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Desenredo: construção e desconstrução

2 DELETREANDO

3.7 Desenredo: construção e desconstrução

Enquanto em Partida do audaz navegante e em Os três homens e o boi..., há uma escrita em ponto de letra que nasce e entra em deriva, em Desenredo, estória de Tutaméia e em A história do homem do pinguelo, de Estas estórias, encontramos um texto do costurar e do descosturar plasmado na tensão entre o oral e o escrito. Em Desenredo, o texto nasce de uma fala, de uma estória oral. Isso acontece também em outros contos de Tutaméia. Há elementos mínimos do texto, em nível ortográfico e fonemático, que muitas vezes refletem, no plano do macrotexto, o descosturar da narrativa, como veremos posteriormente.

Assim, em Desenredo e em A história do homem do pinguelo, o processo de construção e desconstrução se dá não apenas no plano do macro, mas do microtexto. A narrativa vai sendo tecida e destecida aos olhos do leitor através de dois recursos. O primeiro se instala pela posição do narrador que conta oralmente para outro narrador que ouve e escreve o texto, destinado aos leitores e ouvintes. Esse segundo narrador é também espelho do leitor. O segundo recurso se dá pela construção do microtexto, que irá refletir esse jogo do tecer e destecer no plano ortográfico, fonemático e morfossintático. Há no conto um narrador- ouvinte, registrando em silêncio a fala de outro narrador. Esse narrador-ouvinte, como já foi afirmado, é como se fosse uma espécie de copista, presente em outros contos, como em Antiperipléia.

Através desse recurso do narrador-copista, que se põe como ouvinte de um outro narrador, Guimarães Rosa cria uma original forma para registrar o texto oral, anotado por esse segundo narrador, que comenta o que está sendo narrado, interrompe, analisa, descreve os gestos, a linguagem do corpo. Em A estória do homem do pinguelo é esse narrador quem destece o texto primeiro que nasce e ao mesmo tempo desaparece. Já em Desenredo é o próprio personagem, no caso Jó Joaquim, o responsável pela desconstrução da narrativa. A escrita de Desenredo é tecida e destecida num palco, a página em branco. Os personagens se traem e se perdoam num jogo incessante em que realidade e irrealidade se misturam. Nesse sentido é que podemos entender duas comparações que perpassam pela narrativa: o teatro e a navegação.

Com relação ao teatro, podemos afirmar que, inicialmente, Jó Joaquim é apresentado como personagem de uma peça. Ele gosta de uma mulher casada. Ao perceber que a mulher tem um terceiro amante, ele se nega como personagem: “Proibia-se de ser pseudo-personagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.” (Desenredo, p. 38, grifo nosso).

Após as traições da esposa e a sua fuga, Jó Joaquim começa a construir novo e ilógico enredo, comunicando ao povo da vila que não foi traído. De pseudopersonagem torna- se novamente personagem, negando tudo o que aconteceu, trazendo tudo às claras “como água suja”, como afirma ironicamente o narrador: “Trouxe à boca de cena do mundo, de caso raro, o que fora tão claro como água suja” (Desenredo, p. 40, grifo nosso). A linguagem do conto vai refletindo, através de paradoxos e deslocamentos de fonemas, a situação contraditória dos personagens. No caso de Jó Joaquim, ele acaba se tornando, paradoxalmente, ao negar a traição, uma espécie de narrador, uma vez que cria uma nova realidade ficcional: “Jó Joaquim, genial, operava o passado-plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta, mais certa?” (Desenredo, p. 40, grifo nosso). Desse modo, Guimarães Rosa desmonta o palco da escrita, através de um fazer e desfazer do texto, e a linguagem, no nível do microtexto, acompanha esse percurso. Enquanto personagem traidora, a amante de Jó Joaquim (que remete ao Jó bíblico, sofredor sereno) se coloca como atriz desse palco, ocupando variados papéis (Livíria, Rivília, Irlívia, Vilíria), sendo a mesma e outra, fiel e infiel, leve e leviana na sua sedução: “Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo” (Desenredo, p. 38, grifo nosso).

O autor vai explorando, na dança das letras, as oscilações do enredo, o ir e vir (Irlívia, Livíria) da personagem. Nesse sentido o teatro está estreitamente ligado à navegação. O amor da esposa de Jó Joaquim não é seguro. É frágil como as embarcações sertanejas. Fluida como a água, a mulher de Jó Joaquim não se deixa apreender nas malhas de um nome. Enquanto letra-lettre, carta em constante deslocamento, é frágil como o barco. Daí o provérbio invertido “A bonança nada tem a ver com a tempestade”. Esse diálogo com o ato de navegar é várias vezes colocado no texto para mostrar a fragilidade e ao mesmo tempo a força do amor: “Voando o mais em ímpeto de nau movida a vela e vento”, “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”, “Voltou com dengos e fofos de bandeira ao vento”, “Deu- se o desmastreio”. Interessante notar que a relação do navegar ao contrário está presente também em Antiperipléia.

Navegar ao contrário se aproxima do ato de escrever, enquanto gesto que agrupa situações opostas. O texto, carregado de paradoxos, possibilita o encontro de elementos

diversos. O mesmo acontece com o representar e o se esconder nos bastidores. É esse movimento constante de ir e vir dos personagens, de afirmar e negar ao mesmo tempo, que se constrói essa escrita-litoral de Guimarães Rosa.

A linguagem, espelhando esse tecer e destecer, vai-se tornando paradoxal, através de expressões e provérbios ilógicos. E o autor explora camadas do microtexto que muitas vezes escapam ao leitor desatento. No décimo parágrafo do conto, há apenas uma conjunção adversativa – “Mas.” – seguida de ponto, conotando o destecer do texto, através do contraste. Um pouco à frente, no décimo quarto parágrafo, encontra-se uma única palavra, dessa vez um advérbio, sonoramente semelhante à conjunção adversativa citada anteriormente: “Mais”, insinuando metalingüisticamente para o leitor que a traição da esposa de Jó Joaquim continuará. Em outros termos, “a estória não acabou”, “ouça o resto”. Desse modo, o amor sofrido de Jó Joaquim se apresenta como uma viagem perigosa, que pode ser sintetizada no tradicional provérbio “embarcar em canoa furada”, provérbio este latente no texto de Rosa através de um sutilíssimo recurso ortográfico: a troca da letra l pela letra o, na palavra “frágil”: “Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto”. (“Desenredo”, p. 39, grifo nosso).

Esse ir e vir da esposa de Jó Joaquim gera, evidentemente, a censura dos moradores da vila, magistralmente insinuada pelas reticências: “Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro ...” (Desenredo, p. 38, grifo nosso). No final da narrativa, com a volta da esposa para os braços do marido, dissolve-se a censura dos moradores, com a ausência das reticências: “Sumiram-se os pontos de reticências, o tempo secou o assunto.” (Desenredo, p. 40, grifo nosso). Importa ainda ressaltar que, sintaticamente, a frase “apanhara o marido a mulher” tem duplo sentido, reforçando dessa forma a indecisão semântica do texto.

Desenredo tem um movimento intenso em seu processo de construção e é essa movimentação que vai criar uma demanda a interpretar, desaguando no indecidível. Os personagens deslizam num constante ir e vir. Jó Joaquim é personagem mas também pseudopersonagem, como afirma o próprio narrador. Além disso, ao afirmar que não foi traído e impondo essa ficção aos moradores, torna-se também narrador de um “ilógico” texto, pois destece a seu modo a narrativa que até então estava sendo construída.O narrador também se desdobra. Há um narrador que conta, mas a estória será contada por outra voz narrativa, o narrador-copista, que ouve e vai transmiti-la aos ouvintes.

Essa outra voz que narra é ainda o narrador-ouvinte, aproximando-se do leitor. O mesmo acontece com os provérbios que vão pontuando a estória. Se por um lado eles trazem

algo de cômico, por outro, aumentam a indecisão semântica, principalmente quando se trata dos provérbios invertidos.

Essa constante mutabilidade da personagem Irlívia, com suas máscaras que se tecem na variedade de seus nomes (Irlívia, Rivília, Livíria, Vilíria) tem uma relação com a feminilidade. É nesse sentido que podemos afirmar que essa personagem é não-toda. Miele (2002, p. 65), demonstra que “a feminilidade não é prerrogativa de um gênero, mas antes o correlato necessário da própria natureza do desejo, que para existir, pressupõe uma falta de objeto.”

Voltando ao conto de Guimarães Rosa, pode-se dizer que, no início da estória, Jó Joaquim está numa posição fálica, de ilusória completude. No momento em que ele entra a desenredar a estória, negando a traição da esposa, rompe com a lógica aristotélica. É essa posição ilogica que vai gerar humor na estória. Enquanto não-toda, a esposa de Jó Joaquim escapa à simbolização. Daí a constante variedade de seus nomes, insinuando a impossibilidade de apreensão da mulher pela visão fálica: “Com elas quem pode, porém?” Foi Adão dormir e Eva nascer (Desenredo, p. 38).Estando numa posição de feminilidade, Irlívia está fora do sentido, escapando à nomeação. E Jó Joaquim só poderá viver com ela se for capaz de entrar nesse mesmo jogo de contradições e paradoxos, colocando-se nessa mesma indecisão.

Guimarães Rosa insiste várias vezes, na correspondência com seus tradutores, em que suas narrativas têm muito de poesia, na medida em que ele quer buscar, através da linguagem, o enigma, o místério, o impreciso. Ora, como afirma Miele (2002, p. 68), “a feminilidade partilha e anima o projeto do poeta [...] quando, ao desafiar o limite da linguagem, evoca por meio dela o que não pode ser dito.”