• Nenhum resultado encontrado

2 DELETREANDO

4.6 Intruge-se: o toque de mão

Intruge-se é uma espécie de conto-referência de Tutaméia, uma vez que é nessa narrativa que encontramos dois importantes personagens que aparecem em outros contos. Ladislau, chefe dos vaqueiros, é o mesmo do conto Zingaresca. Ele aparece também como o apelido de So Lau em Vida Ensinada. Seo Drães, outro personagem de Intruge-se, que aparece como o futuro dono da Fazenda da Gralha, está também presente no conto Retrato de Cavalo. Tio Dô, delegado do conto Faraó e a água do Rio, é mencionado em Intruge-se, como Tio de Ladislau, como já afirmou Novis (189, p. 38). O mesmo Tio Dô corresponde ao delegado que ouve o depoimento do guia no conto Antiperipléia. Esses deslocamentos de personagens são mais freqüentes em Tutaméia, mas estão presentes em outras narrativas

rosianas. Miguel, o veterinário de Buriti, de Corpo de baile, é o mesmo Miguilim de Campo geral. O cego, que aparece perdido em A hora e a vez de Augusto Matraga, nos remete ao cego do primeiro conto de Tutaméia. A boiada, conduzida pelo Major Saulo em O burrinho pedrês, de Sagarana, tem um sintonia com a boiada comandada por Ladislau, no último conto de Tutaméia, Zingaresca. Até mesmo o espaço costuma se repetir de uma estória para outra. O povoado do Ão, onde se refugiaram Soropita e Doralda, personagens de Dão-lalalão, tem o mesmo nome do vilarejo onde Damásio, protagonista de Primeiras estórias, pergunta ao doutor o significado do vocábulo “famigerado”. Esse mesmo povoado é também mencionado no conto O outro ou o outro, de Tutaméia.

Deslocando personagens de uma narrativa para outra, Guimarães Rosa vai criando uma escrita nômade e nesse nomadismo textual, o retorno dos personagens funciona como um recurso de escrita que, ao se repetir, se torna cada vez mais compacta, à medida que é construída, possibilitando ao leitor criar, a cada leitura, um novo livro.

De todos os contos de Tutaméia, Intruge-se se apresenta como uma das narrativas em que a linguagem não-verbal mais se evidencia como suplemento da verbal. O protagonista Ladislau está guiando uma boiada com vários vaqueiros e tem pela frente um desafio: descobrir o assassino do vaqueiro Quio. “Nem o cão latiu, na ocasião [...]”. (Intruge-se, p.71). Ladislau, tentando descobrir o autor do crime, arranja vagens de jubaí e, à medida que descarta possíveis pistas do criminoso, vai inocentando os vaqueiros, desfazendo-se das vagens. Mas há uma nica textual que perpassa por todo o conto, representada pelo toque de mão que ele dá em cada vaqueiro que interroga e por uma frase sugestiva: “Será o Seo Drães adquire a Gralha“? No texto, Gralha é o nome de uma fazenda que está para ser comprada por Seu Drães, patrão de Ladislau e personagem de outras estórias de Tutaméia. À medida que Ladislau vai perguntando aos vaqueiros, a frase vai diminuindo. A primeira frase é: “Será, o Seo Drães adquire a Gralha?”, pergunta feita ao vaqueiro Rigriz. Ao vaqueiro Amazono, o chefe lança a seguinte frase: “Será a Fazenda da Gralha, o Seo Drães vai mesmo comprar?” Essa frase é seguida de um toque de mão. Segundo Ladislau, aquele que reagisse diante do toque seria o assassino. A partir daí e à medida que avança a narrativa, a frase de Ladislau – “Será o Seo Drães Adquire a Gralha” – vai diminuindo, chegando ao silêncio. Ao vaqueiro Antônio Bá, ele apenas diz: “Se a Gralha [...]”. A Joãozão e a Liocádio ele só pronuncia o nome do patrão: “Seu Drães”. Com relação ao vaqueiro Zegeraldo, não há uma pergunta do chefe, mas a resposta do vaqueiro, construída pelo narrador, deixa a pergunta em silêncio: “Da gralha o geral achavam. E Zegeraldo respondeu: que nas mãos tivesse ainda calejo, das capinas de janeiro e de dezembro – sem embatuque.” (Intruge-se, p. 72).

Quando indaga a Zéquiabo, a pergunta de Ladislau é apenas suposta, sendo também tecida em silêncio: “O Zéquiabo, cozinheiro! Mas que sem desconversa respondeu: – “A gralha é uma fartura [...]” (Intruge-se, p. 72). Não há pergunta ao cozinheiro nem toque de mão. Aparece apenas a resposta: “já carecia de cortar as unhas”. (Intruge-se, p. 72). Assim, a frase “Será, o Seo Drães adquire a Gralha” vai diminuindo durante a narrativa, insinuando- se e se ausentando, à medida que Ladislau pergunta a seus homens, até desaguar no silêncio, o mesmo acontecendo com o toque de mão, explícito em alguns encontros com vaqueiros e suposto em outros, como é o caso do diálogo com Zé Quiabo.

Ladislau toca pela segunda vez na mão de Liocádio. Na primeira vez, Liocádio lhe respondeu: “Munheca para vara e laço!” (Intruge-se, p. 72). O chefe não desconfiou. Na segunda vez em que Ladislau lhe esbarra, Liocádio saca da faca. Com essa reação, o vaqueiro se denuncia. E é muito sugestivo o nome do lugar onde acontece esse segundo toque: Sítio do Jerônimo Maneta. A palavra “maneta” significa “sem mão”. Desse modo, o crime se desvenda num lugar cujo proprietário não tem mão. Em outras palavras, fechou-se o cerco, descobriu-se o assassino, não há mais o toque de mão. Um outro dado importante na narrativa: “Nem o cão latiu na ocasião...” (Intruge-se, p. 71).

Essas reticências trazem um significado: o assassino era amigo do cão. E no final do conto, pouco antes da luta entre Ladislau e Liocádio, o narrador afirma que este último agradava o cão: “Um vaqueiro passou, Liocádio, agradou o cão – que latiu ou não latiu, não se ouviu.” (Tutaméia, p. 73). A regência do verbo “agradar”, como transitivo direto, significa afagar, em outros termos, usar a mão, a munheca. Desse modo, o toque de mão é como um suplemento do texto escrito, representado pela frase “Será o Seo Drães adquire a Gralha?” Trata-se de um texto não-verbal tão ou mais importante do que a frase dita, linguagem silenciosa, mas eficaz, desencadeadora do desenlace da narrativa.

Mas, além do toque, a frase – “Será o Seo Drães adquire a Gralha?” – tem uma palavra que merece destaque: Gralha. O vocábulo “gralha” significa pássaro colorido de voz estridente. Gralha é, pois, metáfora da voz. Ninguém sabe quem é o assassino, no início da narrativa. Ladislau, agindo como um detetive, quer descobrir o culpado. Como o assassino não vai se manifestar pela voz, mas pode desconversar, engrolar, como a gralha, o chefe lança mão de uma linguagem silenciosa, o toque de mão, acompanhado de uma palavra sugestiva – “Gralha” – como se buscasse, pelo toque, uma voz em off. Mas a palavra gralha desliza também para outro sentido no dicionário: “Erro tipográfico, que consiste em tipo virado, deslocado do lugar, ou trocado”. Desse modo, num nível metafórico, podemos perceber que o chefe Ladislau quer retirar a gralha, isto é, o erro tipográfico, o crime, que mancha a página,

no caso, sua comitiva. Assim, o narrador, através do vocábulo “gralha”, vai possibilitando a conjugação do excesso do sentido (engrolar, mancha tipográfica, crime) com a redução ou ausência de palavra, que precisa de ser substituída pelo toque de mão.

Como vimos, a frase “Será. O seu Drães adquire a Gralha?”, representada pelo signo “Gralha”, é complementada por um outro texto não-verbal, o toque. Guimarães Rosa nos dá aqui um belo exemplo da relação entre o verbal e o não-verbal, da oscilação entre o excesso e a falta de sentido, da defasagem, já apontada por Barthes, entre o que se perde no par linguagem e corpo.

Zumthor (2005, p. 147), ao estudar a relação entre a poesia e o corpo, nos ensina que a palavra não existe em um contexto puramente verbal: “Para aquele que observa o gesto, a decodificação implica fundamentalmente a visão, mas também, numa medida variável, a escuta, o olfato e o toque.” (Grifo nosso).

4.7

A dança da letra na relação Oriente e Ocidente

Orientação, conto de Tutaméia, narra o casamento entre Yao Tsing-Lao, vulgo Quim, e Rita Rola ou Lola-a-Lita. Entre eles não havia afinidade, mas acabaram se unindo. A união trouxe desentendimento, principalmente por parte da esposa, que reclama. Quim, silenciosamente abandona Rita, que fica triste e abatida. A única lembrança que ela traz do marido é o andar à chinesa. Vamos ver a seguir de que modo a escrita minimalista, com suas nicas textuais, isto é, as letras e seus elementos tipográficos, mimetizam a relação entre dois amantes de culturas diferentes.

Vera Novis salienta que neste conto e em O outro ou o outro existe uma relação entre Ocidente e Oriente. No caso de O outro e o outro, há uma aproximação entre Tio Dô e os ciganos. Tio Dô gosta de Prebixim e acaba deixando o roubo do acusado em segundo plano. Já em Orientação, segundo a pesquisadora, há uma relação de diferença entre dois mundos. Quim e Rita Rola não se entendem. Acreditamos que, além das diferenças entre o casal e da aprendizagem do silêncio por parte de Rita, como afirma Vera Novis, é possível detectar no conto um processo de troca cultural. O mais importante a ressaltar é que essa troca se plasma no corpo da linguagem.

Guimarães Rosa mostra, de modo original, como a relação Oriente e Ocidente se processa. No casamento de uma sertaneja e um chinês, seres tão díspares, como a rapadura e a escada, segundo o narrador, cria-se um espaço de reterritorialização cultural mediada pela