “fora do sentido”. A relação dos paratextos com a letra, acreditamos, está na mobilidade e na aparente imprestabilidade, isto é, na sua abordagem enquanto dejeto, resíduo.Milner (1996, p. 104), ao tentar diferenciar letra de significante, afirma que:

Sendo deslocável, empunhável, a letra é transmissível: por essa transmissibilidade própria, ela transmite aquilo de que ela é, no meio de um discurso, o suporte; um

significante não se transmite e nada transmite: ele representa, no ponto das cadeias onde se encontra, o sujeito para um outro significante. (Grifo nosso).

Esse caráter “deslocável” destacado por Milner está no primeiro momento da obra lacaniana, quando a letra é enfocada com relação ao Simbólico e o autor dos Escritos enfatiza ainda sua natureza fonemática e tipográfica (MANDIL, 2003, p. 29). Ram Mandil, estudando a obra de Joyce e seguindo o caminho de Lacan, frisa que a letra pode ter esse caráter de mobilidade, mas a relação dela com o resto está contida principalmente no segundo classicismo lacaniano. Desse modo, a letra, enquanto litoral, é não só “lugar de encontro entre o mar e a terra, mas também de depósito de resíduos.” (MANDIL, 2003, p. 55, grifo nosso). Os paratexos e os contos de Tutaméia, considerados pelo autor mineiro como “nicas”, coisas de pouco valor, têm fundamental importância no processo de construção dessa obra. Por trás do humor e dos despretensiosos elementos anedóticos desses escritos, como já foi demonstrado por Benedito Nunes, há neles um excelente instrumento de agudas reflexões sobre a natureza da linguagem e sobre o processo de criação rosiano, que muitas vezes escapa ao sentido.

É nessa perspectiva de aparente inutilidade que estamos vendo os paratextos como tendo uma natureza semelhante à da relação entre o par letter/litter. Ora, essa relação da letra com o resto está estreitamente ligada àquilo que não se dá a ler. Como letter/litter, os prefácios, enquanto texto da margem,10 permitem uma leitura do que escapa ao texto linear, oficial, possibilitando a emergência de uma escrita que ainda não chegou ao palco da página, mas que está sempre por vir, como propõe Blanchot. E Rosa confirma essa proposta, quando, no prefácio Aletria e hermenêutiaca, faz referência ao “leite que a vaca não prometeu”:

Serão essas – (o autor se refere às anedotas de abstrações) as com alguma coisa excepta – as de pronta valia no que aqui se quer tirar: seja, o leite que a vaca não prometeu”, Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins;”

(Aletria e hermenêutica, p. 3, grifo em itálico do autor).

Enfim, o que foi relegado, a construção de um texto que oficialmente não se fez, sendo um resto, um texto de reserva, possibilita, a cada leitura, o surgimento de zonas indeterminadas de sentido, apresentando assim o impossível da representação, o “espaço da vacância”, isto é, um espaço a ser ocupável (BLANCHOT, 1984, p. 70).

10

Benedito Nunes considera os prefácios como contraponto do plano da criação e recriação das estórias: “[...] Nas estórias, a linguagem caminha num plano de criação e de recriação. Os Prefácios contraponteiam esse plano, como se, à semelhança de metalinguagem, contivessem eles algumas das regras do jogo da linguagem que em toda a obra se desencadeia” Cf: NUNES, 1976, p. 209. (Grifo nosso).

Mas para estudar os paratextos rosianos, vale a pena voltar a Lacan, quando se refere “ao escrito para não ser lido”: “um escrito, a meu ver, é feito para não se ler” (LACAN, 1992a, p. 265) . Mandil (2003, p. 165) estudou essa proposta, analisando o modo como Lacan lê Joyce.

A ilegibilidade de Finnegans Wake adviria dessa superposição de sentidos na formação de uma palavra, superposição que jamais elimina a presença do “zero”, o “coeficiente de anulação”. Anulação, pode-se dizer, da possibilidade de fixação de um único sentido a uma palavra, ou, em termos lacanianos, da dificuldade de estabilização da relação entre significante e significado.

Essa proposta do “não se dar a ler” dialoga, segundo Mandil, com a concepção blanchotiana do “livro por vir”. E o psicanalista cita uma frase de Blanchot que poderia tranqüilamente ser assinada por Lacan: “Eu quero ler o que, no entanto, não está escrito.” (MANDIL, 2003, p. 174). A leitura, segundo o autor de O espaço literário, tem algo de “abertura” que leva o livro a ir além de seu autor. O livro, para Blanchot, é diferente da obra. Enquanto o primeiro aponta para a materialidade do objeto, a segunda, a obra, nunca se manifesta plenamente e cabe ao leitor sempre atualizá-la. Desse modo, o ilegível, na sua opacidade, possibilita o transparente, isto é, leituras possíveis. O que não se dá a ler é, segundo Blanchot (1987, p. 196) como um nada, um resto que no entanto suscita estilhaços de sentido dessa pedra-linguagem:

Tal é o caráter próprio dessa “abertura” de que é feita a leitura: só se abre o que está melhor fechado; só é transparente o que pertence à maior opacidade. Só se admite na ligeireza de um Sim livre e feliz o que se suporta como esmagamento de um nada sem consistência. E isso não vincula a obra poética à busca de uma obscuridade que desconcertaria a compreensão cotidiana. Isso apenas estabelece, entre o livro que aí está e a obra que nunca aí está de antemão, entre o livro que é a obra dissimulada e a obra que só se pode afirmar na espessura, tornada presente, dessa dissimulaçao, uma ruptura violenta, a passagen do mundo onde tudo tem mais ou menos sentido onde existe escuridão e claridade, para um espaço onde, propriamente dito, nada possui ainda sentido, em direção ao qual, entretanto, tudo o que tem um sentido reverte como à sua origem.”(Grifo nosso).

Voltemos a um outro traço da letra que foi mencionado anteriormente, isto é, o seu caráter de mobilidade, ou seja, sua natureza oscilante. A letra, como vimos no primeiro capítulo, estabelece a conjugação entre o Simbólico e o Real. Enquanto litoral, ela articula, segundo Lacan, elementos heterogêneos. Ora, os paratextos têm como marca o aspecto relacional, como veremos a seguir, seguindo Compagnon. Os paratextos de Tutaméia, sendo fragmentários, estando fora e ao mesmo tempo dentro das Terceiras estórias, tendo, pois, uma

natureza ambígua, possibilitam a suspensão do sentido, contribuindo para tornar mais intenso o processo da ileitura. Assim, com relação aos prefácios, por exemplo, dada a sua mobilidade, qualquer conto de Tutaméia pode dialogar com eles, “indo além do grupo de estórias com que imediatamente se relacionam”, como afirma Nunes (1976, p. 208):

Registre-se, porém, que a função dos Prefácios não se esgota nesse mister de acesso às intenções das estórias e à linha característica dos personagens. Cada um dá mais do que isso; e quando dizem e sugerem vale para além do grupo de contos com que imediatamentese relacionam. (Grifo nosso).

Vamos ver, a seguir, como a concepção que Compagnon tem de paratexto está

relacionada com a idéia de mobilidade, já apontada por Benedito Nunes ao estudar os prefácios de Tutaméia. Compagnon, no entanto, traz elementos operacionais interessantes que merecem ser reexaminados, uma vez que dialogam com a noção blanchotiana de “livro por vir.”

Compagnon (1996b, p. 106) afirma que “o espaço da escrita é, antes de tudo, uma situação a investir, um lugar de trabalho disponível: a biblioteca, a ordem do discurso, a letra. A letra é o espaço mínimo, inevitável, de toda escrita; ela é também o sintoma em sua mobilidade.” Acreditamos que a concepção de Compagnon coincide com a de Blanchot quando concebe o espaço como uma categoria inconclusa, sempre em processo de vir a ser. Nessa linha, a escrita, em constante mobilidade, é sempre fugidia e o espaço, concebido como vazio, isto é, como “lugar de trabalho disponível”, está no entrelugar, entre o que se escreve e o que se reserva a escrever.

Compagnon nos ensina ainda que a “habitação da letra” tomou formas variadas ao longo da História. Na Antiguidade e na Idade Média, a relação do espaço com a escrita se dá através da tópica: “A tópica é um domínio público indiviso, uma estrutura móvel e habitável por quem quiser, orador ou ouvinte, escritor ou leitor: todos os agentes, todos os depositários da letra a compartilham.” (COMPAGNON, 1996b, p. 107).Na Idade Clássica, interrompe-se a mobilidade tipográfica da letra: “A noção espacial de referência torna-se então a topografia: o texto clássico, circundado por uma perigrafia, demarcado por ícones, é o mapeamento, o recorte, a representação fina e detalhada de um lugar ou de um terreno escolhido.” (COMPAGNON, 1996b, p. 107).

Mallarmé irá resgatar a escrita tópica, uma vez que ela estava perfeitamente sintonizada com a revolucionária concepção de livro proposta por ele. Trata-se de uma escrita

móvel, que rompe com a concepção tradicional e centrada de espaço. É o que afirma Compagnon (1996b, p. 109):

[...] na escrita topológica, a folha e a pena, a maculatura e o espirituoso histrião estão ambos em movimento, em trajetórias diferentes, em órbitas que não convergem nem divergem, mas que, por vezes, fortuitamente, se encontram ou se cruzam, “choque sucessivo sideralmente de uma conta total em formação”: é o acidente que faz carne e verbo, é o sintoma, a alternância do som e do silêncio, a densidade intermitente da letra.

Na escrita topológica, o sujeito não é o centro, como acontece com o texto topográfico, mas se afasta dela, deslocando-se entre o que está escrito e o que está para se inscrever, nesse jogo incessante de som e silêncio. O livro, nessa concepção de escrita é, como propõe Mallarmé, “a expansão total da letra”, devendo tirar dela uma mobilidade e “espaçoso, por correspondência, instituir um jogo, não se sabe, que confirme a ficção.” (COMPAGNON, 1996b, p. 108).

É nessa linha que devemos ler os prefácios de Tutaméia. Na construção da escrita rosiana, é possível perceber que, desde Sagarana, já havia, ainda que inconscientemente, uma preocupação em construir um texto de subtração. Esse modo de escrever foi acontecendo não apenas pelo empenho do escritor mineiro em fazer um apurado trabalho de linguagem, mas também pelo próprio processo simultâneo de revisão de sua obra. Sônia Van Dick Lima (2000, p. 41) afirma, como já marcamos anteriormente, que quando o autor de Sagarana fazia a revisão desse primeiro livro, já na quarta edição, ele estava revendo o romance Grande Sertão: veredas, ao mesmo tempo em que concluía a obra Corpo de baile. Essa escrita simultânea com certeza levou Rosa a construir um texto de grande mobilidade, processo este que se intensificou em Tutaméia, com a elaboração de quatro prefácios e a colocação dos contos em ordem alfabética, apontando para o processo de atomização da linguagem desse último livro.

Irene Simões afirma que os prefácios Hipotrélico, Nós, os temulentos e Sobre a escova e a dúvida foram construídos inicialmente como se fossem contos, só mais tarde vindo a ser considerados prefácios. Além disso, alguns desses textos foram escritos um pouco antes ou na mesma época de Primeiras estórias. Com relação às datas de publicação dos prefácios, Irene Simões afirma que Hipotrélico foi publicado, em O Globo, em 14.01.61, Nós, os temulentos, em 28.01.61, no mesmo jornal, e Sobre a escova e a dúvida, em 15.05.65, na Revista Pulso. Inicialmente Rosa parece ter pensado em colocar apenas o texto Aletria e hermenêutica como prefácio de Tutaméia (SIMÕES, 1988, p. 22). Como podemos perceber, o

traço oscilante desses três prefácios citados anteriormente, ora sendo enfocados como contos ora como prefácios, já aponta para a natureza cambiante e ambígua desses paratextos.

Deslocando os prefácios, o autor acaba rompendo com a linearidade textual, apostando na escrita inacabada e topológica, quebrando assim com a noção tradicional de