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2 DELETREANDO

3.6 Gaguejando sons

Famigerado, conto de Primeiras estórias, descreve a viagem de um temido e curioso sertanejo, Damásio Siqueira, que com alguns companheiros, viaja seis léguas a um arraial para perguntar a um doutor o significado da palavra que dá título à narrativa. Um político chamou o valente jagunço de “famigerado” e ele quer saber se esse vocábulo é nome feio ou de ofensa. Cria-se um clima de tensão entre o sertanejo e o personagem-narrador, que teme ser agredido pelo estranho forasteiro. Ao pronunciar a palavra “famigerado”, o jagunço vai deslizando por significantes, criando, pelo próprio desconhecimento que tem do vocábulo, chistes saborosos: “– Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmigeerado, faz-me-gerado...falmisgeraldo...famílias-gerado...?” (Famigerado, p. 11). Damásio quer um significado preciso, único, mas o doutor lhe dá novos significantes: “‘Famigerado é inóxio’, é ‘célebre’, ‘notório’, ‘notável’ [...]” (Famigerado, p.

12). Importa ressaltar que o médico opta por dar apenas o significado positivo do vocábulo, evitando possível interpretação pejorativa: “Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos [...]” (Famigerado, p. 12).

Damásio ouve apenas sons, letras desconexas que, para ele, não têm significação. Ele só se aquieta quando o médico lhe explica, em linguagem simples, que “famigerado” significa pessoa importante. Astuciosamente, o personagem-narrador esconde o significado pejorativo do vocábulo. Convém esclarecer que o significado e a sonoridade da palavra são precedidos de uma leitura que o doutor faz do corpo do sertanejo. Em vários momentos, o personagem-narrador levanta hipóteses sobre a pessoa do jagunço, como se estivesse recortando, combinando, enfim, lendo possíveis reações do valentão, como se o “soletrasse”: “eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia.” (Famigerado, p.11, grifo nosso). E ao descrever o seu temor, o personagem- narrador lança mão de outra metáfora que lembra um ideograma: “O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O.” (Famigerado, p. 90, grifo nosso). O início e o fim da frase, com a letra O, é um ideograma que conota não apenas a tensão do personagem-narrador diante do jagunço, mas também o caráter “circular” dos significados da palavra “famigerado”, que leva o jagunço a deslizar por significantes, num gaguejar humorístico. Desse modo, a viagem de Damásio ao arraial se projeta em uma outra viagem, nos interstícios da linguagem, que é o deslizar de significantes em torno do nome “famigerado.”

O conto realça a defasagem entre o escrito e o falado, o significante e o significado. E é do gaguejar do significante que nasce o humor da narrativa: “faz-me- gerado...falsmigeraldo...famílias-gerado...?” (Famigerado, p. 11). Inventando palavras, balbuciando sons, o jagunço acaba fazendo inicialmente o seu recorte com relação a um possível significado. Assim, as expressões “famílias-gerado” e “falsmigeraldo” provavelmente levaram Damásio a fazer uma associação com o significado de mal nascido, gerado falsamente, o que seria uma ofensa à mãe no seu entender: “– Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?” (Famigerado, p. 12, grifo nosso).

Os vocábulos pronunciados por Damásio – “Fasmigerado... faz-me-gerado...

falsmigerado...famílias-gerado...” (Famigerado, p.11) – vão circulando em torno do significante principal – “famigerado” – gerando o humor. Mas há também um deslizar pelo significado. O sertanejo Damásio capta apenas um possível sentido da palavra. Esta é “traduzida”, recortada e usada estrategicamente pelo doutor para salvar sua vida. Ao afirmar

que “famigerado” é pessoa importante, o médico esconde o sentido pejorativo (“de triste fama”, termo aplicado a malfeitor) que a palavra contém, sendo até o mais usual.

Como ressaltamos anteriormente, a tradução operada pelo doutor é precedida por uma “leitura” do corpo do jagunço. O narrador-personagem observa os gestos, a fisionomia, as reações de Damásio. Antes de dar o significado que lhe interessa, ele vai destecendo signos não-verbais, silenciosos, letras inscritas no corpo que conotam impaciência, raiva, tensão, curiosidade: “Com arranco calou-se [...]” “Levantou as feições” [...] “A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhes as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios.” (Famigerado, p. 11, grifo nosso).

“Antes da pergunta, o jagunço tece significantes que não têm a ver com o que ele vai perguntar”: “[...] travados assuntos, inseqüentes como dificultação.” Seu texto inicial é uma teia de aranha, um enigma: “Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. E, pá: – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é fasmigerado... faz-me-gerado...falmisgeraldo...familhas-gerado...?” (Famigerado, p. 11, grifo nosso). A pergunta que o jagunço faz está colada ao corpo: “Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase.” (Famigerado, p. 11, grifo nosso).

Cria-se no diálogo dos dois personagens um jogo entre o poder e o saber. Damásio tem o poder físico e pode eliminar a vida do médico. Este, com o saber, lê não só o verbal, mas o não-verbal. E é interessante notar que a resposta do doutor, com medo do valentão, brota também do corpo: “Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.” (Famigerado, p. 12).

Importa ainda destacar um outro elemento no conto, que é a viagem. Esse tema que está presente em vários contos rosianos, como dissemos, já foi estudado pelo crítico Benedito Nunes (1976, p. 178) que afirma:

Os espaços que se entreabrem, na obra de Guimarães Rosa, são modalidades de travessia humana, Sertão e existência fundem-se na figura da viagem, sempre recomeçada – viagem que forma, deforma e transforma e que submetendo as coisas à lei do tempo e da causalidade, tudo repõe afinal nos seus justos lugares. Não há, porém, nessa concepção da vida humana, resquícios de fatalismo.

O crítico paraense se refere à viagem no sentido geográfico e filosófico. Em Famigerado, a viagem pode ser enfocada também em outros sentidos: viagem geográfica e viagem em torno do significante. Damásio se desloca da Serra do São Ão para o Arraial e quer apenas um sentido da palavra “famigerado”. Como o personagem Soropita, de Dão-

lalalão, que também mora no Ão, ele não percebe a pluralidade semântica. No caso de Famigerado, Damásio viaja seis léguas para saber o significado de um vocábulo. O médico, ao dar o sentido que lhe convém, tranqüiliza o jagunço e salva sua pele, fazendo uma outra viagem pelo deslizar de outros significantes. Como o sertão, que “é um espaço que se abre em viagem” e não tem limites precisos, podemos acrescentar, seguindo Benedito Nunes, que o sentido é apenas um pouso provisório em viagens inesperadas. E o jagunço fica satisfeito com apenas um significado da palavra, após balbuciar significantes engraçados. O doutor, astuciosamente, entra nesse deslizar de significantes, buscando o significado que interessa ao jagunço. É pelo balbuciar que brotam novos sentidos, neologismos, criando assim não só o humor, mas também rumor no texto, trazendo conseqüentemente o “ponto de fuga do gozo”, como afirma Barthes (2004d, p. 95):

Rumorejante, confiada ao significante por um movimento inaudito, desconhecido de nossos discursos racionais, nem por isso a língua deixaria um horizonte do sentido: o sentido, indiviso, impenetrável, inominável, seria no entanto posto longe como uma miragem, fazendo do exercício vocal uma paisagem dupla, munido de um “fundo”; mas em lugar de a música dos fonemas ser o “fundo” das nossas mensagens, como acontece na nossa Poesia, o sentido seria aqui o ponto de fuga do gozo.

Essa idéia de rumor é também retomada por Deleuze (1997, p. 122), em Crítica e clínica, quando afirma: “Nós não aprendemos a falar, mas a balbuciar e não é emprestando a orelha ao barulho crescente do século [...] que nós adquirimos uma língua.” Segundo Gilles Deleuze, há duas formas de gagueira na literatura: “fazendo a gagueira”, isto é, referindo-se a ela de modo externo ou “dizendo a gagueira.” No primeiro caso, a personagem se torna gago de fala; no segundo, gago de língua. Esse último gaguejar, segundo o pensador francês, é mais eficaz já que o escritor “faz gaguejar a língua enquanto tal”. O gaguejo da língua supõe uma concepção de linguagem, não naquela visão homogênea, mas de sistema em constante desequilíbrio. Gritos, sons inarticulados, murmúrios acabam sendo formas econômicas, traços elementares que tentam captar a linguagem no seu brotar, em estado de alíngua. O grande escritor, segundo Deleuze, é aquele que se vê como um estrangeiro em sua língua. E essa gagueira criadora se dá na concepção da linguagem como devir. E nesse gaguejar lingüístico o escritor se aproxima do silêncio:

Quando a língua está assim tensionada, a linguagem sofre uma pressão que a devolve ao silêncio. O estilo – a língua estrangeira na língua – é composto por essas duas operações, ou seria preciso falar de não-estilo, como Proust, dos “elementos de

um estilo por vir que não existe ?” O estilo é a economia da língua. Face a face, ou face e costas, fazer a língua gaguejar e ao mesmo tempo levar a língua ao seu limite, ao seu fora, ao seu silêncio (DELEUZE, 1997, p. 142).