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Escrita de vestígios, texto de repetição

2 DELETREANDO

3.4 Escrita de vestígios, texto de repetição

O título enorme do conto – Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi – é marcado pela redundância, constituída principalmente de três

elementos – três, homens e boi – enlaçados sintaticamente pela preposição “de” e pelo pronome relativo “que” – e aponta-nos para o caráter oral da narrativa.

Simões (1988, p. 90) analisou esse texto ressaltando três partes do título: “Os três homens e o boi”, que leva ao diálogo com a fábula, seria a primeira. Na segunda parte, teríamos “O boi dos três homens”, que acena para a invenção da estória. Finalmente o fragmento “os três homens que inventaram um boi”, aponta para o caráter metalingüístico, na medida em que se lê uma estória que descreve três homens que inventaram uma estória. (SIMÕES, 1988, p. 90).

Há nesse título uma circularidade. O último fragmento (“os três homens que inventaram um boi”) acaba remetendo ao primeiro, que por sua vez leva ao segundo e ao terceiro. Essa circularidade sugere o inacabamento da estória que está nascendo e ao mesmo tempo o seu caráter itinerante, como se ela fosse infinita. Em outros termos, a estória do boi será recriada incessantemente pela comunidade rural viajando de boca em boca, sendo repetida e constantemente reelaborada.

O título enorme, circular, e o seu caráter de oralidade nos levam a refletir sobre o conceito de autoria. Não é um homem que conta a estória do boi, mas três. Além disso, não é um autor que se apresenta como doador da narrativa. Na verdade, conta-se. O título nos ajuda a pensar nessa morte do autor do texto de que nos fala Barthes (2004c, p. 59):

[...] para ele [Barthes se refere a Mallarmé], como para nós, é a linguagem que fala, não o autor ; escrever é, através de uma impessoalidade prévia – que não se deve em momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista –, atingir esse ponto em que só a linguagem age, “performa”, e não “eu”: toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, com se verá, devolver ao leitor o seu lugar).

A primeira frase do conto é significativa: “PONHA-SE que estivessem, à barra do campo, de tarde, para descanso.” (Os três homens e o boi..., p. 126). A estória nasce de um vazio, de uma suposição. A forma verbal “PONHA-SE”, em caixa alta, é ambígua. Podemos lê-la como sujeito indeterminado marcado pela forma verbal em terceira pessoa mais o pronome “se”: “ponha-se”, isto é, “ponha-se na conta do inventado”, ou mesmo uma forma deverbal do verbo supor, “suponha-se que [...]”.

O texto já nasce indeterminado. Os personagens e autores da estória do boi, os três homens, não são os donos dela, o mesmo acontecendo com o criador da narrativa, que não é mais individual, mas plural. A estória, ao mesmo tempo em que se mostra, se ausenta. A expressão “Que mais?” acena para a incompletude do texto. Em outros termos, é como se o

narrador dissesse para o leitor: o que mais se vai acrescentar à estória? Já a frase “suponha-se que” conota indeterminação de autoria, antecipando o anonimato da narrativa oral, que será recriada pela coletividade. A expressão “Que mais?” sugere ainda um impasse diante da narrativa que está nascendo. A estória que brota da boca dos três homens tem assim algo de artesanal, de espontâneo, de incompleto. Trata-se de uma estória nascente, que tem um caráter errante, nômade como a própria vida dos vaqueiros, em suma, como o próprio texto que circulará sem rumo pelo sertão, sempre repetido e ao mesmo tempo novo.

O conto nasce de modo lúdico: as partes da narrativa vão sendo emendadas pelos três vaqueiros até que o objeto da estória, o boi, brota do silêncio, toma corpo e se torna realidade: “Assim o boi se compôs, anti’olhava-os” (Os três homens e o boi..., p. 126). A imagem do ovo é sugestiva, no início da estória: “Então que, um quebrou o ovo do silêncio: - ‘Boi...’ – certo por ordem da hora citava caso de sua infância, do mundo das inventações; mas o mote se encorpou, raro pela subiteza.” (Os três homens e o boi..., p. 126). Essa imagem do ovo associa-se não apenas ao ato de gerar, mas também ao caráter interminável da escrita. Quebrar o ovo, ao mesmo tempo que se relaciona à morte, sugere também nascimento. E a narrativa irá tomando consistência nessa relação incessante de palavra e silêncio estendendo- se na tensão da realidade com a ficção e vice-versa. Como podemos notar, o processo de construção neste conto é semelhante ao da novela O recado do morro. Estamos diante de uma gênese de estória, mas nesse caso, o aspecto oral dela é mais enfatizado do que o da novela.. Em Os três homens [...], o nascer da estória começa pela palavra “Boi” e não por um recado, como acontece com a narrativa de Corpo de baile.

Inicialmente o texto que surge é de forma categórica: – “Boi”. Pouco depois, o animal é caracterizado com dois adjetivos “sumido [...]”, “o maior”. Em seguida, vem a fala de Nhoé, que estava escondido em ramos de sacutiaba: – “como que?” – conotando dúvida diante da existência do simulacro. O boi começa a tomar vaga consistência através de adjetivos. A caracterização do animal continua imprecisa, principalmente quando ele vai sendo descrito na instabilidade de duas classes gramaticais, adjetivo e substantivo: “– ...Um pardo!”, “–... porcelano”, “araçá”, “corujo”. Pouco depois, ouve-se o riso dos vaqueiros como se selassem um pacto – o boi é inventado –. Juntamente com o riso, a expressão “pressa dos lagartos”, que vem logo depois, sugere não só o metafórico rastejar da estória nascente como também antecipa a rapidez da propagação da narrativa que, viajando de boca em boca, receberá novas peles, isto é, novas recriações: “Dispararam a rir, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos.”(Os três homens e o boi..., p. 126, grifo nosso).

A narrativa se construirá nessa tensão entre o boi inventado e o boi que toma ares de realidade. E o personagem que representa essa dúvida é Nhoé: “De tudo Nhoé delongava opinião, pontual no receio. Ainda bem que o escrúpulo da gente regra as quentes falsidades.” (Os três homens e o boi..., p. 127).

O nome do personagem – Nhoé – nos conduz ao texto bíblico, a estória de Noé que, seguindo o conselho de Deus, irado com a humanidade, fez uma arca e colocou um casal de todas as espécies, o que já remete para a idéia de recomeço.

A relação entre arca e casal de animais, no mito bíblico, dialoga com a situação de Nhoé. No conto, Nhoé presenciou uma infidelidade: Jelázio está gostando da mulher de Jerevo. Nhoé quer se casar novamente, mas tem medo de contrair novas núpcias. Após o fracasso do primeiro casamento, ele tem receio de recomeçar nova união, ao presenciar um caso de traição.

A infidelidade da mulher de Jerevo assusta Nhoé. Ela tem algo de parecido, enquanto traidora, com a estória do boi inventado, que nasce e circulará pelo sertão, estória traída, deformada pelo povo. O boi da estória é fingido, simulacro, traição de um real: “Mas o Nhoé se presenciava, certificativo homem, severossimilhanças; até tristonho; porque também tencionava se recasar, e d’agora duvidava, em vista do que com casados às vezes se dá, dissabores.” (Os três homens e o boi..., p. 126, grifos nossos). A dúvida de Nhoé é magistralmente espelhada na palavra portemanteau “severossimilhanças”, possibilitando a suspensão semântica: a traição da mulher é algo sério, severo, mas a estória do boi é uma invenção, um caso verossímil.

O diálogo intertextual com o mito bíblico do dilúvio nos leva à idéia do recomeço. Noé simboliza o nascer de uma nova humanidade, o que remete ao renascer da estória do boi. Apesar das traições que sofrerá a estória contada pelos três homens, a narrativa oral sobreviverá e continuará a vagar pelo sertão. No final do conto, Nhoé chega a uma fazenda e fica surpreso quando ouve vaqueiros contando a estória de um boi: “O que nascido de chifres dourados ou transparentes, redondo o berro, a cor de cavalo. Ninguém podia com ele – o Boi Mongoavo. Só três propostos vaqueiros o tinham em fim sumetido [...]” (Os três homens e o boi..., p. 129).

A estória criada pelos vaqueiros renasceu, mas já é outra, isto é, já foi recriada, traída pela coletividade rural, recebendo acréscimos com a estória do Boi Mongoavo. A sua autoria caiu no anonimato. Estamos diante de um texto que nasce “do ovo do silêncio”, como aponta o narrador no início da estória, e ao mesmo tempo se dissolve no processo de recriação

coletiva. Dilúvio e renascimento. Escrita circular, traidora, que nasce, desaparece e se repete de modo interminável.

Essa narrativa rosiana é uma escrita em processo de desaparecimento, no sentido que lhe atribui Blanchot (1987, p. 16):

Cumpre-nos recomeçar a questionar. Dissemos: o escritor pertence à obra, mas o que lhe pertence, o que ele termina por si só, é somente um livro. “Por si só” tem por resposta a restrição do “somente”. O escritor nunca está diante da obra e onde existe obra ele não o sabe ou, mais precisamente, a sua própria ignorância é ignorada e unicamente dada na impossibilidade de ler, experiência ambígua que o repõe em atividade.

Neste conto, encontramos um ótimo exemplo do que Blanchot chama de “livro por vir”, escrita sem autor, sendo constantemente modificada pelo leitor a cada nova leitura, escrita nômade, migrante, metamorfoseada nas diversas viagens de vaqueiros pelo sertão, passando de boca em boca, texto à deriva, incompleto. E nesse sentido, tem razão Irene Simões (1988, p. 177) quando afirma que o conjunto das quarentas narrativas de Tutaméia, embora tenham sido escritas em épocas diferentes, lembra uma caminhada de vaqueiros preenchendo o tempo da viagem contando estórias, tendo o autor como elemento de ligação entre os textos.

Como o Noé bíblico, Nhoé, o personagem de Rosa, encontra apenas vestígios do boi, traços, ruínas de uma narrativa em viagem, sem autor, mas que será reatualizada a cada leitura por outras pessoas. Além disso, convém salientar que Nhoé não reconhece a estória que ele e seus colegas começaram a contar. Há uma estória ausente, criada pelo povo, texto que está em processo sem fim de construção, história que terá acréscimos e faltas, não sendo mais dominada por seus criadores.

A escrita de Brejeirinha, de Partida do audaz navegante, tem como personagem um viajante, o “Aldaz navegante”. Escrita e viagem, como já foi ressaltado, são termos que se destacam em toda a obra rosiana. Acreditamos que o motivo “viagem”, em Tutaméia, pode ser entendido não apenas como possibilidade de ensinar e de aprender, como aponta Vera Novis(1989, p. 32) em seu estudo, mas como deslocamento de significantes. Escrever e viajar conotam provisoriedade, intervalo, possibilidade de criação de novos signos. Nessa viagem, que é o texto, tudo pode acontecer e o sentido será sempre precário, não-todo, eivado de pontos cegos que se por um lado podem ser costurados, por outro também se descosturam. A viagem supõe, pois, o encontro de elementos heterogêneos. E essa união da heterogeneidade tem uma sintonia com a noção de letra.

Como mostramos no primeiro capítulo, Lacan, em Lituraterra, ao atravessar de avião a Sibéria, mostra a diferença entre fronteira e litoral. A fronteira liga elementos da mesma natureza, o que não acontece com o litoral. E é no litoral que se inscreve a letra, como afirma o psicanalista francês: “Não é a letra [...] litoral, mais propriamente, ou seja, figurando que um campo inteiro serve de fronteira para o outro, por serem eles estrangeiros, a ponto de não serem recíprocos?” (LACAN, 2003, p. 18). O litoral une elementos heterogêneos. A letra é o encontro de territórios variados. Nesse sentido, a literatura rosiana está muito mais para o litoral do que para a fronteira. Em uma de suas cartas ao tradutor alemão, o escritor mineiro frisa a importância da poesia que descobre novos territórios do sentir e do pensar:

Duas coisas convém ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar comum deve ter proibida a entrada, estamos é descobrindo novos territórios do sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem “sozinhas”. Cada uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas permitem-se todas as variantes e variedades. (Correspondência com seu tradutor alemão..., p. 314).

A Lituraterra lacaniana, enquanto possibilidade de encontro do diverso, está presente na obra rosiana, principalmente se levarmos em conta o gosto que o escritor mineiro tem pelo paradoxo, pelo ininteligível. Nesse sentido, como vimos anteriormente, o tema da viagem pode tomar uma outra abordagem: viagem através das palavras, possibilidade de encontros e sentidos inusitados, paradoxais. Assim, é perfeitamente possível ler o conto Antiperipléia, primeira narrativa de Tutaméia, como antiviagem.

Interessa-nos aqui enfocar a temática do viajar, em Rosa, não no sentido da aprendizagem, mas a partir da idéia da busca do poético no ato de ler e de escrever, percurso rumo ao indecidível do sentido. O Grivo, de Cara-de-bronze, como vimos no segundo capítulo, quando volta de viagem, traz as palavras em estado de poesia, sempre fugidias, reticentes, faltosas. Para o guia de cego de Antiperipléia, “tudo é viagem de volta” (Antiperipléia, p. 13).