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Nenhum, nenhuma: texto de renda, escrita da perda

2 DELETREANDO

3.9 Nenhum, nenhuma: texto de renda, escrita da perda

Salientamos, no início deste capítulo, que o denominador comum entre os textos analisados se baseiam na viagem e na antiviagem, no processo de construção e desconstrução, no tecer e no destecer, evidenciando assim ora o excesso ora a subtração do sentido. Iremos analisar, a seguir, dois contos, Nenhum, nenhuma, de Primeiras estórias, e Curtamão, de Tutaméia. Em ambos demonstraremos como o processo de construção e desconstrução se articula através da memória.

Em Nenhum, nenhuma, Guimarães Rosa vai mais fundo na sua experiência com a escrita. Aqui, o “murmúrio da língua”, como afirma Deleuze, chega a um alto grau a ponto de não haver um fio condutor no enredo. Bolle (1973, p. 103), em Fórmula e fábula, comentando essa narrativa e tentando aplicar a ela a gramática de Vladimir Propp, afirma: “Uma pergunta “herética” se impõe de imediato: como poria Todorov em fórmula um texto assim?” Não é sem razão que ele exclui, de antemão, a análise do nível verbal de um texto, preferindo limitar-se a descrever a intriga. Bolle, partindo de modelos proppianos, faz uma leitura apenas voltada para o nível sintagmático, ficando preso ao significado e reconhecendo, neste conto, as limitações da metodologia proposta pelo autor de A morfologia do conto. Estamos diante do que Barthes chama de “texto do gozo”, que desconforta e que não se encaixa em matrizes preestabelecidas, que não admite resumo e só pode ser analisado na sua própria tessitura. Em Nenhum, nenhuma, o personagem-narrador, um menino, tenta se lembrar de fatos passados, mas a memória traz à consciência apenas fragmentos de lembranças. No jogo da memória, a infância vem de modo embaçado e o narrador-personagem se lembra apenas de que viveu em companhia de uma moça, um moço e um casal de velhos. O rapaz queria se casar com a moça. Ela pede para que ele espere um tempo, pois tem dúvidas se esse amor é verdadeiro. O moço se separa da moça e o narrador, ao voltar para casa, vê os pais como seres estranhos.

Leyla Perrone-Moisés, em leitura psicanalítica, analisa a narrativa tomando como ponto de partida uma aproximação entre a letra e o desejo. Para a pesquisadora, haveria no texto a tematização do complexo de Édipo. O menino-narrador tenta se lembrar da moça e do rapaz. Eles se amavam. O garoto odeia o namorado e gosta da moça. Ao voltar para casa, o personagem-narrador estranha os pais. Para o menino, segundo a pesquisadora citada, a união do pai e da mãe é um ato proibido, pois ele viu a moça recusando a proposta de casamento do

rapaz: “Ao desconhecer seus pais, ele (o menino) se desconhece a si mesmo e se auto-anula, tornando-se nenhum.” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 121).

A estudiosa paulista afirma que, além dessa relação edipiana, a narrativa mostra

também dois temas secundários: a velhice e a morte. A partir do nome da velhinha –Nenha – a autora do ensaio faz um inventário de palavras do conto que estão ligadas às sílabas do vocábulo “velhinha”. Desse modo, vocábulos como “velha”, “vida”, “dissolve” e vários outros vão se disseminando pela narrativa, espelhando a sílaba “Vê” do vocábulo “velhinha”. Várias palavras, segundo a ensaísta, espelhariam os fonemas lh e nh desse mesmo vocábulo tais como mulher, velha, ilha, Nenha, babinha, nenhum, além de outras.

Como vimos, no ensaio, Leyla Perrone faz uma leitura explorando a disseminação de sílabas e vocábulos pela narrativa, realçando o sentimento de auto-anulação do personagem-narrador, isto é, a sensação de ser nenhum diante dos pais.

No nosso caso, pretendemos tecer algumas considerações sobre a redução da escrita, relacionar o processo de rememoração com a falta, explorando o aspecto tipográfico da letra. Tal processo não foi explorado pela pesquisadora. Nos retalhos de recordações, os significantes se mostram embaçados diante das recordações do protagonista e vão deslizando a tal ponto que restam apenas objetos nessas lembranças:

Tênue, tênue, tem de insistir-se o esforço para algo remembrar, da chuva que

caía, da planta que crescia, retrocedidamente, por espaço, os castiçais, os baús, arcas, canastras, na tenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos,

como se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao se desdobrar, os cheiros nunca mais respirados, suspensas florestas, o porta-retrato de cristal, floresta e olhos, ilhas que se brancas, as vozes das pessoas, extrair e reter, revolver em mim, trazer a foco as altas camas de torneado, um catre com cabeceiras douradas; talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram: o comprido espeto

de ferro, na mão da preta, o batedor de chocolate, de jacarandá, na prateleira com alguidares, pichorras, canecos de estanho. O menino, assustando-se, correra a refugiar-se na cozinha, escura e imensa, onde mulheres de grossos pés e pernas riam e falavam.”(Nenhum, nenhuma, p. 52, grifo em negrito do autor).

O personagem-narrador, ao tentar recordar o impossível de ser recordado, já que a memória deforma e trai o passado, vai escavando suas vivências transformando as palavras em coisas: “Talvez as coisas mais ajudando, as coisas, que mais perduram” (Nenhum, nenhuma, p 52, p. grifo do autor).

A busca incessante das lembranças só se dá pela linguagem, que é precária. Assim, o personagem-narrador se vê na obrigação de apresentar os objetos na sua concretude,

numa tentativa de colar a palavra à coisa recordada. Na dificuldade das lembranças, a linguagem não consegue representar, na sua totalidade, os objetos, o que leva o protagonista a apresentá-los em um processo sintático e sintético, muito freqüente nas lembranças: a coordenação. Ora, esse processo de coordenação esfacela as recordações, que vêm como cacos que tentam ser colados pelo personagem-narrador e pelo leitor, lidando com a falência dos signos nessa busca incessante e impossível das lembranças, que se lhe apresentam como lacunas, precariamente preenchidas pelo elemento olfativo e visual. Interessante notar que o esfacelamento das memórias se concretiza no próprio esfacelamento sintático, como se pode constatar na expressão “ilhas que se brancas”.

O ato de recordar é uma tentativa sempre vã de encontrar o que se perdeu e nesse processo da busca da memória, enquanto falta, é que se dá a escrita econômica e depurada do texto, texto da perda, do apagamento do sujeito, tentativa de construir as lembranças através de estilhaços. Nessa busca, não só o personagem-narrador se sente como um nenhum. O processo de escrever acaba sendo uma “escrita nenhuma”, isto é, um texto de marcas, traços, rabiscos do passado que se insinuam e se apagam, texto que se constrói de faltas e furos. Nenhum, nenhuma, nenhuma narrativa, empreendimento vão de nomear o silêncio. Nesse esforço de se lembrar, e ao mesmo tempo de se esquecer, é que vai surgindo o texto da memória, letras em negrito no branco da página, texto que vai bordejando o Real, contornando um vazio, isto é, as experiências afetivas do garoto que só se dão a conhecer pela precária escrita, único instrumento de nomeação, fugaz, mas necessário. E Rosa, na correspondência com o tradutor alemão, confirma essa idéia de memória como lacuna, esforço de lembrança:

No conto “NENHUM,NENHUMA”, é necessário sublinhar, ou pôr em grifo, as partes que sublinhei com lápis verde. Isto é indispensável, importantíssimo. Aquelas passagens, entremeadas, correspondem a outro plano: representam o esforço do Narrador, em solilóquio, tentando recapturar a lembrança do que se passou em sua infância. Tá?” (Correspondência com seu tradutor alemão..., p. 304, grifos do autor).

A memória se apresenta como um processo embaçado e as palavras deslizam, como se tecessem e destecessem, como se fossem um pedaço de renda, escrita da diferença, entre o que se lembra e o que se esquece: “Os castiçais, os baús, arcas, canastras, na tenebrosidade, a gris pantalha, o oratório, registros de santos, como se um pedaço de renda antiga, que se desfaz ao se desdobrar” [...] (Nenhum, nenhuma, p. 52, grifo em negrito do autor).

As frases ou expressões em negrito conotam escuridão, dificuldade do protagonista de se lembrar. Já o recordar mais nítido se manifesta na tipografia comum. Em “Nenhum, nenhuma” encontramos uma escrita que lembra o negativo de um filme, texto do silêncio que, pelo seu embaçamento, esconde e ao mesmo tempo seduz, texto em forma de renda, cheio de furos e rasgões, como a memória, bordejados pela linha da palavra. Parafraseando o texto de Lúcia Castello Branco (1989, p. 145), quando estuda a escrita feminina, podemos dizer que esta escrita de Rosa é paradoxalmente constituída de um enredo que não tem enredo, de “palavras que se proliferam e se esvaziam de sentido, como num progressivo trabalho de extenuação” chegando aos limites da linguagem.

Nessa narrativa de alto teor de espessamento, o narrador propõe um elo com o leitor e ao mesmo tempo um desafio a ele. Num primeiro caso, há uma aliança entre leitor e narrador no mesmo barco errante de uma escrita infinita, cujo objetivo é paradoxal: encontrar- se para se perder na busca da memória. No segundo caso, o narrador, ludicamente, lança um desafio ao leitor na medida em que apresenta um texto desconfortável, embaçado, convidando-o a criar precárias significações. O objetivo do personagem-narrador, como salientamos, é paradoxal: contar o que não se conta. Esse texto rosiano nasce de uma tentativa de contornar o furo, o impossível do Real. Trata-se de uma narrativa que, paradoxalmente, se tece no destecer. Como diz Blanchot (1997, p. 312), “a linguagem só começa no vazio”. Nesse sentido, o título do conto – Nenhum, nenhuma – nos remete ao nada do dizer. É ainda Blanchot (1997, p. 312) quem nos auxilia: “No ponto de partida, eu não falo para dizer algo: é um nada que pede para falar, nada fala, nada encontra seu ser na palavra, e o ser da palavra não é nada.”

Nenhum, nenhuma, escrita do silêncio, cravada na letra, fotografia em negativo construída em um jogo de sombra e luz, criado pelo escurecer e pelo clarear tipográfico do texto na dança da memória.

Podemos dizer que neste conto e na estória, a ser lida no último capítulo, “O espelho”, de Primeiras estórias, Rosa dá alguns passos numa escrita que explora a letra. O autor, através de uma “escrita nenhuma”, constrói rabiscos, esboços de uma estória sem estória, produzindo um texto do desaparecimento, como afirma Blanchot (1997, p. 297): “A obra desaparece, mas o fato de desaparecer se mantém, aparece como essencial, como o movimento que permite à obra realizar-se [...] realizar-se desaparecendo.”