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1- AS METAMORFOSES DE MOMO: ECOS DE UMA FESTA

1.3 O carnaval em Recife de 1955 a 1972: identidades e conflitos

1.3.2 Os carnavais da Saudade

‘Ô Ô saudade /Saudade tão grande / Saudade que eu sinto /Do Clube das Pás, do Vassouras /Passistas traçando tesouras /nas ruas repletas de lá [...] Que adianta se o Recife está longe /E a saudade é tão grande [...]Que eu até me embaraço / Recife está dentro de mim. ’

Frevo Nº 1, Antônio Maria, 1951

Ai que saudade vem do meu Recife, / Da minha gente que ficou por lá / Quando eu pensava, chorava, falava / Dizia bobagem, marcava viagem, / Mas nem resolvia se ia...

Frevo Nº 2, Antônio Maria, 1958

Voltei, Recife, / Foi a saudade que me trouxe pelo braço, / Quero ver novamente, / Vassoura na rua abafando / Tomar umas e outras e cair no passo[...].

Voltei Recife, Luiz Bandeira, 1959.

Nesses anos poucos temas pareceu-me tão recorrente quanto o tema da saudade. Inúmeras matérias nos jornais ‘clamavam’ por uma festa que não existia mais, por aqueles tempos que não sei exatamente quando foram, mas que se faziam presentes entre os carnavais de 1955 e 1972, como os ‘ecos’ de uma festa imemorial. No período do recorte temporal pude compreender que havia um discurso nos jornais que o carnaval não era mais o mesmo e passava por transformações que o levariam a morte. E dentro desse cenário de mudanças que a festa passava, os poucos anos que os carnavais foram louvados, a crônica especializada, assemelhava-os aos felizes dias de momo de outrora.

O ‘bom carnaval’ era o carnaval do passado. Pelo que pude compreender na leitura dos jornais que circulavam na época, muitos foliões, sejam eles anônimos ou mesmo personalidades ilustres, tinham certa dificuldade em aceitar as mudanças que a festa momesca era palco. As transformações dos dias de momo eram, na maioria das vezes, vista como a sua morte.158 Entretanto, se evidentemente ‘novas’ práticas de se fazer a folia estavam sendo

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Nelson Ferreira: vamos colocar o carnaval do Recife em seu lugar de destaque. Diário da Noite, 13 de janeiro de 1971, 1º caderno, p. 03. Carnaval entre a COC e a EMETUR: onde está a salvação. Diário da Noite, 16 de janeiro de 1971, 1º caderno, p. 03. Capiba: nosso carnaval não está morrendo, mas sofrendo as transformações do tempo. Diário da Noite, 26 de janeiro de 1971, 1º caderno, p. 03. O frevo não está morrendo, mas vai muito mal. Diário da Noite, 16 de fevereiro de 1971, 1º caderno, p. 02. Carnaval do Recife ameaçado de fracasso total.

gestadas, bem como as ruas estavam repletas de ‘novos’ e diferentes foliões, que atribuíam os mais diferentes significados para o festejo, possivelmente, outra festa estava sendo construída. E o ‘velho’ carnaval saudado por muitos nos jornais, de fato, estava se transformando.

O tema da saudade foi (é) um tema recorrente não só nas memórias sobre o carnaval, bem como a respeito da própria história do Recife. O historiador Raimundo Arrais demonstra em seus estudos como os escritos de inúmeros intelectuais procuravam associar a capital pernambucana às glórias do pretérito.159 Havia uma clara intenção nessas narrativas de associar a cidade a acontecimentos históricos importantes do passado e pelo qual gostariam que a urbe fosse lembrada. E essas questões, possivelmente, também tiveram uma associação com o carnaval, como exemplo, os inúmeros frevos que foram compostos tendo como inspiração o tema da saudade.

A imagem de um carnaval carregado de passado tão presente em muitas matérias nos jornais não era aleatória. Os cronistas quando produziam seus escritos atribuíam sentidos ao carnaval. Suas percepções estavam presas a algumas circunstâncias do pretérito, seus modos de verem e apreciarem os festejos carnavalescos foram gerados num momento específico da história do Recife. E muitas de suas memórias sobre a folia foram frutos da apropriação de lembranças que, talvez, nem eram suas, mas foram incorporadas, somadas ao processo de construção de uma memória coletiva sobre os festejos na cidade.

As palavras ‘saudade’ e ‘saudosismo’ tão recorrentes nos jornais, costumeiramente, apareciam atrelado a elas o tema da morte de momo. Provavelmente, essa morte que alguns jornalistas percebiam na festa, estava associada às próprias mudanças que os dias de folia na capital pernambucana passavam. 160E entre essas, provavelmente, tinha-se o destaque dado Diário da Noite, 04 de janeiro de 1972, 1º caderno, p. 03. Porque estão boicotando o nosso frevo? Diário da Noite, 15 de janeiro de 1972, 1º caderno, p. 06. Mudou a folia ou mudaram os homens? Diário da Noite, 22 de

janeiro de 1972, 1º caderno, p.06. Comércio se ressente também com decadência do carnaval. Diário da Noite, 01 de fevereiro de 1972, 1º caderno, p. 03. Prefeito forma comissão para salvar carnaval pernambucano. Diário

da Noite, 24 de fevereiro de 1971, 1º caderno, p. 03. Fracasso do frevo: a culpa é mesmo da COC? Diário da Noite, 24 de fevereiro de 1971, p. 01, 2ª edição. O fim do carnaval. Diário da Noite, 17 de janeiro de 1972, 1º

caderno, p. 04. Quem é o culpado da morte do carnaval pernambucano? Diário da Noite, 22 de janeiro de 1972, 1º caderno, p. 06. Ex rei momo: antigamente era melhor. Diário da Noite, 15 de fevereiro de 1969, 1º caderno, p. 06. Velho saudosista diz que bom era carnaval antigo. Diário de Pernambuco, 28 de janeiro de 1972, 1º caderno, p. 06. Relembrando velhos carnavais. Diário de Pernambuco, 12 de fevereiro de 1972, p. 05, suplemento cultural. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.

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Sobre isso ver: ARRAIS, Raimundo. O Pântano e o Riacho: a formação do espaço público no Recife do

século XIX. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP, 2004; ARRAIS, Raimundo. A capital da Saudade: destruição e reconstrução do Recife em Freyre, Bandeira, Cardozo e Austragésilo. Recife: Ed. Bagaço, 2006. 160

Prefeito forma comissão para salvar carnaval pernambucano. Diário da Noite, 24 de fevereiro de 1971, I caderno, p. 03. O fim do carnaval. Diário da Noite, 17 de janeiro de 1972, I caderno, p. 04. Quem é o culpado da morte do carnaval pernambucano? Diário da Noite, 22 de janeiro de 1972, I caderno, p. 06. Carnaval: ontem e hoje. Jornal do Commercio, 20 de fevereiro de 1966, p. 04. Carnaval a vista. Jornal do Commercio, 21 de janeiro de 1970, I caderno, p. 04. Carnaval de antigamente. Diário da Noite, 10 de fevereiro de 1965, p. 07. Folia no passo da decadência. Jornal do Commercio, 22 de janeiro de 1969, 2º caderno, p. 01. Carnaval é diversão do

pelos foliões ao desfile das escolas de samba, ao corso, ao molha-molha, ao escape livre, e a diversas outras práticas carnavalescas que destoavam, segundo parcela dos intelectuais, do ‘tradicionalismo histórico dos festejos de momo’ em Recife.

Muitos desses intelectuais quando observavam os carnavais no Recife, entre 1955 e 1972, possivelmente, não viam mais a folia que aprenderam a gostar, nem a que ‘brincaram’ alegremente em sua infância, e provavelmente, isso lhes causava estranheza o que os levava a escreverem condenando a festa que estava sendo praticada.161 Eles não se viam mais naquele carnaval e nem o reconheciam como os festejos que aprenderam a gostar, e tão pouco o que levou a cidade do Recife a ter uma das principais folias do Brasil.

O carnaval agoniza no grande Recife. Se os modestos clubes ainda ensaiam um débil esforço no sentido de reconstruir a alegria do passado, nas ruas a folia morre paulatinamente. Apenas os velhos moradores têm algo a contar, lembrando-se dos festejos de outrora consagravam o império de momo. Os jovens têm a atenção voltada para o carnaval do Recife, e a animação dos bailes carnavalescos de suas cidades já não conseguem entusiasmar como há três anos atrás. Vários fatores têm sido apontados como causas dessa decadência: o desinteresse dos administradores municipais; a falta de recursos econômicos; o melhoramento das rodovias, ligando ainda mais os pequenos centros à capital; e até mesmo o desgaste progressivo que estaria minando o carnaval em Pernambuco.162

Segundo pude depreender da análise das matérias dos jornais, o principal acontecimento que os cronistas apontavam como a ‘causa’ da morte de momo foi a ‘decadência’ do carnaval de rua. Na visão de muitos intelectuais a força e a alegria da folia nas ruas do Recife estavam a cada ano minguando mais e mais. E o desfile das agremiações na passarela, bem como o carnaval dos clubes era destacado, por parcela da intelectualidade, como as principais causas do fracasso da festa.