• Nenhum resultado encontrado

Um debate teórico possível

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 30-33)

Malerba (2006, p. 15) ensina que antes de se escrever sobre historiografia deve-se pensar teoricamente sobre o próprio conceito de historiografia. Compreender a importância que sua discussão tem para com o aprofundamento da abordagem de qualquer temática, o que servirá de base sólida para um percurso muito mais trilhado e delineado na delimitação da problemática. Pois, a historiografia “é uma forma de analisar os mecanismos que envolvem a produção do discurso dos historiadores, percebendo esses discursos em relação ao tempo e à sociedade em que cada historiador está inserido” (SILVA; SILVA, 2009, p. 190).

Ao se tratar de aspectos lacunares, em um considerável arcabouço já produzido sobre o Contestado, crê-se, ainda sob as reflexões de Malerba (2006), que há uma necessidade de iluminar a produção escrita do conflito, atribuindo a esta um caráter de fonte, de representação de um espaço temporal, uma vez que ao se escrever acerca de uma época se faz uso de conceitos, normas, práticas, ideologias, entendimentos, percepções, emoções, enfim, contextos que se referem à outra: a época de vivência do autor que a escreve. Assim, quando analisa-se, a título de exemplo, as obras dos oficiais memorialistas do Contestado22, deve-se entender o making

off da produção, realizando um intenso interrogatório das condições de sua escrita, desde os conceitos utilizados até os motivos que os levaram a redigir suas memórias e análises sobre o movimento sertanejo.

White (2014, p. 97), ao analisar o texto histórico como artefato literário, aponta que uma das formas “pelas quais uma área de pesquisa erudita faz uma avaliação de si mesma é examinando a sua história”. Sendo assim, como se poderia desejar empreender uma observação aprofundada sobre a questão do Timbó e Canoinhas sem que para isso se pudesse compreender a abordagem realizada no material intelectual já existente? Como se poderia denominar de

22 Entenda-se por oficiais memorialistas membros do Exército que, após o fim de suas respectivas participações

na campanha do Contestado, escreveram e/ou publicaram trabalhos sobre o conflito, como por exemplo o relatório redigido pelo coronel Fernando Setembrino de Carvalho, comandante máximo das operações no Contestado.

29

lacunares tais aspectos sem que antes de mais nada se inquirisse os motivos de sua omissão? Como se poderia denominar omissos tais escritos sem sequer determinar as circunstâncias de sua escrita?

Ricoeur (2007, p. 170), reconhecido como um dos grandes filósofos hermeneutas do século XX, ensina que:

O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao conteúdo das ‘coisas do passado’ (praeterita), das condições de possibilidade ao processo efetivo da operação historiográfica. Com o testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental.

Se por um lado existe uma estrutura que delimita as condições da história conforme modelos pré-estabelecidos, estrutural, por outro, têm-se a memória que se apresenta como um relato testemunhal dos eventos, materializando o que pode-se conceber como documento. Ou seja, ao tomar-se como exemplo o depoimento de uma testemunha em determinado processo judicial, sua memória produzirá um relato de eventos específicos, mas será a redação do relato em processo que tornará esse testemunho prova documental. É no meio, na intersecção da memória e a história, que a historicidade, o fazer historiográfico, se manifesta como produto possível e válido do ofício do historiador.

Para Ricoeur (2003, p. 2-3) “não temos nada melhor do que a memória para nos assegurar de que alguma coisa se passou realmente antes que declarássemos lembrar-nos dela”. A história e a memória entrelaçam-se em uma rede de relações complementares e conflituosas, permeando as legitimações que uma faz da outra. Pois, o que seria da História sem a rememoração, construção que dá vida a disciplina, e o que poderia se fazer da memória sem a reconstrução realizada pela História, validando seus elementos constitutivos e permitindo o não esquecimento dos eventos.

Ora, como diria Veyne (2014, p. 19), “a história é filha da memória”, ela é um

aprofundamento teorizado e esquematizado da memória e, assim, a partir da historiografia, torna-se um discurso, algo que se manifesta materialmente através da escrita, permeando muito daquilo que Orlandi (2005, p. 31) chama de interdiscurso ou memória discursiva, “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Ou seja, o interdiscurso é o que permite produzir novos discursos com base na memória. Quando se vivencia, se lê ou se ouve, as informações passam a fazer parte da memorização, ponto que não mais se lembra da origem da informação, de seu sujeito enunciador, mas apenas da informação pura ou distorcida.

30

É quando o anonimato age que o discurso faz sentido, tornando-se memória discursiva. Como disse Carbonell (1987), a historiografia nada mais é que a história do discurso escrito, o qual

afirma-se como verdadeiro.

Quando se trabalha com análise de textos memorialistas, que são o início da historiografia do Contestado, o interdiscurso faz parte da narrativa. Muitas afirmações e citações da sua textualidade estão intrinsicamente atreladas a um interdiscurso. Considerar a exterioridade presente em cada obra abordada deve ser um elemento norteador da observação, uma vez que as circunstâncias de escrita são, muitas vezes, tão importantes quanto a própria materialidade do texto. As diversas motivações e situações exteriores ao objeto de problematização do trabalho analisado, em vários casos, permitem tratá-lo por enfoques diversificados, dando ênfase muito mais ao seu contexto de produção do que necessariamente à sua materialidade narrativa.

Abordagens de uma história da historiografia do Contestado já foram realizadas, e muito bem, especialmente por Espig (2008) e Rodrigues (2008; 2012). Espig, ao tratar em sua tese de doutoramento dos trabalhadores da EFSPRG, fez um belo levantamento e análise das várias obras já produzidas sobre a temática do Contestado, constituindo um dos bons textos que merecem destaque no que concerne ao estudo historiográfico do movimento.

Para essa autora, “uma primeira observação muito importante da historiografia existente sobre o Contestado é o seu caráter irregular, tanto no que tange à publicação quanto à qualidade acadêmica das obras” (ESPIG, 2008, p. 62). Para Espig (2008), os textos são vastos, mas, em grande parte deles, constituídos de trabalhos amadores, não acadêmicos, que acabam por inserirem narrativas preconceituosas e pesquisas sem critérios teóricos e metodológicos. Por outro lado, estes historiadores, não de ofício, e suas obras, apresentam-se como coletores e produtores de fontes preciosas para pesquisa histórica, colaborando para um adensamento dos trabalhos acadêmicos.

Já a contribuição de Rodrigues, não menos importante, se faz, em maior volume, na problematização dos textos dos oficiais do Exército que combateram na campanha do Contestado, que ao findar da guerra publicaram suas memórias. Este historiador, tanto em sua tese de doutorado (2008) – em que objetiva analisar o lugar ocupado pela Guerra do Contestado na campanha de modernização militar do Exército – como em elucidativo artigo publicado no livro Nem fanáticos nem jagunços (2012), realiza um aprofundamento meritório na obra e na vida particular e profissional de cada oficial memorialista, identificando diferentes discursos expressos nas narrativas. Para Rodrigues (2012, p. 261), com a análise historiográfica dos textos

31

dos historiadores de farda23, “é possível apreender um projeto político para a nação após o

traumático afastamento do Exército dos rumos da política nacional, consolidada pela autonomia dos estados depois do pacto oligárquico firmado por Campos Sales”.

Como se vê, ao se exteriorizar o conteúdo narrativo, a análise historiográfica pode trazer à luz aspectos implícitos na materialidade do texto. Assim como ensina Rüsen (2006, p. 117):

Não se pode evitar o conflito entre engajamento e interesse relativo à identidade histórica das pessoas cuja historiografia pode e deve ser comparada. Esse engajamento e interesse têm de ser sistematicamente levado em conta; têm de se refletir sobre eles, explicá-los e discuti-los.

Todavia, uma discussão historiográfica não se faz de maneira atabalhoada. Segundo Blanke (2006, p. 28-32), existe um arranjo tipológico necessário na organização historiográfica, que pode ser feita pela história dos historiadores, pela história das obras, pelo balanço geral, pela história da disciplina, pela história dos métodos, pela história das ideias históricas, pela história dos problemas, pela história das funções do pensamento histórico, pela história social dos historiadores ou pela história da historiografia teoricamente orientada. Porém, para Blanke

(2006), é a funcionalidade o aspecto mais importante da historiografia. É com uma função afirmativa ou crítica da historiografia que se verificam as contradições e as lacunas existentes entre as obras em análise, é com ela que é possível superar e rever posições.

Desta forma, procurar-se-á, a partir daqui, fazer a análise historiográfica conforme sugestionada por Blanke (2006), pelas obras que tratam do Contestado, apontando a abordagem que cada uma delas faz acerca dos conflitos nos vales do Timbó e Paciência. Considerando para tal o que Heller (1993, p. 69) chamaria de objetivação, uma tradução do entendimento da história pelo historiador, fazendo com que os atos de violência praticados naquele espaço, entre 1900 e 1908, sejam objetivados, possam ser traduzidos através da historiografia, convertendo a reflexão intelectual já produzida sobre a temática em conhecimento.

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 30-33)