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A região enquanto categoria discursiva

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 167-173)

4.1 Os jornais e Análise de Discurso

4.1.1 A região enquanto categoria discursiva

É plausível dizer que a região é um conceito ainda em construção. Diferentes campos do conhecimento têm elaborado concepções sobre o mesmo, buscando delimitá-lo teoricamente. Na mesma medida, outras categorias conceituais que o circundam, como território, espaço, desenvolvimento, desenvolvimento regional, social e local vêm florescendo dentro dos debates acadêmicos. Florescer corroborado pelo avolumar no número de eventos promovidos sobre o assunto nos últimos anos, sobretudo incentivados pelo recente incremento de programas de mestrado e doutorado que incluíram a problemática da região em suas áreas de concentração165.

Na Geografia – talvez a ciência em que o conceito tenha sido mais problematizado – a região, segundo Gomes (2000, p. 52), foi historicamente concebida sob três aspectos. Primeiro como dinâmica do Estado, da organização da cultura e do estatuto da diversidade espacial. Em segundo lugar, relacionado às projeções no espaço, como noções de autonomia, soberania, direitos, e suas representações. O último aspecto refere-se à própria cientificidade da Geografia, a qual abrigou em si a tarefa de refletir sistemáticas sobre o conceito de região.

Na História, as apropriações do conceito coadunam para se pensar o espaço como um elemento definidor das relações humanas e delimitador de circunstância que possam dimensioná-lo para além do conceito de território, ou até mesmo do próprio espaço, haja vista que diferentes espaços podem ser concebidos fora do aspecto físico: espaços sociais, imaginados, virtuais, etc. Como infere Cunha (2000, p. 49-50), “considera-se o conceito de região mais abrangente do que o de território”. Assim, para o autor a definição de região deve

165 A título de exemplo, cabe mencionar os programas de mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade

do Contestado, em Canoinhas, os programas de mestrado em Desenvolvimento Comunitário, e em História e Regiões, ambos da Universidade Estadual do Centro Oeste, em Irati, e o programa de mestrado e doutorado em Desenvolvimento Regional da Universidade de Blumenau, todos criados há menos de 20 anos e que incorporam as problemáticas relativas à região como proposta de pesquisa.

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considerar todas as dimensões caracterizadoras de um determinado recorte sócio-espacial, entre elas a territorial, mas não apenas ela.

Não é improvável, que esta nova perspectiva de considerar a região, possa ser aplicada aos estudos históricos, o que poderá demonstrar que determinadas transformações histórico-geográficas dependeram de uma configuração sócio- espacial pré-existente, num sentido muito mais ativo e determinante do que antes se considerava (CUNHA, 2000, p. 53-54).

Portanto, procura-se neste tópico realizar apropriações do discurso jornalístico sobre os conflitos no Timbó e Paciência, de modo a compreender como determinados enunciados representaram o território do Contestado como região de violência, atribuindo aspectos que fogem da tradicional concepção de espaço geográfico – físico, natural –, entendendo-o como um espaço construído – vivido. Enfim, um espaço de práticas e relações de poder, pois,

[...] uma região é uma unidade definível no espaço, que se caracteriza por uma relativa homogeneidade interna com relação a certos critérios. Os elementos internos que dão uma identidade à região (e que só se tornam perceptíveis quando estabelecemos critérios que favoreçam a sua percepção) não são necessariamente estáticos. Daí que a região também pode ter sua identidade delimitada e definida com base no fato de que nela poder ser percebido um certo padrão de interrelações entre elementos dentro dos seus limites. Vale dizer, a região também pode ser compreendida como um sistema de movimento interno. Por outro lado, além de ser uma porção do espaço organizada de acordo com um determinado sistema ou identificada através de um padrão, a região quase sempre se insere ou pode se ver inserida em um conjunto mais vasto (BARROS, 2006, p. 463).

À vista disto, a primeira pergunta que se poderia fazer ao abrir as páginas daqueles jornais, nos idos dos anos da década de 1900, seria: o que significava a região do Timbó e Paciência para os jornalistas? Onde localizava-se? O que a delimitava? Ao se pensar de maneira político-administrativa, quem sabe, poder-se-ia estipular como respostas caraterísticas geográficas, geológicas, naturais: rios, montanhas, serras, etc. Contudo, através do que se pôde verificar nas fontes, os jornais não responderiam tais indagações, uma vez que as delimitações por eles estabelecidas, ao mesmo tempo que se sobrepunham, eram contraditórias e conflitantes. Portanto, uma resposta talvez mais aceitável sobre o significado histórico da região do Timbó e Paciência pode ser alcançado ao abstrair-se desses enunciados representações que não estão na camada do natural, do visível, mas sim do linguístico. O que construiu historicamente aqueles vales antes e, consequentemente, durante a Guerra do Contestado, foram discursos da imprensa, os quais representaram socialmente o espaço como uma região de violência.

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Por outro lado, não é objetivo deste trabalho deter-se na explicitação teórica do termo representação, tanto pela sua polissemia quanto pela sua variada e infindável gama de concepções. Porém, se faz necessário apontar que o uso deste conceito está inserido no entendimento de representação social, por concordância com as reflexões de Chartier (2002, p. 16-17), autor que concebe as representações para “identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”.

Segundo o mesmo Chartier (2002, p. 17):

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem a universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.

As representações seriam imagens formadas acerca dos objetos, que não necessariamente refletem a realidade, mas construções do real efetivadas por determinados grupos sociais que as utilizam como leitura de mundo. Nesse sentido, entende-se os jornais como grupo formador, ocupando-se do discurso jornalístico para compor uma representação sobre o espaço conforme determinados interesses.

Os discursos que enunciam a região representam assim imagens que podem ser observadas e analisadas, permitindo a leitura de uma dada realidade histórica, construída sob interesses determinados, os quais, por conseguinte, são compreendidos através das ligações e relações mantidas por seus editores, aqueles que de fato emanam estes enunciados. De modo que o jornal, em sua forma material, é um objeto que desvirtua os sinais entre enunciador e receptor, causa uma cisão, propiciando uma viciada sensação de neutralidade.

Um dentre os enunciados que podem ser utilizados para exemplificar esta reflexão refere-se a uma publicação realizada pelo Diário da Tarde em outubro de 1900, na qual o seu redator, Reinaldo Machado, enfatiza:

O Diário da Tarde é jornal paranaense, criado exclusivamente para defender a causa deste Estado e o fato de achar se à frente de sua redação um filho de Santa Catarina não o inibe em absoluto de expender, como julga de seu dever, a opinião que adota mesmo sobre assunto desta natureza (DIÁRIO DA TARDE, 08 out. 1900).

O sentido atribuído aos enunciados – criado exclusivamente para defender a causa deste Estado; e à frente de sua redação um filho de Santa Catarina – propõe em princípio uma relação muito íntima com o objeto que se quer relatar, a Questão de Limites. Mas, a fusão destes

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elementos no discurso como um todo busca o seu oposto, ou seja, a neutralidade. O resultado da junção de aspectos antagônicos, ao invés de atribuir negatividade à narrativa, lhe dá legitimidade, adquire sentido.

Nos jornais, a região representava mais que um espaço físico delimitado. Apesar dos rios terem sido utilizados como definidores dos pontos de fronteira, dos limites imaginários que estabeleciam o palco dos conflitos – o ring conforme escreveu o A República (03 out. 1900, p. 2)

ao referir-se à vila de Canoinhas –, estes critérios não eram precisos. Ora estavam enquadrados no espaço entre os rios Iguaçu, Canoinhas e Timbó; ora Iguaçu, Paciência e Canoinhas; ou Iguaçu, Negro, Timbó e Preto.

Mapa 3 - Mapa hidrográfico dos rios Iguaçu, Negro, Timbó, Canoinhas, Paciência e Preto, com os atuais limites

políticos entre os estados do Paraná e Santa Catarina.

Fonte: Elaborado pelo autor com base no Atlas escolar de Santa Catarina (SANTA CATARINA, 1991).

Outro critério adotado pelos jornais para definir fisicamente a região do Timbó e Paciência procurou embasar-se no controle administrativo das vilas, mas o uso deste elemento como parâmetro também não pôde ser sistemático. Enquanto alguns periódicos reconheciam as vilas de Porto União da Vitória, Vila Nova do Timbó, Poço Preto e Valões como territórios controlados administrativamente pelo Paraná, outros concebiam Canoinhas e Vila Nova do Timbó como de jurisdição catarinense. Percebe-se, ainda que considerando estes espaços delimitados por rios, as posses sobre vilas eram contraditórias a estes. Mesmo Canoinhas estampando os jornais, em duas situações diferentes, como pertencente ao território do Paraná – seja considerando a margem esquerda do Rio Negro ou a margem esquerda do Rio Canoinhas – esta vila era reconhecida pelos mesmos periódicos como espaço de controle catarinense, não

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por direito, mas por posse. Assim como também havia dupla jurisdição sobre Vila Nova do Timbó.

Sob tal cruzamento de enunciados, é possível visualizar que o limitante imaginário da região, enquanto categoria do discurso, são os sujeitos do discurso, ou melhor, os sujeitos no discurso. Os adjetivos utilizados para representar os habitantes eram também critérios classificatórios do espaço: rico, pobre, feio, belo, bondoso, criminoso, pacífico, violento, etc. Era isto que atribuía sentido à região, logo poderia ser um “quilombo de assassinos e criminosos” (A REPÚBLICA, 05 out. 1900) ou terra de “povo trabalhador e pacífico” (A REPÚBLICA, 29 jan. 1905).

Portanto, a região era construída simbolicamente nos jornais. Um espaço imaginário, da dimensão da linguagem, intrinsecamente ligado aos sujeitos que nele estabeleciam vivência. Não poderia ser definido por nenhum critério prático e objetivo, como se definem os espaços políticos, elegendo elementos da natureza como pontos de fronteira. A fronteira do Timbó e Canoinhas, ou Timbó e Paciência, estava no plano da linguagem, da representação, mudada, transformada conforme situações de ordem aleatória e condizente com objetivos inconstantes, suscetíveis de mudanças conforme as trocas enunciativas.

Nesse sentido, é possível creditar a afirmação de Machado (2004, p. 123-124), quando este menciona que, apesar de ter influenciado a adesão de comunidades inteiras, a Questão de Limites não foi determinante para eclosão do movimento do Contestado. A organização da população cabocla não se deu pela formação de oposição de paranaenses contra catarinenses, ou vice-versa, mas, sim, por sujeitos que não viam na identificação ao estado, enquanto ente federativo, algo que formava a sua região, tampouco cultural, étnica ou política. Havia um outro tipo de identificação, definida pela condição social, fortemente ligada ao coronelismo.

Os jornais paranaenses, em especial o A República, utilizaram-se dos relatos sobre os sujeitos representantes de Santa Catarina para legitimar seus argumentos sobre a posse do território, atribuíam a ineficiência do estado vizinho e a aceitabilidade da permanência de criminosos naquele território, como elemento que corroborava para a instabilidade do regime republicano no país. É nesse sentido que as ligações daqueles sujeitos, de maneira real ou construída, referiam-se sempre a movimentos que, na visão republicana, representavam uma ameaça. Exemplos como os enunciados acerca de Francisco de Paula Pereira, em Canoinhas, ainda no século XIX – ligada à figura de Antônio Conselheiro –, e a de Demétrio Ramos, em Vila Nova do Timbó – enunciado como maragato, estabelecendo ligação com recente a Revolução Federalista –, instigavam a formação de uma imagem de extrema periculosidade e

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violência, uma vez que estes movimentos eram, naquele momento histórico, símbolos do exercício da agressividade.

Sendo assim, o A República, enquanto órgão oficial do governo elaborou uma narrativa sobre os vales do Timbó e Paciência que objetivava mostrar ao leitor e, mais ainda, ao poder político e judiciário federal, a incapacidade de Santa Catarina para controlar a ação de sujeitos que ameaçavam a própria estabilidade do governo. Este tipo de discurso tornou-se muito mais enfático enquanto Vicente Machado esteve à frente do jornal, ou mesmo enquanto fora presidente do estado. Por mais que sua presença não fosse tão imperiosa como antes, é perceptível o seu controle opinativo nas publicações. Após a morte de Vicente, em 1907, contata-se uma menor preocupação do A República para com as tensões no Timbó e a Questão de Limites, fato que vem dar plausibilidade a este argumento.

Na outra ponta, os jornais catarinenses buscaram de certa forma distanciar-se discursivamente da região do Timbó e Paciência, tido como um espaço violento pela imprensa paranaense. Apesar do governo de Santa Catarina fornecer armamento em determinadas situações e proteger os líderes locais, enunciava estar alheio a qualquer tipo de ato hostil, prometendo inclusive punir severamente qualquer ação truculenta em seu território, como em Canoinhas, por exemplo. Contudo, tais afirmações faziam parte de uma estratégia discursiva perante a política nacional, reafirmando, conforme já mencionado em outros trechos desta pesquisa, a imagem de vítima da ação violenta realizada pelo governo do Paraná.

Contrário ao verificado na imprensa de Curitiba, em que os periódicos divergiam entre si e estabeleciam ferrenho discurso de oposição, os jornais de Florianópolis e Joinville compartilhavam, ao menos quanto ao debate sobre a questão do Timbó e Canoinhas, uma homogeneidade opinativa. O próprio órgão oficial do governo catarinense, O Dia, manifestou- se com certo receio dos eventos, apenas em momentos em que a intensidade de publicações dos vizinhos do norte tornava-se perigosa quanto à Questão de Limites, se pronunciava de maneira mais enérgica. Os demais jornais do estado, em especial o Gazeta de Joinville, reproduziam o discurso de seu conterrâneo, geralmente com intuito de prestar-lhe apoio. As poucas publicações levadas a público não apresentavam uma leitura que pudesse expressar qualquer tipo de contrariedade opinativa.

Portanto, ao aferir-se quantitativamente o termo mais utilizado nos textos dos jornais selecionados, os enunciados que expressam literalmente a violência ou remetem a ela são os que se fazem mais presentes. Portanto, a hipótese levantada inicialmente, de que a categoria da violência é que delimitou discursivamente a região naquele momento histórico, pôde ser comprovada.

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