• Nenhum resultado encontrado

2 DELETREANDO

4.4 Os provérbios em Tutaméia

Além das epígrafes de Schopenhauer e de Sextus Empiricus, gostaríamos de tecer algumas considerações sobre os provérbios em Tutaméia. Não pretendemos fazer um inventário do que André Jolles chama de “formas simples”. Os provérbios, nesse último livro de Guimarães Rosa, já foram estudados por Luiz Costa Lima (COSTA LIMA,1976,p. 78) Benedito Nunes (NUNES, 1976, p. 207) e outros pesquisadores. O que nos interessa é articular esses ditos populares, enquanto paratextos, ao projeto rosiano de escrita enxuta, espécie de exercício do escritor mineiro no investimento na letra.

Benjamin (1987b, p. 221) mostra que o provérbio é uma forma de ideograma da narrativa, funcionando como ruínas de antigas experiências contadas:

Não seria a sua tarefa (Benjamin se refere ao papel do narrador) trabalhar a matéria- prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único? Talvez se tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio, concebido como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história abraça um acontecimento como a hera abraça um muro.

A citação de Benjamin pode ser repensada e adaptada ao projeto rosiano. Desse modo, a “moral”, isto é, a “síntese-vivência” do provérbio, a que se refere o filósofo, é rompida em Tutaméia em benefício do não-senso, destoando daquela lição de experiência, apresentada por todo dito popular. Mais do que uma ruptura, Rosa, com suas inversões proverbiais, quer propiciar-nos um humor (o clima das Terceiras estórias é o da comédia, como já apontou Benedito Nunes) e ao mesmo tempo nos conduzir aos limites da linguagem. Como afirma Nunes (1976, p. 205), “O não-senso abeira-nos das coisas importantes que não podem ser ditas. É modo de dizer aquilo para o que falece expressão.”

A expressão “ideograma da narrativa”, usada pelo filósofo alemão, merece atenção. Em seu ensaio, Benjamin destaca a narrativa oral e a experiência do narrador. Ao narrar, esse narrador traria uma “síntese visual” do que viveu. A outra expressão “ruínas de antigas narrativas” nos leva à fragmentação do narrado na formação da memória coletiva. Relacionando o provérbio ao ideograma e à ruína, Benjamin reforça o caráter econômico dessas “formas simples”, inscrição que tem algo de visual. No entanto, a noção benjaminiana de ruína ainda parece estar direcionada para o Simbólico. Rosa, por sua vez, parodiando essas “sínteses” da experiência coletiva, nos leva a reler o provérbio em outro ângulo, explorando, pelo paradoxo, inesperadas formas de leitura. Os provérbios rosianos invertidos permitem a suspensão do sentido na estória. É o caso do provérbio do primeiro conto – Antiperipléia “O pior cego é o que quer ver” ou mesmo o trocadilho “Eu estava na água da hora beber onça [...]” (Uai, eu?). Esse último adágio ilustra a tensão do jagunço Jimurulino, que defende o patrão.

Em outras narrativas há ditos latentes que invertem situações. Evidentemente tais ditos apontam ainda para o sentido, como ocorre em “A vela ao diabo”, que poderia ser sintetizado pelo adágio “O feitiço virou contra o feiticeiro”. Há também narrativas em que não há provérbios invertidos, mas uma ligeira distorção de ditos tradicionais. Em Tapiiraiauara o provérbio “Um dia é da caça outro do caçador” seria uma boa “síntese”. “Marinheiro de primeira nem de última viagem”, invertendo o dito conhecido (“Marinheiro de primeira viagem”) é o provérbio que resume Sota e Barla. E poderíamos arrolar outros ditos, invertidos ou não, que funcionam como formas lingüísticas reduzidas, que ilustram as experiências dos personagens.

Esses provérbios se caracterizam pelas subtrações oriundas das falhas e traições da memória no processo de construção das narrativas orais. O ditado invertido “A bonança nada tem a ver com a tempestade” (Desenredo), desafia a lógica, refletindo as contradições de Jó Joaquim ao ser traído várias vezes pela mulher e ao afirmar que a esposa nunca o enganara.

O que nos interessa não é fazer um levantamento dos provérbios em Tutaméia, como já afirmamos. O que queremos salientar é o seu caráter de texto econômico; trata-se de nicas textuais que, dialogando com a situação dos personagens, lançam fios que muitas vezes desafiam o bom senso da memória coletiva, evocando o provérbio em seu sentido tradicional, e ao mesmo tempo revirando-o pelo avesso. Mais do que isso, as inversões proverbiais nos levam a um novo sentido num deslizamento de significantes, propiciando o humor, que nasce dessa mobilidade semântica, dissolvendo as tensões de algumas situações trágicas vividas pelos personagens.

Com relação aos provérbios de Tutaméia, um fenômeno nos chamou a atenção, ao reler a pesquisa deWilli Bolle (1973, p. 111). Bolle, lançando mão do método formalista de Propp, destaca quatro blocos de contos das Terceiras estórias. No primeiro bloco, ele nos apresenta contos em que o personagem é acossado por uma dificuldade e resigna-se. Nesse grupo estão os contos Droenha, Barra da vaca, Hiato, Mechéu, Orientação, No prosseguir, Sinhá Secada, Arroio das antas e Lá, nas campinas. No segundo bloco, o protagonista encontra um obstáculo, mas reage por causa de suas qualidades e astúcia. No terceiro núcleo, o protagonista, ao encontrar uma dificuldade, recorre à imaginação, permitindo a corporificação de sua fantasia. Finalmente, no último conjunto, o protagonista encontra uma dificuldade, recorre à imaginação, desejando que ela se realize, mas a realidade não se dobra diante da fantasia.

O que pudemos perceber, a partir do esquema proposto por Willi Bolle, é que nos contos cujos personagens encontram obstáculos e reagem diante deles (ou mesmo em outro conjunto, composto daquelas estórias em que os protagonistas apelam para a corporificação da fantasia), enfim, em ambos os grupos, encontramos um número expressivo de provérbios, expressões populares ou modificações de ditos. A título de exemplos e sem pretensão de fazer levantamento exaustivo, destaquemos alguns: Desenredo: A bonança nada tem a ver com a tempestade, Vá-se a camisa, que não o dela dentro; Se eu seria personagem: Fique o escrito por não dito; Melim Meloso: Achei a tramontana; Os três homens e a estória dos três homens que inventaram um boi: Todo mundo tem onde cair morto; Estória n. 3: O nariz no que era de sua conta; Curtamão: O que conto enquanto; ponto; Vida ensinada: Quem calca não conserva; Uai, eu?: Quem menos sabe do sapato é a sola, Eu estava na água da hora beber onça; A vela ao diabo: Não há como Deus d'ora em ora; Azo de almirante: O gênio é punhal de que não se vê o cabo, Cerrando bem a boca é que a gente convence a si mesmo; Esses Lopes: Ri muito útil ultimamente; Estoriinha: A desunião faz as enormes forças; Faraó e a água do rio: Ceca e meca e cá girava os ciganos, nem tanto à várzea, nem tanto à serra.

Vários desses provérbios ou expressões são reelaborações de ditos tradicionais. Alguns exemplos: “Cerrando bem a boca é que a gente convence a si mesmo”, de Azo de almirante, poderia ser a reelaboração e “Em boca fechada não entra mosquito. Já a frase “Não há como Deus d'ora em ora”, de A vela ao diabo, corresponde ao tradicional dito “De hora em hora, Deus melhora”. Interessante observar aqui que a reelaboração às vezes se estende à ortografia. É o que acontece com o último provérbio citado. Ao usar a conjunção “ora”, o narrador caracteriza a alternância de Terezinho entre o amor de Zidica e o de Dlena. A frase “Ri muito ultimamente” é a versão rosiana do tradicional “Quem ri por último, ri melhor”, provérbio que aponta para a protagonista do conto, pois Flausina, que foi explorada sexualmente pelos Lopes, vai matando-os às escondidas até ficar com a herança deles.

O provérbio “O sol morre para todos” inverte o tradicional adágio “O sol nasceu para todos”. “Nem tanto à várzea, nem tanto à serra” é uma transformação de “Nem tanto ao mar nem tanto à terra”. Na frase “O que conto, enquanto; ponto.”, encontramos o ditado “Quem conta um conto aumenta um ponto”. “Achei a tramontana” inverte a tradicional expressão “Perder a tramontana”. Em “Vai-se a camisa que não o dela dentro” corresponde a “Vão-se os anéis, fiquem os dedos. Em “Fique o escrito por não dito” é possível ler o velho provérbio “Fique o dito pelo não-dito”.

A presença de provérbios em Tutaméia, invertidos ou não, corresponde aos blocos, citados por Willi Bolle, em que os personagens reagem diante de determinadas situações ou apelam para a imaginação, conseguindo alguma solução. Nesse sentido, os provérbios adaptados de ditos existentes funcionam como respostas sintéticas construídas pela memória coletiva, espécie de combustível para levar os personagens a enfrentarem os obstáculos. Já os provérbios invertidos, apelando para o não-senso, propõem uma outra lógica, diferente da convencional, direcionando para novas configurações de realidades inusitadas e novas possibilidades de sentido.

Em outro bloco de narrativas proposto por Willi Bolle, cujos personagens se resignam diante das situações, não encontramos provérbios. É este que nos interessa aqui. Em outros termos, nos contos em que a realidade se impõe fortemente aos protagonistas, não há como representá-la. Resta-lhes o silêncio, a aceitação da realidade nua e crua. Nesse caso, os personagens recusam uma comunicação com o mundo que os envolve. Essa ausência de provérbios não é apenas um mero calar dos personagens. Quase todos os personagens desse bloco são melancólicos, sentem-se solitários, com um eu reduzido à categoria de lixo, resto. Desse modo, eles se refugiam no silêncio.

A protagonista de Sinhá Secada, por exemplo, trai o marido, que lhe toma o filho. Ela se muda para outro lugar, passando a ter uma vida completamente isolada das companheiras da fábrica onde trabalha. Não há sequer um provérbio nesse conto. Em Barra da vaca, Jenzerico, que atirou em Zevasco, se afasta do arraial e vai morar na Serra, onde perde suas roupas, sendo finalmente resgatado por amigos. Em Hiato, o vaqueiro Nhácio, surpreendido por um touro, que sai repentinamente do mato, abandona a campeação, não enfrentando o trauma, que o marca para o resto da vida. O protagonista de Mechéu, sendo meio imbecil, não tem capacidade de se relacionar verbalmente com as pessoas. O chinês Yao Tsing-Lao de Orientação não consegue viver com Rita-Rola e se isola, restando a ela apenas um resíduo cultural do Oriente, “o andar à chinesa.” Em No prosseguir, um jovem zagaieiro, que tem cicatriz feia no rosto, provocada por onça, se afasta da casa, ao perceber que poderia ser um empecilho ao possível amor existente entre seu pai e a única mulher do lugarejo.

Como podemos perceber, quando os personagens se isolam, ou quando aceitam passivamente a situação que lhes é apresentada, em lugar do provérbio temos um vazio de resposta. Tais personagens não respondem ao que lhes é proposto, não apelam para o imaginário para interferir na realidade. Trata-se de um esvaziamento da linguagem, que chega ao seu limite.

Os provérbios, em Tutaméia, como os prefácios, enquanto paratextos, têm como marca a mobilidade. Às vezes se manifestam em profusão, invertendo os ditos tradicionais ou dialogando intertextualmente com eles. Outras vezes não aparecem nas narrativas, mergulhando num “espaço de vacância”, possibilitando uma tensão de sentidos.

Poderíamos afirmar que os provérbios ausentes desses contos constituem o “livro em reserva” a que se refere Mallarmé ou, como quer Blanchot, “o livro por vir”, uma escrita que, buscando o irrepresentável, aceita a própria realidade que se impõe em seu estado bruto. E a única forma de nomear esse impasse é o silêncio. Nesse sentido, Guimarães Rosa chega à impossibilidade da escrita, como afirma Blanchot (1997, p. 32): “Escrever é encarar a impossibilidade de escrever, é como o céu, ser mudo, ser eco apenas da mudez; mas escrever é nomear o silêncio, é escrever impedindo-se de escrever.”

Com vimos anteriormente, prefácios, epígrafes e provérbios, enquanto paratextos, são esses elementos mínimos da escrita que, rompendo com a relação entre texto externo e interno das estórias de Tutaméia, quebram a linearidade da escrita topográfica e propõem uma escrita topológica, como quer Compagnon. Com relação às epígrafes, Compagnon afirma que nelas o autor mostra as cartas. Afirma ainda o crítico que elas são como “um grito, uma palavra inicial, um limpar de garganta antes de começar realmente a falar, um prelúdio ou

uma confissão de fé: eis aqui a única proposição que manterei como premissa, não preciso de mais nada para me lançar.” (COMPAGNON, 1996b, p. 78, grifo nosso).

A comparação da epígrafe a um “limpar de garganta antes de começar a falar” nos leva a analisar dois contos de Tutaméia que contêm elementos ligados ao corpo, Orientação e Intruge-se. Neles vamos encontrar nicas, isto é, miúdos textuais que escapam à fala. Nao consideramos essas nicas como paratextos no sentido estrito. No entanto, elas têm certa relação com eles, na medida em que funcionam como elementos mínimos, isto é, dejetos que não trazem um significado, mas são fundamentais para resgatar o corpo, que muitas vezes se perde na escrita, como já apontou Barthes. Vale a pena aqui reler a citação do semiólogo francês, já citada por nós no terceiro capítulo:

Compreende-se, por essas poucas observações, que o que se perde na transcrição é pura e simplesmente o corpo – pelo menos esse corpo exterior (contingente que, em situação de diálogo, lança para outro corpo, tão frágil (ou assustado) quanto ele, mensagens intelectuais vazias, cuja única função é, de certa forma, agarrar o outro (até mesmo no seu sentido prostitutivo do termo) e mantê-lo em seu estado de parceiro. (BARTHES, 2004a, p. 4).

Barthes (2004a, p. 7) faz referência ainda à viagem do corpo através da línguagem, que nas três práticas (fala, escrito, escrita) vão modulando, cada uma a seu modo. São esses elementos do corpo que se perdem na escrita que nos interessam marcar aqui em alguns contos de Tutaméia. Eles têm algo em comum com a letra, não têm significado, mas pretendem manter um contato com o outro, aproximando-se do que Roman Jakobson chamou de função fática da linguagem.