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As lutas empenhadas pelas mulheres trabalhadoras com a finalidade de conquistar, assegurar e ampliar sua atividade sindical, ou ainda, a defesa de sua participação dos âmbitos de poder, dos cargos de chefia dentro do sindicato, podem ser interpretadas sob a perspectiva teórica estabelecida por Arendt16, sobretudo o conceito de ação17, no sentido de

16 Embora seja imprescindível salientar a abstenção da autora quanto a reflexões acerca das relações (díspares)

entre mulheres e homens – ou ainda, conforme nos apresenta Adelman, citando Sennett, seja notório “o desprezo

da filósofa Hannah Arendt pelo feminismo” (ADELMAN, 2004: p. 151) – Arendt disponibiliza valorosos instrumentos teóricos cuja apropriação pode fortalecer nosso debate a respeito dessas relações e dos embates travados pelas mulheres trabalhadoras no movimento sindical pela conquista de poder nessas instituições.

que essas reivindicações almejam, em suma, a realização das potencialidades que caracterizam a condição humana.

Como argumenta Arendt, a ação e o discurso são as maneiras pelas quais os seres humanos manifestam-se uns aos outros, não como meros objetos físicos, já que a ação, dotada de um caráter revelador, que expressa as distinções e as singularidades que caracterizam a pluralidade dos agentes sociais, propicia a plena satisfação da condição humana (ARENDT, 1979: pp. 188-189). A afinidade entre ação e discurso deve-se ao fato de que boa parte dos atos assume a forma de discurso, ou seja, é através das palavras que os atos são anunciados pelos sujeitos. Portanto, essa qualidade reveladora do discurso e da ação desenvolve-se exclusivamente quando as pessoas estão na companhia de outras pessoas: a ação, para Arendt, só é possível na esfera pública.

Com a finalidade de pensar a possibilidade da ação política, Arendt (1981) analisa três atividades básicas que articulam a condição humana: o trabalho, a fabricação e a ação. Essas atividades permitem o aparecimento da política e conduzem à vita activa, uma vida partilhada por todos em um espaço público18. Em linhas gerais, o trabalho restringe-se ao

17 O que torna possível o desempenho da ação, como indica Arendt, é a possibilidade de ser livre, no sentido de

estar liberto de preocupações e anseios relativos ao suprimento das necessidades primárias do organismo vivo (ARENDT, 1979: p. 263). É em virtude desta premissa que o cidadão da polis grega era o sujeito por excelência do exercício da cidadania, por não ter como entrave a necessidade de desempenhar o trabalho, considerado uma atividade vil e relegada aos escravos. Entretanto, a autora não faz qualquer apontamento a respeito desta segmentação – seja para denunciá-la criticamente, seja para questioná-la e menos ainda para subvertê-la –, do fato de que a maior parcela da população da Grécia Antiga (mulheres, escravos, bárbaros, crianças) estava totalmente excluída da possibilidade de ser e vir a ser cidadã, o que se apresenta ainda mais problemático haja vista que Arendt orienta-se pela política grega como um ideal que teria muito a ensinar a todos no período contemporâneo. Para a realidade a que estamos nos referindo nesta pesquisa, a atuação das mulheres

trabalhadoras no SMABC, nos contextos socioeconômico, político e cultural que caracterizam os nossos dias e que se apresentam de modos bastante divergentes daqueles aos quais Arendt faz menção, o que se questiona é a divisão sexual de papéis sociais e a atribuição do trabalho reprodutivo às mulheres como uma tarefa

correspondente a sua natureza, o que acarreta, muitas vezes, sua exclusão das esferas de discussão política e, neste caso, do engajamento sindical.

18 Diferentemente de “todos” aos quais fazemos menção neste texto, a abrangência da política em Arendt tem de

ser problematizada. No capítulo que versa sobre a “Questão Social” (ARENDT, 1998), comentando a respeito da pobreza, definida como “um estado de constante carência e aguda miséria” (p. 48), com a multidão dos pobres vivendo em condição de sujeição à necessidade, oposta à liberdade e à gente de espírito livre, Arendt afirma que foi a multidão dos pobres quem conduziu à ruína as revoluções da Idade Moderna. A mudança de rumo, de um momento em que “as intenções originais dos homens da revolução” (p. 48) eram propiciar a fundação da liberdade, deu-se com a transformação dos Direitos do Homem nos direitos dos sans-cullottes, responsáveis, juntamente com os outros povos submetidos à condição de miséria também nas revoluções que viriam posteriormente à Revolução Francesa, tal qual aquele que ela classifica como “povo incompetente” (p. 52), referindo-se aos insurgentes da Revolução Bolchevique, “pela abdicação da liberdade em face dos ditames

da necessidade” (p. 49) e das “urgentes carências do povo” (p. 48). A “maldição da pobreza”, mais do que a penúria em si, seria a obscuridade, o fato que o pobre “simplesmente não é notado” (p. 55). A compaixão, que motivou os atores das revoluções modernas, manifesta-se para Arendt fora do domínio da política, que é o espaço para o desenvolvimento da “paixão da distinção” (pp. 55-56). A noção de política na perspectiva de Arendt é, portanto, muito excludente e acrítica, no sentido de que é pensada como a liberdade de poucos cidadãos dispensados, por suas posses, do trabalho exercido com a finalidade de assegurar a reprodução da vida. A preocupação com o bem-estar dos pobres teria submetido a liberdade à necessidade e conduzido à decadência

mundo das necessidades, voltado à manutenção da vida, atrelado ao processo biológico que assegura a subsistência e é repetido constantemente. Quanto à fabricação, é a atividade que transcende a vida dos indivíduos e cujos produtos não desaparecem com o uso. Já a ação, realizada na esfera pública pela fala, o que exige a presença de outros, é atividade através da qual os homens (e por que não, as mulheres) realizam plenamente sua condição. Para Arendt, é no momento em que os sujeitos se apropriam da ação que são fundados e preservados os corpos políticos, estabelecendo as condições para a história.

Arendt (1990) afirma que a esfera pública é consistentemente fundamentada na lei da igualdade, enquanto a esfera privada é marcada por significativa desigualdade e submissão. A igualdade, para a autora, não nos é dada, sendo resultante da organização humana orientada pelo princípio da justiça19. Entretanto, a rígida demarcação de fronteiras entre as esferas pública e privada que a análise de Arendt estabelece deve ser superada em nossa análise: a ação política que as mulheres trabalhadoras empreendem em seus cotidianos envolvem temas que intersecionam ambas as esferas. O envolvimento das mulheres trabalhadoras com a atuação sindical refuta a delimitação do espaço doméstico – o âmbito da reprodução, com as preocupações acerca dos cuidados da casa e da família – como aquele ao qual as mulheres estariam predestinadas por sua vocação natural, contraposto ao espaço sindical, na esfera pública – que, juntamente com o âmbito da produção, compreenderiam os domínios reservados aos homens. Essa separação entre o privado e o público é responsável por fortalecer a segregação que estabelece, em limites opostos, o que é apropriadamente feminino, de um lado, e o que é apropriadamente masculino, de outro lado.

Quando almejam e empenham-se pelo acesso e desempenho da ação política sindical, as mulheres trabalhadoras subvertem a divisão de papéis sociais e contestam a exigência do exercício unilateral das tarefas que a divisão sexual do trabalho designa a elas, além de controverter, consequentemente, a cisão entre a esfera privada e a esfera pública. São incorporadas, no debate político, dinâmicas que se passam nas esferas privadas20. A ação

a política, em sua concepção clássica. Essa noção de política, de acordo com Arendt, difere drasticamente da noção contemporânea – e a autora tece críticas também ao estudo de Tocqueville sobre a América, afirmando que ele “permaneceu curiosamente desinteressado” (p. 49) da própria Revolução Americana e das teorias dos fundadores –, ao menos no que se refere aos princípios normativos desta abordagem contemporânea, tendo em vista que a “questão social” não é assunto, na teoria política pré-moderna, do qual a teoria política deve se ocupar e, para a autora, a política nada deve fazer a respeito das desigualdades sociais.

19 Em suas palavras: “Não nascemos iguais, tornamo-nos iguais como membros de um grupo por força da nossa

decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais.” (ARENDT, 1990: p. 243).

20 Isso corresponde à noção segundo a qual “o pessoal é político”, slogan lançado pelo feminismo nos EUA na

social pode determinar a própria construção da vida privada, o que permite nos reconciliarmos com a perspectiva arendtiana: o ímpeto para sobrepor as barreiras que delimitam a cisão entre a esfera do trabalho privado e a esfera do trabalho produtivo apenas atinge o ápice quando se apropria da ação, a atividade política por excelência (ARENDT, 1958: pp. 16-17). A ação política pode, enfim, estar encarregada de reestruturar a relação entre a vida privada e a vida pública: em nosso caso, quando as mulheres trabalhadoras reclamam espaço no sindicato para debater demandas específicas ou reivindicar cargos nas instâncias de direção, ou ainda quando reclamam o compartilhamento das atividades domésticas e do cuidado dos filhos com seus companheiros.

Além de revelar o agente que age e fala, a ação e o discurso referem-se “à alguma realidade mundana e objetiva” (ARENDT, 1981: p. 195). Em se tratando das mulheres trabalhadoras, a conquista do engajamento sindical e das esferas de poder sindicais envolve o exercício da ação. A sobreposição das restrições que pretendem legitimar o confinamento das mulheres na esfera doméstica e cercear suas possibilidades de escolha quanto à realização das atribuições decorrentes das atividades reprodutivas requer o questionamento – pela palavra e pela ação – dessas restrições pelas mulheres, o que perpassa impreterivelmente pela atuação política, neste caso, a atividade sindical, e exige modificações sensíveis na divisão sexual de papéis sociais.

1.5 - Gênero, mulher/homem, igualdade/diferença: