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As obras clássicas

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 45-48)

1.2 A historiografia do Contestado

1.2.3 As obras clássicas

Já no início da década de 1950, o médico Aujor Ávila da Luz publicou o livro Os fanáticos: crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos, obra em que, apesar de utilizar-se de algumas fontes históricas, entrevistas com testemunhas oculares do conflito e documentos militares, não chegou a fazer um trabalho propriamente historiográfico. Sua observação parte da análise de aspectos psíquico-criminais dos revoltosos (ESPIG, 2008, p. 65). Quanto aos conflitos do Timbó e Paciência, menciona que grupos de pistoleiros, alguns anos antes de 1910, encarniçadamente disputavam a jurisdição, sendo armados por um ou outro estado litigante (LUZ, 1999, p. 210).

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No geral, o expediente de Ávila da Luz não trouxera grandes novidades à temática do Contestado se comparadas àquelas realizadas pelos historiadores de farda. Apesar do autor propor-se a engendrar uma análise de psiquiatria social, seu texto configura muito mais um discurso de afirmação psicopatológica discriminatória sobre os caboclos do planalto. Ademais, motivou o também médico Osvaldo Rodrigues Cabral, pessoa com a qual Ávila da Luz estabeleceu certa rivalidade37, a dar celeridade à suas pesquisas.

Entretanto, o trabalho de Ávila da Luz torna-se de merecida menção no que tange o percurso da historiografia sobre o tema. É um dos primeiros estudiosos não militares a empreender um estudo intelectual sobre o Contestado e, como é comum nos trabalhos de cunho histórico regional, procura realizar uma extensa descrição do território, da região, do palco em que o espetáculo do fato ocorrera.

Segundo Espig (2008, p. 63), é com Osvaldo Rodrigues Cabral que a historiografia do Contestado efetivamente teve início, uma vez que o autor procedeu análise e organização sistemática de fontes. Nada obstante, a obra de Cabral mais utilizada pelos historiadores é João Maria: interpretações da Campanha do Contestado, publicada pela primeira vez em 1960, apesar de ter lançado, ainda em 1937, Santa Catarina: história evolução, de menor destaque, mas que já incluía uma abordagem sobre o Contestado em dois capítulos específicos.

Em João Maria: interpretações da Campanha do Contestado, Cabral realiza uma abordagem do antes, durante e pós-guerra. Detalha com bastante atenção a ação dos monges para a deflagração do conflito, assim como também, com menor valorização, apresenta os embates da Questão de Limites. Todavia, sua observação limita-se na análise dos aspectos históricos de povoamento da região, levados por ambos os estados à suprema corte em defesa do domínio do território, assim como o próprio trâmite do processo de litígio. Não apresenta, em nenhum momento, os conflitos que se deram nos vales do Timbó e Paciência devido à indefinição dos limites e à disputa pelo controle da exploração de ervais.

No ano de 1955 veio a público, através do administrador cultural José Simeão Leal38,

a obra Pequena história dos fanáticos do Contestado, de autoria do francisquense radicado no

37 No posfácio da segunda edição da obra Os fanáticos: crimes e aberrações da religiosidade dos nossos caboclos,

o professor Walter Piazza comenta que o interesse pelo Contestado inflamou intensa competição entre Ávila da Luz e Cabral, uma vez que os dois almejavam conquistar uma única vaga para a cadeira de Medicina Legal na Faculdade de Direito (PIAZZA apud LUZ, 1999, p. 295).

38 Leal foi administrador cultural, diplomata, crítico de arte, jornalista, médico e colecionador. Em 1955 era diretor

do Serviço de Documentação do Ministério de Educação e Cultura, destacou-se como um dos incentivadores e inauguradores do movimento editorial no setor público brasileiro. Foi responsável no meio editorial pelo lançamento de Clarice Lispector (OLIVEIRA, 2009).

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Rio de Janeiro, Brasil Gerson39. O pequeno livreto, integrante de uma extensa coleção de 83

volumes de temas diversos e intitulada de Cadernos de Cultura, constitui-se de um breve resumo de 59 páginas sobre a Guerra do Contestado.

Na narrativa de Gerson, as considerações se dão muito por base do livro de Ávila da Luz, inclusive pela menção do termo fanáticos, inserido nos títulos de ambas as obras. Nesse sentido, o texto dá considerável ênfase à característica patológica dos sertanejos, dentro do mesmo raciocínio desenvolvido por Ávila da Luz (1999). Para Espig (2008, p. 67):

Tanto aquele quanto este reproduzem uma série de preconceitos acerca dos caboclos, especialmente em relação a sua pretensa ‘ignorância’ ou mesmo inferioridade. Esta forma de análise não ultrapassou o estranhamento causado por uma cultura distante no tempo e no espaço, gerando uma forma de análise que permanece até os dias atuais, embora venha decrescendo paulatinamente.

Apesar dos trabalhos, que aqui se classificam como obras clássicas40, não terem

abordado os conflitos nos vales do Timbó e Paciência e não trazerem um discurso que viesse a tirar os rebeldes de um posto de vilões – colocado pelos memorialistas –, é importante enfatizar sua importância para com o tema do Contestado. Estes historiadores, de ofício ou não, foram os primeiros a desenvolverem uma interpretação não militar acerca do movimento. Eram estudiosos que não participaram do conflito, e mesmo que influenciados pelos relatos dos historiadores de farda, procuraram contribuir intelectualmente. Como já mencionado, “a história é filha da memória” (VEYNE, 2014, p. 19), assim, no contexto da escrita destes trabalhos,

a memória do conflito estava muito presente, exaltando a visão dos vencedores, aliás, como ainda é patente, tanto no senso comum quanto em determinados trabalhos recentemente publicados41.

39 Gerson ficou nacionalmente conhecido pela publicação da obra História das Ruas do Rio de Janeiro, a qual

encontra-se na sua sexta edição, lançada em 2015 pela editora Bem-Te-Vi.

40 Adotou-se esta classificação por influência da metodologia usada por Espig (2008). Contudo, ao contrário da

referida historiadora, considerou-se como clássicas as primeiras publicações efetivadas por escritores não militares e que, de maneira inapropriada ou não, buscaram uma compreensão dos eventos. Já Espig adotou o termo clássica aos estudos sociológicos iniciados a partir da década de 1950, por entender que estes estudos “tornaram-se marcos de referência sobre a temática e são muito utilizados ainda hoje pelos pesquisadores” (ESPIG, 2008, p. 68).

41 Em 2013 a Academia de História Militar Terrestre do Brasil publicou o livro A revolta do Contestado nas

memórias e nos ensinamentos militares de seu pacificador, do coronel Claudio Moreira Bento, no qual, além de trazer uma nova edição do relatório do general Setembrino de Carvalho, referente à sua participação como comandante no Contestado – o que se poderia considerar agregador em temos de disponibilização de fontes para pesquisa –, perpetua, no restante do texto, os mesmos preconceitos e o elitismo apresentados pelas primeiras publicações, mencionando que os sertanejos estavam possuídos de “intenso fanatismo” (BENTO, 2013, p. 31).

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No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 45-48)