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Dão-lalalão (O Devente) e o badalar do passado

2 DELETREANDO

2.2 Corpo de baile: em busca do poético

2.2.3 Dão-lalalão (O Devente) e o badalar do passado

Se em Cara-de-Bronze há um deletreamento do patrão, bronze metafórico que vai sendo cunhado por seus vaqueiros e que culmina na busca da poesia pelo Grivo, em Dão- lalalão, esse mesmo bronze é retomado através da memória. Soropita, o protagonista, vai badalar o bronze, isto é, o sino das lembranças, o passado de sua esposa, ex-prostituta.

Dão-lalalão começa narrando o regresso do temido valentão Soropita, que vivia com a ex-prostituta Doralda. Eles moravam no arraial do Ão. O protagonista volta para casa pensando na mulher que o espera, nos carinhos que ela lhe oferece. De repente ele se encontra

com um antigo amigo, Dalberto, convidando-o para jantar e dormir em sua casa. Se antes ele vivia numa espécie de paraíso, de súbito surge o seu inferno: as suspeitas de que o amigo de Montes Claros poderia ter sido cliente da esposa. Soropita começa a ficar enciumado e a observar o comportamento de Doralda e do visitante. Pensa em matar Dalberto. As suspeitas acabam se dissolvendo e, no outro dia, o amigo vai embora. Pouco depois da saída de Dalberto, surge a cavalo um preto de nome Iládio, com mais dois companheiros. Iládio dá um sorriso e resmunga para os colegas. Soropita desconfia de que também o negro teria sido cliente de Doralda. Quando o grupo já ia longe, o protagonista sela o cavalo e vai tirar satisfação com Iladio, agredindo-o verbalmente. O negro se humilha, rastejando, e diz que é inocente. Soropita volta para casa pensando em ouvir a novela do rádio e recontá-la aos vizinhos.

Um resumo como este empobrece a riqueza da narrativa. Neste texto, o escritor mineiro explora magistralmente a angústia de Soropita. O título do conto – Dão-lalalão – é sugestivo e surpreende o leitor comum ao perceber que um valentão, Soropita, seja o protagonista de uma narrativa que tem como título uma canção do folclore infantil português. Cleusa Passos, comentando essa canção, estabelece uma relação intertextual com um poema de Manuel Bandeira (PASSOS, 1995b, p. 103).7 A canção portuguesa é a seguinte: “Bão ba-la-lão/ Senhor Capitão/ em terra de mouro/ morreu meu irmão/cozido e assado/no seu caldeirão/eu vi uma velha/com um tacho na mão/ eu dei-lhe uma queda/ela, puf, no chão.” Sílvio Romero afirma que essa cantiga está vinculada a um jogo infantil português denominado “brincar o sino.” (PASSOS, 1995b, p. 103). Esse Bão-balalão” seria uma onomatopéia do bater do sino.

Guimarães Rosa percebeu (e confessa na correspondência com o tradutor italiano) a relação do título com a canção infantil. Vale notar que, na primeira página da narrativa, o título é Lão-dalalão, mas entre parêntese está Dão-lalalão. Essas oscilações do título, bem como a sonoridade desse “Dão-lalalão”, nos levaram a fazer uma leitura mostrando como Guimarães Rosa explora as fantasias desse protagonista obsessivo. Não temos aqui a intenção de clinicar o protagonista. Pretendemos apenas mostrar como o escritor mineiro faz uma encenação ficcional da obsessão através do som ão e das letras d e l. As onomatopéias do título remetem ao badalar do sino, dialogando com o texto infantil, que pede para “tirar o peso do coração”. Também podemos afirmar que Soropita tem um peso: a sua dúvida, o seu

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O poema de Bandeira se chama Rondó do capitão e merece ser aqui transcrto: Bão balalão/Senhor Capitão/Tirai este

peso/Do meu coração. Não é de tristeza,/ Não é de aflição:/ É só de esperança,/Senhor capitão! A leve esperança, / - A aérea esperança.../Aérea, pois não! / - Peso mais pesado/Não existe não !./Ah, livrai-me dele,/Senhor capitão !

inferno, isto é, os possíveis amantes de Doralda no passado, obsessões que se refletem nas obsessões intencionalmente trocadas no título: Lão-dalalão e Dão-lalalão.

Doralda, a esposa, é um constante enigma. Ela representa o espessamento, a impossibilidade de Soropita descobrir quais foram os homens que foram seus clientes, já que era prostituta. Desse modo, é possível associá-la metaforicamente ao bronze, material duro, resistente de que são feitos os sinos. E Guimarãse Rosa, na correspondência com o tradutor italiano desse conto, faz referência à dureza do bronze. O tradutor não entendeu a interjeição “Bronzes!” e o escritor mineiro lhe dá uma resposta sugestiva. O tradutor pergunta: “‘Bronzes!” (gostaria de ter um sinônimo, para encontrar melhor uma exclamação italiana correspondente).” E Rosa responde:

– Bronzes!: porque o metal (ou liga) é duro (nas antigas estórias para crianças, e na tradição do sertão, o bronze é considerado como a coisa mais dura, forte, resistente, muito mais que o ferro) e sonoro, barulhento. Além disso, e talvez principalmente, porque a palavra, em si, é fortíssima: com o grupo consonantal BR e o ON nasal e mugidor [...]. (Correspondência com seu tradutor italiano..., p. 79, grifos nossos).

É importante ressaltar que Rosa faz referência à canção infantil, à dureza do metal e à sua sonoridade. Metaforicamente, Doralda, semelhante a Cara-de Bronze, é esse metal, bronze duro, que não dá um sentido. Ela, que no texto é descrita como uma menina, “brinca o sino” com o protagonista, que metaforicamente badala sua obsessão:

Soropita recostado, repousado, como num capim de campo: “Tu é bela!... O vôo e o arrulho dos olhos. Os cabelos, cabriol. A como as boiadas fogem no chapadão, nas chapadas... A boca – traço que tem a cor como as flores. Os dentes, brancura dos carneirinhos. Donde a romã das faces. O pescoço, no colar, para se querer com sinos e altos, de se variar de ver. Os codes, da voz, quando ela falava, o cuspe. Doralda – deixava seu perfume se fazer. Aí, ele perguntou: “– Tu conheceu os homens, mesmo muitos? (Dão-lalalão..., p. 102, grifo nosso).

A onomatopéia do badalar do sino – Dão-lalalão – é sugestiva. Nela estão as consoantes D e L além do ditongo ão. As consoantes D e L estão presentes nos nomes dos personagens: Dalberto (que é chamado de Dal), Iládio, Doralda. Doralda tem também um apelido, Dada. O nome Doralda contém todas as letras de Dão e “Lalalão”. Em Iládio, encontramos o “lá” de “lalalão” e o D, de Dão. Em Dalberto, podemos destacar o Dal de “Dalalão”. Além disso, o “ão” de Dalalão, remete ao arraial do Ão, onde mora o casal.

Afirmamos anteriormente que Soropita vive num eterno inferno, sua dúvida sobre os possíveis clientes de Doralda. Curiosamente, na correspondência com o tradutor italiano, o

escritor mineiro confessa que injetou no conto passagens não só do Apocalipses e do Cântico dos Cânticos como também da Divina Comédia, de Dante. Interessa-nos aqui a referência a Dante. Rosa chega a citar algumas passagens, referentes ao Purgatório e, principalmente, ao Inferno. O autor mineiro faz referência ao Canto V, verso 43. O verso é o seguinte: “[...] di qua, di là. Di giù, di su limena.” E o autor salienta que se trata do inferno dos LUSSURIOSI. (Correspondência com seu tradutor italiano..., p. 83, grifo do autor).

Não nos interessa aqui explorar a fundo o processo intertextual. Gostaríamos apenas de relacionar o inferno de Dante com o inferno subjetivo de Soropita. Aliás, essa relação é confirmada pelo próprio Rosa, na correspondência com o tradutor italiano. O curioso é que na citação acima, feita por Rosa, há uma freqüência da letra D, além da sílaba “lá”: “[...] di qua, di là, di giù, di sulimena.”

Assim, o inferno do poeta italiano, além de se relacionar ao inferno interior de Soropita, isto é, suas dúvidas sobre os amores passados da esposa, dialoga, fonicamente, com a cantiga infantil, que também tem a letra D: Dão lalalão, letra que está presente nos nomes dos personagens da narrativa. Além disso, as sílabas “di” e o “lá” poderiam ainda apontar para um possível amante de Doralda, Iládio, rival que desencadeia um segundo inferno ao protagonista, oponente que tem L e D no nome.

Como podemos observar, a intertextualidade operada por Rosa, no caso, a canção infantil, e o texto de Dante, parecem ter um objetivo: aumentar a indecisão semântica, possibilitando várias leituras. Essa suspensão se presentifica nas dúvidas do protagonista, oscilando entre os possíveis fregueses da esposa. É nesse sentido que estamos realçando a presença das letras D, L e Ão, letras que vão se disseminando sobre os possíveis amantes de Doralda. Soropita vai assim martelando a sua consciência, badalando o sino, tentando moldar o bronze, o passado de Doralda, essa menina-bronze, mulher não-toda, que no seu enigma sempre resiste a uma significação, uma vez que não tem como dar ao marido o nome dos seus fregueses.

Esse desejo de deixar o texto em constante indecisão semântica pode ser comprovado na correspondência de Rosa com o tradutor italiano, quando faz referência às relações intertextuais com Dante e com a Bíblia:

Voltando ao Dão-Lalalão, isto é, aos curtos trechos em que assinalei as “alusões” dantescas, apocalípticas e cântico-dos-cânticos: ALIÁS, é apenas nessa novela (Dão-Lalalão) que o autor recorreu a isso. Como você vê, foi intencional tentativa de evocação, daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros acumuladores ou baterias quanto aos temas eternos. Uma espécie do que é a inserção de uma frase temática da Marselhesa naquela sinfonia de Beethoven, ou daglosa de versículos de

São João (Evangelho) no Crime e Castigo de Dostoievski. (Correspondência com

seu tradutor italiano..., p. 86)

E mais à frente, o autor afirma que essas pequenas citações são apenas “células temáticas”, “gotas de essência”, “fórmulas” ultra sucintas:

[...] Com a diferença que, no nosso caso, ainda que tosca e ingenuamente, o efeito visado era o de inoculação, impregnação (ou simples ressonância) subconsciente, subliminal. Seriam espécie de sup-para-citações (?!? ); isto é, só células temáticas, gotas da essência, esparziadas aqui e ali, como tempero, as “fórmulas” ultra- sucintas” (Um pouco à maneira do processo de modificações do tema – que ocorre, na música, nas fugas?). (Correspondência com seu tradutor italiano..., p. 87).

Injetar “células temáticas”, “fórmulas ultra-sucintas” são expressões que demonstram um gozo do autor em criar novas possibilidades de leitura. Mas, além das letras D, L e ÃO, podemos também destacar a presença da letra S que se insinua na narrativa. Vale a pena ainda observar o desenho da primeira letra que inicia o nome Soropita, o S. Essa mesma letra, além de iniciar o conto, simboliza o gatilho da arma de fogo. Esse gatilho tem o formato de cobra, que lembra ódio, traição. E o exemplo comprova nossa hipótese: “Agora não entesta com ele, não facilita! Quem relar, encalçar, beliscou cauda de cobra.” (Dão-lalalão..., p. 57, grifo nosso).

Há ainda uma sugestiva passagem do conto, em que Soropita pensa em matar o Dalberto, o amigo que o visitava e que poderia ter sido freguês de Doralda, quando esta se prostituía em Montes Claros. Nesse trecho, novamente encontramos uma referência ao gatilho do revólver em formato de cobra: “E nem precisava de pensar naquilo com fel frio. Guardava. Guardava como um gatilho armado, mola de cobra, tensão já vestida.” (Dão-lalalão..., p. 75, grifo nosso).

Agindo obsessivamente, em eterna vigilância sobre os possíveis amantes da mulher, Soropita é como um gatilho armado – um S – diante de uma iminente traição. Parte de seu nome (-Soro-) remete também para o vocábulo sururu, que significa briga, conflito. Como podemos perceber, em Dão-lalalão predominam as fantasias de Soropita, que cria devaneios que sempre voltam. Ele constrói amantes imaginários da esposa e está em constante estado de vigilância para defender sua imagem na sociedade, como afirma Willi Bolle (1973, p. 69). O que angustia Soropita é a possibilidade de se encontrar com amigos ou outros homens que já tiveram contato sexual com Doralda no passado. Como valentão, tendo um passado de várias mortes, ele não suporta perder. Saber que algum homem teve contato

com Doralda é para ele uma derrota, uma ameaça à sua virilidade e valentia, enfim uma inquietação infernal. E é importante observar que o inferno dos LUSSURIOSI, de Dante, a que se refere Guimarães Rosa, em correspondência com o tradutor italiano, e colocado com letras maiúsculas, contém L e S, L de Lalalão e S de Soropita.

O conto Dão-lalalão tem como subtítulo a expressão O Devente. Soropita vive devendo o passado. Trata-se de uma dívida eterna, daí o seu inferno, condenado que está a bater o sino da dúvida, soletrando o passado-bronze da esposa: Dão-lalalão: Dal, Dola, Dada, Ão, Iládio, em todos esses nomes badalam os sons D, L e Ão, martelando a consciência desse valentão obcecado.