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Capiba e Nelson Ferreira: ‘ícones do frevo’ e o debate a respeito da presença do samba no carnaval recifense

2 – A TRADUÇÃO DA TRADIÇÃO: intelectuais e a presença das escolas de samba no carnaval em Recife.

2.3 Práticas de carnaval em disputas

2.3.3 Capiba e Nelson Ferreira: ‘ícones do frevo’ e o debate a respeito da presença do samba no carnaval recifense

Outro nome relevante no cenário da sociedade pernambucana da época e que apareceu nos jornais inserindo-se no debate sobre as disputas em torno do samba e do frevo no carnaval de Recife foi o músico e compositor Capiba290. Este foi aos periódicos, em alguns momentos questionar e em outros enfatizar a perseguição e a campanha sistemática de condenação feita por parte da intelectualidade contra as escolas de samba. A matéria publicada no Diário da

Noite em 1966 informava que para Capiba “essa história de diminuir samba em Recife era

besteira, o importante era tocar o que as pessoas queriam ouvir”291.

[...] Samba e Frevo

Um assunto tentamos conversar: a confusão criada em torno de se tocar mais frevo ou mais samba no carnaval pernambucano. Manifestou Capiba: - eu não quero falar sobre o assunto. Vejam que até os defensores do frevo estão fugindo do ponto de vista... Lourenço Fonseca Barbosa tem razão. Essa estória de 80% de frevo, 20% de samba nas festas carnavalescas, é uma palhaçada. Partiu de algum idiota, que pretendia também que as orquestras tocassem duas horas e meia de frevo e meia hora de samba em cada festa. Isso para evitar o domínio do samba sobre o frevo. Como se o requebrado carioca fosse páreo para o quente e contagiante ritmo pernambucano... A

289

FREYRE, Gilberto. Estará Certo? Diário de Pernambuco, 20 de fevereiro de 1972, p. 04, I caderno. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

290

Lourenço da Fonseca Barbosa, conhecido como Capiba, nasceu em 28 de outubro de 1904 na cidade de Surubim – PE. Filho de Severino Athanásio de Souza Barbosa de quem recebeu a influência musical. O apelido de ‘Capiba’ herdou do avô paterno. Desde criança começou a tocar instrumentos musicais. Ainda na infância mudou-se com a família para a Paraíba. Aos 26 anos de idade voltou para seu Estado natal, residindo em Recife onde passou a trabalhar no Banco do Brasil. Em 1938 formou-se em Direito, mas nunca chegou a exercer a profissão. Capiba foi um dos mais conhecidos compositores de frevo do país. Morreu no Recife em 31 de Dezembro de 1997. (ABRANTES, Teresa Maria Otranto. Capiba: a expressão da tristeza e da saudade na

máscara do folião. Recife: Bagaço, 2006). 291

Samba e frevo. Diário da Noite, 05 de janeiro de 1966, p. 02. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

posição de Capiba sempre foi a certa: as orquestras devem tocar o que os foliões gostarem. O resto é besteira e mais nada292.

Já numa outra matéria, agora publicada no Correio do Povo em 1956, que mais uma vez informava tratar-se da opinião do músico Capiba, este se coloca como contrário à oficialização de escolas de samba no carnaval em Recife. Questionava-se sobre o porquê da presença do samba na cidade quando o frevo no Rio de Janeiro não tinha espaço e nem propaganda, mencionando que “pernambucanos devem defender-se dessa intromissão e defender o seu símbolo máximo, o frevo”.

“O problema não é ser contra o samba e sim a favor do frevo”

[...] eu acho que a questão não é ser contra o samba; o problema é que nós pernambucanos devemos ser é a favor do frevo. O carioca está certo quando defende e faz propaganda do samba e errado quando proíbe o frevo. O pernambucano está errado porque quer a oficialização do samba e, mais errado ainda porque não dá a devida assistência do frevo293.

Os textos atribuídos a Capiba são reveladores de leituras e discursos diversos, de acordo com o espaço e a rede social que estavam inseridos, pois, em certo momento o músico não via problemas em se tocar samba no carnaval, em outro, achou errado oficializarem escolas de samba. Neste sentido, de acordo com determinadas condições, cada indivíduo problematiza seu mundo e valoriza determinados comportamentos que estão relacionados a certos conjuntos de práticas, visto que, “[...] cada individualidade é o lugar onde atua uma pluralidade incoerente (e muitas vezes contraditória) de suas determinações relacionais”.294

No ano de 1964, o jornalista Moysés Kerstman295, do Jornal do Commercio, iniciou uma campanha nos periódicos, nas rádios e nas emissoras de televisão da capital pernambucana para ‘defender’ uma maior valorização do que ele denominava de ‘música da terra’, ou seja, do frevo. Objetivava-se que fossem tocados nos clubes e nas rádios em torno de oitenta por cento de música ‘legitimamente pernambucana’, em detrimento dos ritmos sulistas. Posso interpretar que essa foi mais uma medida tomada para coibir o crescimento e a popularidade do samba na cidade do Recife.

292

Samba e frevo. Diário da Noite, 05 de janeiro de 1966, p. 02. Grifos meus. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

293

“Problema não é ser contra o samba e sim a favor do frevo”. Correio do Povo, 11 de fevereiro de 1956, p. 04. Grifos meus. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

294

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Artes de Fazer. 14 ed. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: RJ, Vozes, p. 38, 2008.

295

Sobre isso ver a matéria do Jornal do Commercio: Preservação do ritmo do nosso carnaval, diz Nelson Ferreira. Jornal do Commercio, 28 de janeiro de 1964, p. 15. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

Essa iniciativa do jornalista citado alcançou adeptos, entre eles, nada menos que uma figura conhecida como um ‘ilustre filho da terra’, o compositor Nelson Ferreira296, que veio aos jornais relatar sua satisfação pela campanha idealizada por Moysés Kerstman. Segundo Nelson Ferreira, a medida veio em momento oportuno, pois acreditava ser “lamentável, as festas na cidade serem animadas tanto por orquestras de frevo, como por escolas de samba”, bem como não entendia ‘porque tanto samba no carnaval pernambucano’.

[...] o povo deveria compreender que não se está fazendo um combate sistemático à música do carnaval carioca. <Entendo – afirmou – que o carnaval do samba e da marchinha da Cidade Maravilhosa também é brasileiro. Tudo é Brasil. Mas se termos essa coisa gostosa e impressionante que as outras terras não têm – precisamos resguardá-la >. <Infelizmente - prosseguiu – ainda deparamos, com certa tristeza, nos noticiários das festas carnavalescas, esta frase: uma orquestra de frevo e uma escola de samba animarão o frevo! É lamentável>.297

As afirmativas de Nelson Ferreira despertaram o interesse de outro compositor, Capiba. Como demonstrei anteriormente este em alguns momentos foi contra o samba, já em outros a favor. No ano de 1964 ele direcionou cartas à redação do Jornal do Commercio contrárias às colocações do Nelson Ferreira, que preconizavam a diminuição do samba nas festas e nas rádios da capital pernambucana. Eis o título da matéria “Capiba contrário às restrições de Nelson Ferreira ao samba”. O debate em torno do samba, promovido pelos ilustres compositores, teve direito a réplica e tréplica publicadas naquele jornal. Eis um trecho da carta atribuída a Capiba:

A meu ver, a introdução do samba no carnaval pernambucano é uma decorrência da marcha do tempo, que nem ele nem eu podemos parar. [...] Serão eles infiéis a Pernambuco? De modo nenhum, porque essas interpretações e mudanças são muito comuns no campo dos divertimentos populares. A meu ver, o caminho certo é não trabalhar contra o samba, é trabalhar a favor do frevo, mesmo porque, com campanha ou sem campanha, o samba se encarregará, ele mesmo, de furar as barreiras.298

296

Nelson Heráclito Alves Ferreira, nascido em dezembro de 1902, em Bonito no agreste pernambucano, popularmente conhecido como Nelson Ferreira, foi um destacado compositor e músico da MPB. Sua obra inicia- se na década de 1920. Sua primeira composição gravada foi “Borboleta não é ave”, lançada pela Odeon, em 1924. Nelson Ferreira pairou sobre a música de Pernambuco até a sua morte, em dezembro de 1976. Foi diretor musical de rádio e TV, maestro e arranjador. Sua marca está no catálogo da extinta Rozenblit, da qual foi, durante anos, diretor artístico. Sua obra, que está ainda por ser contabilizada, abrange desde valsas a frevos- canção. Notáveis foram suas séries de evocações. A primeira delas, Evocação, em 1957, foi sucesso nacional, e a música mais tocada no carnaval carioca. Seguiram-se outras evocações, marchas-de-bloco homenageando foliões do passado, e personalidades da vida pernambucana e brasileira. Para saber mais ver: BELFORT, Ângela Fernanda. Nelson Ferreira: o dono da música. 1.ed. Recife: COMUNIGRAF, 2009.

297

Nelson Ferreira não entende porque tanto samba em Pernambuco. Jornal do Commercio, 17 de janeiro de 1964, p. 06. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.

298

Capiba: não sou contra o samba, mas pelo frevo. Jornal do Commercio, 04 de fevereiro de 1964, p. 11. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE.

Capiba classificava a campanha contra o samba como um processo ‘odioso’. Lamentava que um ritmo considerado a marca da ‘brasilidade’ fosse tão perseguido como era em Recife. Discordava de Nelson Ferreira quando este afirmou que no Rio de Janeiro, o frevo não tinha uma acolhida satisfatória. E afirmava que não é combatendo o samba que o frevo ia ganhar notoriedade, mas deveriam as autoridades competentes criar mecanismos para que o ritmo pudesse desenvolver-se melhor. Finalizava, “não sou contra o samba, mas a favor do frevo”299.

Nelson Ferreira respondeu às críticas de Capiba enviando uma carta ao Jornal do Commercio, a qual solicitou que fosse publicada na íntegra. Nesta, ele afirmava que estava defendendo “a essência carnavalesca recifense”, e que se fosse odioso lutar pela “legítima tradição pernambucana”, que o classificassem como quisessem. É interessante destacar que no fim da carta Nelson Ferreira pede que os “verdadeiros pernambucanos” que o julguem. Vale salientar que o sentido de ‘verdadeiro pernambucano’ para o compositor, provavelmente, não estava atrelado aos que praticavam ou defendiam o samba.

[...] se dar apoio a uma campanha justa de maior execução da nossa música; se combater tudo aquilo que venha descaracterizar o carnaval da minha terra: se defender a tradição do maracatu, do caboclinho, da troça, do clube, do bloco e, sobretudo, a maior expansão do frevo, esse ritmo inconfundível no mundo inteiro, se tudo isso é campanha odiosa, que me julguem os verdadeiros pernambucanos! Receberei de coração e consciência tranquila toda e qualquer manifestação de aplausos ou ... de ÓDIO.300

Os ilustres compositores, como eram definidos pelos jornais da época, expuseram posicionamentos diversos sobre a presença do samba, bem como deixaram à mostra seus desafetos. Esses sujeitos lutavam por espaço e pelas lisonjas do ‘maior compositor de frevo’ do Estado. Esses embates servem para demonstrar como o carnaval não foi (é) um campo harmonioso, mas desdobramento de um processo repleto de tensões e conflitos. Ambos deixam também à mostra que os estudos que procuram situar as disputas em torno do samba e do frevo no carnaval recifense, não devem entender esses grupos de forma rígida. Os grupos não eram tão fixos e pré-determinados, havia movimentos e fluidez entre eles.

299

Capiba contrário as restrições de Nelson Ferreira ao samba no carnaval. Jornal do Commercio, 26 de janeiro de 1964, p. 15. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).

300

Preservação do nosso ritmo do nosso carnaval, diz Nelson Ferreira. Jornal do Commercio, 28 de janeiro de 1964, p. 15. (Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano – APEJE).