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1- AS METAMORFOSES DE MOMO: ECOS DE UMA FESTA

1.2 A Festa Carnavalesca em Recife e suas múltiplas práticas

1.2.1 Rastreando sinais

E o carnaval em Recife quando ele começou? Quais os mecanismos que engendraram a esta festa a condição de símbolo da identidade cultural pernambucana? A fim de responder a essas e outras questões e de possibilitar um maior entendimento dos três dias que antecedem a quaresma, optei por realizar uma breve retrospectiva histórica dos festejos, indicando os principais momentos que instituíram a cidade do Recife como palco de um dos mais importantes carnavais no Brasil. No transcorrer do processo histórico a festa carnavalesca passou por inúmeras formas de organização e estrutura, agregou diferentes sujeitos sociais e promoveu diversos modos de convívio e apropriação aos dias dedicados ao deus da galhofa.

Na sucessão de um tempo fluido e contínuo, o historiador depara-se com o desafio de estabelecer referencias sem escorregar no puro arbítrio. Sei que não podemos falar de qualquer objeto ou prática cultural em qualquer época, é necessário que existam condições históricas mínimas para que haja o discurso. E mais, as práticas culturais não tiveram o mesmo sentido durante todo o processo histórico, já que se parcela significativa dos foliões saiam às ruas para participar dos festejos carnavalescos, provavelmente, construíam para ele significados radicalmente diferentes.

Entretanto, acho relevante questionar as práticas que se associam aos começos da festa carnavalesca no Brasil e em Pernambuco. E pelo que pude compreender é por meio das práticas do entrudo60 que a maioria dos pesquisadores que se dedicaram a analisar os dias de momo pontuaram os começos desses festejos no Brasil.61Em Pernambuco assim a pesquisadora Rita de Cássia Barbosa Araújo descreveu essa prática festiva:

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O entrudo segundo a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz este era um folguedo peculiar dos três dias que antecediam a quaresma e consistia basicamente numa brincadeira do molha – molha, onde famílias invadiam a casa uma das outras e promoviam vigorosos combates com água. PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O

carnaval brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo, Brasiliense, p. 45, 1992. No entanto, de acordo com a

historiadora Maria Clementina Pereira Cunha aquilo que costumeiramente se rotulou de uma brincadeira que consistia, basicamente, no molha-molha generalizado é muito mais do que isso, incorporava uma série de folguedos de sentidos sociais muito definidos, dependendo da região, cidade ou grupo de indivíduos que o praticava. CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca entre

1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, p. 17, 2001. 61

Sobre isso ver os trabalhos de: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. Festas: máscaras do tempo: entrudo,

mascarada e frevo no carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996; CUNHA,

Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; LAZARRI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto

Alegre (1870 – 1915). Campinas, SP: Editora da UNICAMP / Cecult, 2001;PEREIRA, Leonardo Affonso de

Miranda. O Carnaval das Letras. Literatura e Folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ªed. rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004; PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. O carnaval brasileiro, o vivido e o mito. São Paulo, Brasiliense, 1992.

O divertimento – sentido de alegria e de êxtase para grande parte da população, embora desagradassem a alguns – consistia principalmente no jogo de atirar água uns aos outros. Para este intento, utilizavam quartinhas, jarras, vasilhas, seringas e qualquer tipo de recipiente que pudesse conter o precioso líquido. O banho d’água era complementado com farinha do reino, goma, tauá e pó. Por vezes, a brincadeira degenerava e materiais pouco recomendados entravam no combate corpo a corpo: urina, lama, frutas podres. Porém, o objeto mais apreciado e mais cobiçado, evocação mesma do brinquedo, eram as delicadas e perfumadas limas, laranjas e limões de cheiro. Também era prática usual dos jogos de Entrudo pregar peças entre amigos e exercitar a troca de pulhas, gracejos e facécias. 62

As práticas do entrudo tão peculiares no Brasil, a partir de meados do século XIX começaram a enfrentar críticas mais incisivas por parte de cronistas carnavalescos e intelectuais em diferentes cidades como foi o caso de Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre.63A reivindicação do fim da brincadeira das molhadelas era assunto obrigatório nos jornais, o ‘carnaval’ deveria ocupar o espaço do antiquado jogo do entrudo. Os dias de festa que antecedem a quaresma deveriam ser alinhados semelhantemente ao que era praticado em cidades européias como Nice e Veneza. O nascimento das sociedades carnavalescas no Brasil era saudado como o início de uma reforma de costumes que colocaria a cidade do Recife e as suas congêneres à altura das demais urbes civilizadas do mundo.

E segundo a historiadora Maria Clementina Pereira Cunha foi a partir desse período – final do século XIX - que a palavra ‘carnaval’ passou a designar ‘préstitos, bailes, batalhas de confete e outras práticas mais recentes, às quais se atribuía superioridade em face dos folguedos rudes e incultos do entrudo’.64Antes disso, tanto o carnaval como o entrudo estavam associados à mesma coisa, ou seja, ao período marcado por um conjunto de brincadeiras e folguedos realizados quarenta dias antes da páscoa.

Foi a partir da condenação das autoridades políticas e do combate de alguns cronistas carnavalescos a essa forma de se comemorar a ‘festa da carne’65 – entendida por esses como

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ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. Op. Cit. p. 119. Grifos da autora.

63

Sobre isso ver os trabalhos de: [Porto Alegre] LAZARRI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval

em Porto Alegre (1870 – 1915). Campinas, SP: Editora da UNICAMP / Cecult, 2001; [Rio de Janeiro] CUNHA,

Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras.

Literatura e Folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ªed. rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004;

[Recife] ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. Op. Cit.

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CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e

1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 25. 65

Mesmo combatido pelas autoridades políticas em diversas cidades o entrudo permaneceu participando dos festejos carnavalescos, convivendo com outras práticas de se viver e fazer a folia de momo, como demonstra os trabalhos de: [Porto Alegre] LAZARRI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre

(1870 – 1915). Campinas, SP: Editora da UNICAMP / Cecult, 2001; [Rio de Janeiro] CUNHA, Maria

Clementina Pereira. Ecos da Folia. Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras. Literatura e

Folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ªed. rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004; [Recife]

um jogo sujo e selvagem, que fomentava práticas e sentimentos indecentes, excessivos e próprios da loucura, e dessa forma, destoariam dos padrões de civilidade que o Brasil queria se enquadrar - é que pregou-se a distinção entre carnaval e entrudo. A partir desses dias o período que antecede a quaresma passou a ser denominado de carnaval, - com bailes, máscaras, confetes, serpentinas, desfiles das grandes sociedades, concursos de fantasia, mascarada... – e as práticas da molhadela, de entrudo.

Mas, no entanto, não podemos direcionar os (nossos) olhares para esses dias de momo e procurar neles uma festa marcada por uma sucessão temporal e evolutiva. O carnaval não é uma prática homogênea, nem os padrões determinados para se brincarem a festa foram executados rigorosamente, nem tampouco existe um substrato comum a todos os seus participantes. As práticas festivas momescas vividas pelos foliões, no transcorrer do processo histórico, receberam sentidos e significados ínfimos. E mesmo combatido as práticas do entrudo (molha-molha / mela-mela) permaneceram, como demonstrarei mais adiante quando analisar a folia recifense entre 1955 e 1972.

As identidades culturais elaboradas para os dias de momo em diferentes partes do país são questões historicamente datadas e construídas. E o pesquisador que se dispõe a analisar as práticas festivas carnavalescas deve atentar para esse fato e, procurar compreender as especificidades da festa de acordo com o lugar em que foi praticada, bem como interpretar os diferentes significados que foram construídos pelos diversos foliões que se divertiam alegremente nas ruas.