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O Campo Intelectual em Debate

2 – A TRADUÇÃO DA TRADIÇÃO: intelectuais e a presença das escolas de samba no carnaval em Recife.

2.4 O Campo Intelectual em Debate

Alguns estudos têm compreendido a atividade dos sujeitos que escreviam nos jornais, sejam eles jornalistas ou mesmo cronistas, como uma forma ideológica de intervenção nas práticas de carnaval das camadas mais baixas da sociedade a serviço de um projeto elitista.329 Nessa perspectiva historiográfica, esses sujeitos são tidos como os “pedagogos da civilização de Momo”, ideólogos que pretendiam moldar a festa, relegando ao esquecimento as práticas

328

Em entrevista realizada por mim, com o jornalista Valdi Coutinho em 24 de junho de 2010.

329

COUTINHO, Eduardo Granja. Os Cronistas de Momo: imprensa e carnaval na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2006.

que não serviam aos moldes do que entendiam como ‘tradicionalismo histórico’ e ameaçava o bom gosto e a sensibilidade das elites dominantes.330

Entretanto, a imprensa do Brasil, mesmo controlada pelas elites dirigentes, representa um dos espaços de luta da sociedade civil pela cultura. Não se deve apenas observá-la como um órgão unilateral de atuação no carnaval, servindo aos interesses dos dominantes, já que, por meio dos jornais, as camadas marginalizadas pela sociedade, com seu caráter irreverente, burlesco, e muitas vezes crítico, conseguiam expressar as suas aspirações, os seus desejos, os seus anseios, mesmo que de forma sutil.

Os jornalistas Mário Melo, Aníbal Fernandes, Alberto Campelo, entre outros, produziam seus escritos dialogando com seus iguais.331 Numa rede de relações de forças que representava os interesses dos dominantes. Ocupavam uma posição de prestígio e legitimidade e assim foram ouvidos. Algumas vezes negligenciavam todo tipo de poder, pois o representavam de outra forma, como o poder ideológico, que se faz presente na sociedade, não sobre os corpos, nem sobre a economia, mas sobre as ideias, sobre as visões de mundo e concepções de sociedade mediante o uso da palavra.332

Esses intelectuais não levavam em consideração que parcela significativa dos foliões em Recife não correspondia com a proposta de carnaval desejada por eles e por parte das elites dominantes da cidade. Colocavam-se como condutores da direção que a sociedade deveria seguir. Os sambistas eram pessoas ‘simples’, que não possuíam a legitimidade da fala, não tinham a autoridade de escrever nos jornais, e por isso, muitas vezes, não eram ouvidos. Entretanto, as massas não necessitam dos intelectuais para saber, como diz Foucault, “elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, que proíbe, invalida esse discurso e esse saber”.333

Parte dos ‘homens de letras’ de Recife acreditava que podia modificar o pensamento dos construtores de samba e dar voz a esses indivíduos oprimidos pela ignorância, privados de cidadania, e, muitos deles, marcados pelo preconceito da cor da pele. Entretanto, esses

330

CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca (1880 – 1920). São Paulo: Cia das Letras, p. 181, 2001.

331

Aqui e Ali. Folha da Manhã, 14 de janeiro de 1956, p. 04; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 17 de janeiro de 1956, p. 04; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 18 de janeiro de 1956, p. 04; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 21 de janeiro de 1956, p. 04; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 21 de fevereiro de 1956, p. 04. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

332

BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: UNESP, p. 11, 1997.

333

FOUCAULT, Michel. Os Intelectuais e o poder: Conversa com Michel Foucault e Gilles Deleuze, In:

Microfísica do Poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. 26. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, p.

intelectuais não sabiam quais eram os interesses dos sambistas, por que eles agiam daquela forma e qual o significado que davam a sua prática cultural.

Pensaram que sabiam mais do que as pessoas comuns e que esse saber lhes outorgava um só privilégio: comunicá-lo e, se preciso fosse, impô-lo a maiorias cuja condição social as impedia de ver com clareza e, consequentemente, trabalhar no sentido e seus interesses.334

Para que se possa entender o jogo dessas relações em que esses indivíduos estavam inseridos, é preciso primeiro “compreender o campo com o qual e contra o qual cada um se fez”.335 O espaço no qual sambistas e intelectuais estiveram inseridos pode ser interpretado através da análise de campo intelectual cunhada por Bourdieu. Este espaço é marcado por lutas, por disputas, e cada indivíduo se utiliza das armas que possui a partir das relações de forças estabelecidas.

[...] cada um dos agentes investe a força (o capital) que adquiriu pelas lutas anteriores em estratégias que dependem, quanto à orientação, da posição desse agente nas relações de força, isto é, de seu capital específico.336

No período em que empreendi a pesquisa (1955–1972), interpreto um campo

intelectual tal qual Pierre Bourdieu o definiu. Conforme este autor, para que exista esse

campo, há a necessidade das lutas em torno de um objeto em questão uma prática de carnaval e de sujeitos dotados do habitus interessados em entrar nessa disputa. No caso do trabalho aqui em destaque, essa disputa foi travada por sambistas e intelectuais.

Um campo, e também o campo cientifico, se define entre outras coisas através da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos que são irredutíveis aos objetos de disputas e aos interesses próprios de outros campos (não se poderia motivar um filósofo com questões próprias dos geógrafos) e que não são percebidos por quem não foi formado para entrar nesse campo “cada categoria de interesses implica à indiferença em relação a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados”.337

Outra questão que está em jogo nas lutas é a definição dos limites do próprio campo

intelectual, ou seja, a participação legítima ou não de certos indivíduos, se eles possuem ou

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SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: Intelectuais, arte e vídeo cultura na Argentina. Tradução de Sérgio Alcides. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, p. 159, 2006.

335

BOURDIEU, Pierre. Esboço de Auto análise. Tradução de Sérgio Miceli. São Paulo: Companhia das Letras, p. 40, 2005.

336

BOURDIEU, Pierre. Campo Intelectual: um mundo à parte, In: Coisas Ditas. Tradução: Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim; revisão técnica Paula Monteiro. – São Paulo: Brasiliense, p. 172, 2004.

337

BOURDIEU, Pierre. Campo Cientifico, In: Pierre Bourdieu Sociologia.Renato Ortiz (org.). São Paulo: Ática, p. 89, 1983.

não a legitimidade de estarem inseridos nas disputas. Nesse ínterim ocorre o desejo de excluir certos sujeitos do debate, recusar-lhes a existência legítima, de excomungá-los. Tal exclusão simbólica tem o objetivo de dar ao sujeito excluído do campo, a não legitimidade de sua prática.338 Isto é, intelectuais procuravam retirar os sambistas do debate sobre a prática de carnaval legítima para a cidade do Recife.

O campo intelectual é o espaço da luta concorrencial. O que está em jogo é o monopólio da autoridade, definida enquanto a capacidade de falar e de agir legitimamente, que é outorgada socialmente a um agente determinado. O fato é que todas as práticas colocadas em execução estão interessadas em adquirir a capacidade e legitimidade da autoridade intelectual.

Quando Mário Melo e muitos dos seus congêneres afirmavam que escolas de samba não faziam parte do conjunto do “tradicionalismo histórico do carnaval na cidade do Recife”, eles não falavam sozinhos. Buscavam uma rede, dialogavam com vários indivíduos, em sua maioria, escritores e jornalistas como eles. Dito de outra forma, esses intelectuais foram em busca dos fios que podiam legitimar seus escritos.

Em suas matérias, buscavam associar os seus pensamentos ao de vários outros jornalistas, entendidos por eles como ‘defensores da legitima tradição carnavalesca recifense’, mesmo alguns sendo desafetos históricos, como é o caso das disputas entre os jornalistas Mário Melo e Aníbal Fernandes339. Entretanto, a estratégia era legitimar suas afirmações, se inserir no jogo das disputas, mas não desvirtuando as regras do jogo.

Carnaval Xinfrim por causa da Rua da Guia

A atitude dos marmeladeiros da Rua da Guia, de emprestar o carnaval folclórico recifense com as exóticas e indesejáveis escolas de samba, foi condenada de público por vários jornalistas: Aníbal Fernandes, Valdemar de Oliveira, Alberto Campelo, José do Patrocínio. Condenação positiva: uns brandos, pacientes, conforme seu temperamento, outros furibundos, trepidantes. Nenhuma voz a favor dos marmeladeiros. Se, por desgraça, não tivermos o carnaval de rua, a culpa única e exclusiva será dessa pobre gente da Rua da Guia. [...] Condenando também, o que sempre de público condenei, tanto que a Federação Carnavalesca jamais as admitiu em seu grêmio essas escolas de samba, cujo padrão, no Rio foi a de <Mimosos

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BOURDIEU, Pierre. Campo Intelectual: um mundo à parte, In: Coisas Ditas. Tradução: Cássia R. da Silveira e Denise Moreno Pegorim; revisão técnica Paula Monteiro. – São Paulo: Brasiliense, p. 175, 2004.

339

Aqui e Ali. Folha da Manhã, 17 de janeiro de 1956, p. 04, dialoga com o jornalista do Diário de Pernambuco Aníbal Fernandes um dos seus desafetos históricos; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 18 de janeiro de 1956, p. 04, dialoga com o jornalista do Correio do Povo Alberto Campelo; Aqui e Ali. Folha da Manhã, 20 de janeiro de 1956, p.04, dialoga com o jornalista do Correio do Povo José do Patrocínio. Aqui e Ali. Folha da Manhã, 21 de janeiro de 1956, p. 04, dialoga mais uma vez com o jornalista do Diário de Pernambuco, Aníbal Fernandes. Crônica da cidade: prestigiemos o que é nosso. Jornal do Commercio, 08 de janeiro de 1956, p. 02, dialoga com o artigo de Aníbal Fernandes, publicado no Diário de Pernambuco. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

Colibris> - quartel general dos invertidos sexuais – Nelson Ferreira estranha que a Associação dos Cronistas Carnavalescos venha contemplando.

<escolas de samba que se exibem no Recife, com dotações e auxílios superiores aos destinados aos maracatus, caboclinhos, bumba-meu-boi, do carnaval do Recife.

Como se vê, mais uma voz autorizada contra os núcleos eleitorais, sob rótulo de Escolas de Samba, dos fabricantes de marmeladas da Rua da Guia.340

Para escrever suas crônicas os intelectuais precisavam estar envolvidos num circuito de sociabilidade que, ao mesmo tempo em que lhe situe num mundo cultural, os permitam interpretar o mundo político e social de seu tempo. Assim, justificava-se a premissa de que o relevante não era somente a condição de ‘ser intelectual’, mas sim a sua participação numa rede de contatos, pois é ela que demarca a inserção de um intelectual no mundo cultural. E, como bem salientou a historiadora Ângela de Castro Gomes, “intelectuais são, portanto, homens cuja produção é sempre influenciada pela participação em associações, mais ou menos formais, e em uma série de outros grupos, que se salientam por práticas culturais de oralidade e/ou escrita”.341

Participar do campo intelectual para Pierre Bourdieu significa incorporar o habitus socialmente construído, compartilhar da illusio342 que atrai, congrega determinados indivíduos

e os afasta de tantos outros, inseridos numa disputa pela luta legítima por prestígio, reconhecimento, poder e hegemonia.343 Assim, o que é interpretado como importante e interessante é o que tem chances de ser reconhecido como tal perante os pares, pois é a partir dos olhos de seus outros que o agente produtor e o seu produto se tornavam importantes e interessantes para e dentro do campo intelectual em questão.344 Sobre isso, o jornalista Mário Melo buscou a legitimidade de suas afirmativas contra a presença do samba no carnaval em Recife, dialogando com seus pares e procurando ratificar sua posição ao evidenciar a opinião de outros jornalistas.

340

MELO, Mário. Crônica da Cidade: Carnaval xinfrim por causa da Rua da Guia. Jornal do Commercio, 22 de janeiro de 1956, p. 02. (Departamento de Microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ).

341

GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre, In: Escrita

de Si, Escrita da História. Ângela de Castro Gomes (organizadora). Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 51, 2004. 342

A illusio está intimamente associada à existência do campo, pois é a partir “da vontade de indivíduos socialmente predispostos a se comportarem como agentes responsáveis, a arriscarem seu tempo, seu dinheiro, sua honra, para perseguir os interesses e objetivos e obter os proveitos decorrentes, que visto, de outro ponto de vista podem parecer ilusórios, o que afinal sempre são, na medida em que repousam sobre aquela relação de cumplicidade ontológica entre o hábito e o campo que está no princípio da entrada no jogo, da adesão ao jogo, da

illusio”, In: BOURDIEU, Pierre. Lições de Aula. São Paulo: Ática, p. 52, 1994. 343

BOURDIEU, Pierre. Lições de Aula. 2. ed. São Paulo: Ática, p. 52, 1994.

344

BOURDIEU, Pierre. Campo Cientifico, In: Pierre Bourdieu Sociologia. Organizado por Renato Ortiz. São Paulo: Ática, p. 123-125, 1983.

Prestigiemos o que é nosso

Praz-me ver que o velho ‘Diário de Pernambuco’ esposa o ponto de vista da Federação Carnavalesca, no concernente a escoimar de nossa festa folclórica as excrescências que a maculam. Tendo o município oficializado, o Carnaval, dando às Escolas de Samba o mesmo tratamento que ao frevo, ao maracatu e aos caboclinhos, organizações tipicamente recifenses, o que resultou dum contubérnio do Prefeito Djair Brindeiro com a gente da Rua da Guia: os diretores da Federação Carnavalesca, em sinal de protesto, renunciando coletivamente, não chegando a tomar efetiva a renúncia por solicitação do Prefeito Pelópidas Silveira, que prometeu envidar esforços para o restabelecimento em sua pureza. [...] Foi justamente para restaurar e estimular o tipicamente recifense, quando se procurava cariocar a nossa festa característica, que surgiu a Federação Carnavalesca, tendo conseguido, quando possível, reerguer e animar em sua pureza nossos costumes. A própria oficialização do carnaval pelo Município foi de iniciativa da Federação. Infelizmente, saiu o tiro pela culatra, porque o anteprojeto da Prefeitura, ao tempo do senhor José Maciel, foi para o limbo da Câmara dos Vereadores, donde emergiu um substitutivo, colocando no mesmo pé de igualdade o que era puro e o que era espúrio, e fixando a interferência de vereadores na organização dos festejos populares. Foi contra tudo isso que a Federação protestou, tendo seu protesto encontrado ressonância ao Sr. Pelópidas Silveira, que prometeu diligenciar a extirpação das impurezas existentes na lei de oficialização. E é com agrado que vejo estar vibrando a fibra pernambucana no velho Diário. Povo que não valoriza o que é seu, tipicamente seu; que deixa enfraquecer os elos que o prendem ao passado; que não presa suas tradições; que apreço não dá a seus costumes é povo em degenerescências. 345

Nesse sentido, intelectuais como Mário Melo, Aníbal Fernandes, Valdemar de Oliveira, Alberto Campelo, entre outros, mesmo em meio as suas disputas pessoais, estavam inseridos numa rede de relações, na qual dialogavam e legitimavam uns aos outros quando escreviam nos jornais do Recife sobre os festejos momescos. Da mesma forma que se legitimavam, procuraram negar aos sambistas o direito da participação legítima diante do debate de uma prática de carnaval na cidade.

No entanto, mesmo combatidos diante da tentativa de silenciamento de sua prática, os sambistas ‘gritaram’, movimentaram-se, defenderam suas convicções e escolhas frente ao carnaval do Recife. Procuravam com isso, demonstrar que não eram exilados em seu próprio Estado pelo fato de escolherem o samba como a manifestação cultural que representariam e significariam durante o reinado de momo. Assim, convido você leitor a continuar a leitura deste trabalho e visualizar comigo no próximo capítulo algumas histórias e personagens que construíram a prática das escolas de samba no carnaval da capital pernambucana. Vamos lá, é tempo de sambar! Recife abriu as portas para a folia!

345

MELO, Mário. Crônica da Cidade: prestigiemos o que é nosso. Jornal do Commercio, 08 de janeiro de 1956, p. 02. (Departamento de Microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ).