1- AS METAMORFOSES DE MOMO: ECOS DE UMA FESTA
1.3 O carnaval em Recife de 1955 a 1972: identidades e conflitos
1.3.1 As metamorfoses do folião: as travestis invadem as ruas
Um debate que considero relevante no recorte temporal da pesquisa versa sobre a presença das travestis139 no reinado de momo. Pela leitura dos jornais pude compreender que desde o final dos anos de 1960 até princípios da década de 1970 foram constantes as matérias que questionavam a validade ou não da participação dessa categoria social nas agremiações. E pelo que interpretei o debate circundava o campo da moral e ‘bons costumes’. Entretanto, mesmo antes do período supracitado, o jornalista Mário Melo questionava a participação de
de Pernambuco, 20 de janeiro de 1968, 1º caderno, p. 06. Vôo do frevo parte na quinta feira para o Rio levando
autoridades e duas orquestras. Diário de Pernambuco, 21 de janeiro de 1968, 1º caderno, p. 10. Já vitorioso o 1º vôo do frevo. Diário de Pernambuco, 23 de janeiro de 1968, 2º caderno, p. 02. Vôo do frevo. Diário de
Pernambuco, 24 de janeiro de 1968, capa. Noite do frevo dominou o Rio. Diário de Pernambuco, 30 de janeiro
de 1968, 2º caderno, p. 02. Frevos do Recife obtém sucesso na Guanabara. Diário de Pernambuco, 01 de fevereiro de 1970, 1º caderno, p. 09. Manaus terá três dias de carnaval pernambucano. Diário de Pernambuco, 19 de janeiro de 1971, 2º caderno, p. 01.Vôo do frevo vai despertar foliões cariocas. Jornal do Commercio, 04 de janeiro de 1970, II caderno, p. 08. Rio um momento de frevo. Jornal do Commercio, 27 de janeiro de 1970, II caderno, p. 03, coluna do Alex. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Nilo irá novo o do frevo. Diário de Pernambuco, 21 de janeiro de 1968, 2º caderno, p. 02. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Vôo do samba em maio no Recife. Diário de Pernambuco, 28 de janeiro de 1968, 2º caderno, p. 02. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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O motivo do termo ‘as travestis’, no feminino e não no masculino refere-se ao fato de ser dessa forma que ‘elas’ gostam de ser nomeadas. E mais, ‘as travestis’ é a invenção do feminino, não como inversão, mas semelhante à idéia de ‘reconstrução do feminino’. Para saber mais, ver entre outros: PATRÍCIO, M. C. No
truque: transnacionalidade e distinção entre travestis brasileiras. Recife: Tese de Doutorado em Antropologia
homens transvestidos de mulheres no carnaval, como demonstra a matéria abaixo que foi publicada no Jornal do Commercio em 1956:
Teremos um carnaval amorfo, pífio, descaracterizado, como foi imposto pelo interventor Demerval Peixoto, que pretendeu também sobrepor-se a nosso tradicionalismo um carnaval contrário às tradições de masculinidade pernambucanas, com desajustados sexuais em vestes femininas, rebique na cara, beladona nos olhos, seios supostos, anquinhas, voz de falsete, ademanes suspeitos, o que é comum noutros lugares, mas horripilam homens e mulheres normais.140
Pela leitura da matéria citada é possível visualizar como o jornalista Mário Melo construiu uma relação onde associa as travestis a pessoas ‘anormais’. Não só Melo bem como inúmeros outros sujeitos que posicionaram-se a respeito do fato realizaram essa leitura. Dito de outra forma, as travestis eram entendidas como indivíduos anormais que se contrapunham aos demais membros da sociedade, as pessoas ditas normais. Ou seja, eram uma anomalia e dessa forma não deveriam participar dos festejos de momo.
As matérias dos jornais mencionavam que algumas agremiações eram a favor da presença das travestis já outras não.141 Entre as que eram ostensivamente contra estavam o clube Batutas de São José e o Maracatu Indiano.142 Parcela dos representantes desses grupos alegavam que caso permitissem a participação das travestis estariam corroendo a ‘autêntica tradição carnavalesca’ recifense.143 Alguns membros do clube Lenhadores em certo momento colocou-se a favor da participação das travestis em seu cortejo, em outro contra.144
O problema da participação dos travestis, biquínis e saiotes nos desfiles de clubes e troças, voltou a ser abordado ontem, durante a reunião da COC, quando o vereador Valério Rodrigues levantou a questão de ordem para protestar houvesse a Comissão Organizadora do Carnaval se pronunciando a respeito, quando a sua missão é programar os festejos e não causar polêmicas entre agremiações, a quem cabe decidir sobre a presença ou não desses figurantes nos seus cordões e salões. 145
Já o presidente do clube Amantes das Flores pronunciou-se nos jornais a favor da participação das travestis, afirmava que sem ‘elas’ o grupo não sairia, ‘em meu clube os
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MELO, Mário. Crônica da Cidade: o presente de grego dos marmeladeiros. Jornal do Commercio, 19 de janeiro de 1956, p. 02. Departamento de Microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.
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Vereador vê nos travestis a ornamentação para o carnaval. Jornal do Commercio, 29 de janeiro de 1970, I caderno, p. 12. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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COC pede a clubes que evitem travestis. Jornal do Commercio, 11 de janeiro de 1968, p. 10. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Lenhadores e Batutas lideram guerra contra travestis no carnaval. Jornal do Commercio, 10 de janeiro de 1968, p.10. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Lenhadores é pelo travesti. Jornal do Commercio, 13 de janeiro de 1968, p. 7. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Travestis, biquínis e saiotes. Diário de Pernambuco, 18 de janeiro de 1968, I Caderno, p. 06. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
travestis146 são os que mais trabalham e são eles próprios que compram suas fantasias, e alguns até chegam a colaborar financeiramente com a agremiação’.147 O maracatuzeiro Luiz de França, presidente do Maracatu Leão Coroado, salientou que ‘são essas pessoas as que mais trabalham e que também são as que gastam nas fantasias, contribuindo assim, para o êxito das associações’.148Outro a colocar-se a favor das travestis foi o presidente a Associação dos Cronistas Carnavalescos do Recife, que ressaltou:
Aristeu Plácido, presidente da Associação dos Cronistas Carnavalescos do Recife, afirma que a presença dos travestis não descaracterizam o tradicional carnaval pernambucano, pois desde muitos anos eles se apresentam à frente de seus clubes e são na verdade, aqueles que mais trabalham pela boa apresentação das agremiações.
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As discussões sobre a participação ou não das travestis no carnaval enveredou para o campo das disputas em torno das próprias agremiações. Segundo matéria publicada no Jornal do Commercio, para o presidente do Bloco Inocentes de Rosarinho as críticas que as travestis enfrentaram no carnaval por parte dos integrantes do Batutas de São José e Madeiras do Rosarinho, ‘não passam de inveja por não poderem contratá-los’. E continuou ‘os travestis já fazem parte do carnaval recifense e a campanha que movem contra eles não tem mais sentido. As grandes agremiações carnavalescas estão unidas na defesa da plena liberdade de apresentação nos desfiles’.150
A campanha promovida por alguns grupos carnavalescos e por parcela dos administradores do carnaval contra a participação das travestis chegou em 1970 a proibi-las nos festejos de momo, ‘o departamento de polícia federal decidiu ontem não permitir qualquer manifestação deles nos bailes, cordões, blocos ou mesmo em ajuntamento próprios do reinado de momo, para que não atentem contra a moral e os bons costumes da sociedade’.151 Entretanto, de acordo com matéria publicada no Diário da Noite, sua participação nos desfiles
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Utilizo em alguns momentos a expressão ‘os travestis’, no masculino, porque era dessa forma que ‘elas’ eram tratadas pela documentação do período.
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Sem travestis amantes das flores não vai desfilar. Jornal do Commercio, 12 de janeiro de 1968, p. 10. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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COC pede a clubes que evitem travestis. Jornal do Commercio, 11 de janeiro de 1968, p. 10. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Sem travestis amantes das flores não vai desfilar. Jornal do Commercio, 12 de janeiro de 1968, p. 10. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Inocentes atava madeiras na defesa dos travestis. Jornal do Commercio, 13 de janeiro de 1968, p. 7. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Travestis estão proibidos de brincar o carnaval. Diário de Pernambuco, 28 de janeiro de 1970, I caderno, p. 03. Federais: travestis não vai acontecer. Diário da Noite, 28 de janeiro de 1970, I caderno, p. 12. Polícia Federal proíbe os travestis no carnaval. Jornal do Commercio, 28 de janeiro de 1970, I caderno, p. 12. Polícia fiscalizará exibição de travesti. Diário de Pernambuco, 02 de fevereiro de 1971, II caderno, capa. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
foi permitida nesse mesmo ano.152 E mesmo combatidas, as travestis continuavam a participar do desfile das agremiações carnavalescas do Recife.153
Quase todas as agremiações apresentaram em seus cordões, os combatidos travestis. Eles foram sem dúvida alguma, atração a parte. Desfilando com garbo, charme e requebrando ao som das músicas, os travestis arrancaram aplausos e elogios dos presentes.154
Na leitura dos jornais pude compreender que as travestis tiveram sua atuação no carnaval cerceada.155 Mesmo quando participavam dos festejos eram fiscalizadas ‘a polícia vai exercer rigorosa fiscalização contra os homossexuais e homens normais que durante as festividades carnavalescas se pintam ou se fantasiam com indumentárias femininas’.156 Creio que a proibição de ‘brincarem’ alegremente pelas ruas do Recife foi um dos relevantes motivos que levou as travestis a criarem o ‘baile dos incertos’, pois, talvez, assim tivessem condições de se divertir sem o rigoroso controle da polícia.
A exemplo de seus colegas da Guanabara, os ‘incertinhos’ do Recife também realizaram sua festa de carnaval, sob intensa curiosidade, principalmente dos repórteres de jornais e revistas sulinas. E o sucesso, segundo opinião geral, nada ficou a dever ao famoso baile do João Caetano, estando, assim, a repontar como um motivo de atração para os turistas que futuramente vieram à capital do frevo. O local da festa foi certo e sabido: a Sociedade Folclórica, em Apipucos, presidida pelo Sr. Bebinho salgado, cujos salões foram pequenos para comportar tantos ‘travestis’ que lá compareceram, sábado à noite. Todos estavam fantasiados e sempre com muito luxo, alguns apresentando criações de bons figurinistas pernambucanos. A perfeição com que se esmeraram nos trajes, na maquilagem e nos trejeitos era tal que chegou a ser difícil distinguir-lhes o sexo, o que provocou, inclusive, alguma confusão. A alegria foi contagiante. Os travestis pularam e dançaram a noite inteira, num carnaval desinibido, sem lenço e sem documentos... E preferindo segregar-se, eles não foram vistos nos grandes pequenos clubes sociais da cidade. 157
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Travestis desfilam, mas não faz baile. Diário da Noite, 30 de janeiro de 1970, I caderno, p. 02. Disciplinando o travesti no carnaval. Jornal do Commercio, 30 de janeiro de 1970, I caderno, p. 08. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Travestis jamais deixarão de brilhar no carnaval de rua. Diário da Noite, 19 de janeiro de 1970, I caderno, p. 07. Travestis (mesmo tristes) não param fantasias. Diário da Noite, 31 de janeiro de 1970, I caderno, p. 02. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Travestis imperam. Diário de Pernambuco, 29 de fevereiro de 1968, I caderno, p. 02. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Madeira só é contra homem vestido de mulher. Jornal do Commercio, 17 de janeiro de 1968, p. 10. Dona Flor não admite desfile dos travestis. Jornal do Commercio, 03 de fevereiro de 1968, p. 12. Maracatu Indiano contra travestis. Diário da Noite, 19 de fevereiro de 1969, 2ª. Ed., p. 03. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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Policia fiscalizará exibição de travestis. Diário de Pernambuco, 02 de fevereiro de 1971, II caderno, capa. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.
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O Recife também teve seu baile dos ‘incertos’: sucesso absoluto no Clube de Bebinho Salgado. Diário de
Uma vez que as travestis eram tratadas com hostilidade, por parte das autoridades e dos administradores do carnaval, a alternativa seria organizar um baile exclusivo onde pudessem ‘brincar’ sem tantos problemas. No período em tela, a imprensa divulgou os pedidos, apelos e reivindicações para que as autoridades policiais permitissem o chamado ‘baile dos incertos’. Talvez o desejo das travestis era que fosse permitida uma alternativa momesca capaz de abrandar a perseguição sofrida.