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2 – A TRADUÇÃO DA TRADIÇÃO: intelectuais e a presença das escolas de samba no carnaval em Recife.

2.1 O Território da Palavra

Antes de iniciar a exposição sobre a presença das escolas de samba na folia pernambucana e analisar como os intelectuais posicionaram-se perante o fato, acredito ser importante abrir espaço para a discussão em torno do papel desempenhado e do engajamento dos intelectuais na sociedade, bem como da concepção do ‘ser intelectual’, já que o entendimento deste conceito faz-se necessário, uma vez que a utilização do termo perpassa todo o trabalho. Não pretendo transformar o texto num balanço historiográfico, comentarei, mais enfaticamente, apenas sobre o posicionamento de três autores: Antônio Gramsci, Norberto Bobbio e Edward W. Said.207

A noção de intelectual é de contornos fluidos e se transforma com o tempo, indicando dificuldades que se traduzem na impossibilidade de uma definição rígida. Dessa forma, opto por chamar de intelectuais os sujeitos que escreviam nos jornais sobre a cultura e o carnaval na cidade, como os jornalistas Mário Melo e Aníbal Fernandes, o sociólogo Gilberto Freyre, entre outros. Esses indivíduos apropriavam-se da folia e procuravam representá-la por meio da escrita, convertendo-a em crônicas, narrativas históricas, poesia, relatos, memórias, buscando, com isso, construir um ‘modelo’ de festa carnavalesca para a urbe.

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Isso não significa dizer que não dialogarei com outros autores que se dispuseram a questionar o papel dos intelectuais na sociedade, como: Michel Foucault, Beatriz Sarlo, Jean-François Sirinelli, entre outros.

Procuro compreender de que forma determinados indivíduos, entendidos como ‘intelectuais’, pensaram sua própria função na sociedade. Sobre isso, destaco as análises empreendidas pelo filósofo, marxista e jornalista italiano Antônio Gramsci. Para este autor, “Todos os homens são intelectuais, embora se possa dizer: mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”.208

Gramsci tenta demonstrar que as pessoas que desempenham a função de intelectual na sociedade podem ser divididas em dois grupos, denominados por ele como o dos tradicionais, composto por professores, clérigos e administradores que geração após geração continuam a fazer a mesma coisa, ou seja, a exercer o mesmo ofício; e o dos orgânicos, ligados a classes ou empresas, que os usavam para organizar seus interesses.209

Outro intelectual a problematizar sua própria função foi o filósofo político Norberto Bobbio. Este autor assim definiu os intelectuais:

[...] hoje, chamam-se intelectuais aqueles que em outros tempos foram chamados de sábios, doutos, philosophes, literatos, gens de lettre, ou mais simplesmente escritores, e, nas sociedades dominadas por um forte poder religioso, sacerdotes e clérigos.210

Para Bobbio, o que caracteriza os intelectuais não é o tipo de trabalho, mas a função que desempenham, ou seja, “um operário que realiza uma propaganda sindical, mesmo que inconscientemente, está desempenhando a função de um intelectual”.211 Dessa forma, jornalistas, escritores, literatos, folcloristas, memorialistas, entre outros, vão configurar o grupo denominado de intelectuais com o qual trabalho. Esses indivíduos, imbuídos do saber, da posição de legitimidade, do poder de falar a sociedade, escreviam nos jornais, lançavam sobre a população ideias diretivas, visões de mundo e concepções sobre os mais variados aspectos da vida pública.

Para Edward W. Said em “Representações do Intelectual”, o intelectual é um indivíduo com tamanho papel público na sociedade que não pode ser reduzido a um profissional sem rosto. A questão central para Said é o fato de o intelectual ser dotado de uma

208

GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 9ª. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 07, 1995.

209

GRAMSCI, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 9ª. Ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, pp. 04-08, 1995.

210

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: UNESP, p. 11, 1997.

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vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem ou mesmo um ponto de vista a um público.212

Em primeiro lugar, é claro, está a noção de que todos os intelectuais representam alguma coisa para seus respectivos públicos e, dessa forma, se auto-representam diante de si próprios. Seja um acadêmico, seja um ensaísta boêmio ou um consultor do Departamento de Defesa, o intelectual faz o que faz de acordo com uma ideia ou representação que tem de si mesmo fazendo essa coisa: pensa em si próprio como fornecedor de conselhos “objetivos” em troca de pagamentos, ou acredita que o que ensina aos alunos tem um valor de verdade, ou se vê como uma personalidade advogando uma perspectiva excêntrica, mas consistente?213

Os intelectuais do período em questão – Mário Melo, Aníbal Fernandes e Gilberto Freyre, entre outros – colocavam-se como detentores da ‘verdade’, a qual deveriam transmitir ao ‘povo’ para, e assim, modelar a sociedade. Pensavam que, por serem compreendidos como possuidores do saber, e consequentemente do poder, poderiam ser ouvidos, e foram durante algum tempo. Entretanto, acredito que cometiam a falha de pensar que os foliões fossem uma comunidade ilustrada de iguais, “imaginaram-se como intérpretes do gosto de uma república de iguais”.214

Esse sentimento de transmitir a ‘verdade’ ao ‘povo’, de ensinar, de mostrar o caminho a ser seguido, estava presente em vários escritos dos intelectuais com que trabalho. Muitos deles colocavam-se como condutores da sociedade e tradutores de uma tradição. Sobre isso, Mário Melo dissertou: “[...] papel do jornalista é esclarecer o povo a responsabilidade do inevitável futuro do carnaval recifense [...] mesmo velho, ainda tenho força de gritar e converter minha terra”.215

Esses intelectuais marcados pelo território da palavra, e principalmente, pela palavra escrita que torna viável a relação das suas visões de mundo com a sociedade, tomavam, muitas vezes, os anseios dos grupos dominantes como interesses gerais. Assim, de certa forma, estavam defendendo uma concepção de grupo, visto que “a grande parte dos intelectuais faz parte das elites”.216 E, como ocupavam o lugar da legitimidade de maneira autorizada e com autoridade de quem pode falar e escrever ao ‘povo’, lançavam os seus ideais

212

SAID, Edward W. Representações do Intelectual: as conferências de Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, p. 25, 2005.

213

SAID, Edward W. Representações do Intelectual: as conferências de Reith de 1993. Tradução de Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, pp. 14-15, 2005.

214

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: Intelectuais, arte e videocultura na Argentina. Tradução de Sérgio Alcides. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, p. 163, 2006.

215

MELO, Mário. Aqui e Ali. Folha da Manhã, 15 de janeiro de 1956, p. 04. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.

216

SIRINELLI, Jean-François. Os Intelectuais, In: Por Uma História Política. René Rémond (Organizador). Tradução de Dora Rocha. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da FGV, p. 235, 2003.

sobre a sociedade. Acreditavam com isso que os seus escritos, as suas idéias, tinham um caráter pedagógico e disciplinador para a população.