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As obras dos sociólogos

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 48-53)

1.2 A historiografia do Contestado

1.2.4 As obras dos sociólogos

Foi durante as décadas de 1950, 1960 e 1970, respectivamente, que os sociólogos passaram a objetivar pesquisas sobre a temática do Contestado. Nesse expediente, destacam-se as obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz, La Guerre Sainte au Brésil: Le mouvement messianique du Contestado – tese defendida na França em 1955 e publicada no Brasil em 1957 pelo Boletim nº 187 da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP –; de Maurício Vinhas de Queiroz, Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado; e de Duglas Teixeira Monteiro, Errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. Estes três trabalhos passaram, a partir de então, ter presença obrigatória na abordagem historiográfica do tema, muito pelo fato de serem pesquisas que adentraram em uma tentativa de compreensão erudita e acadêmica do conflito, agregando novas metodologias e fontes para as análises empreendidas.

Desde os trabalhos realizados pelos memorialistas que tinham efetivamente um interesse institucional, em determinados momentos particulares, mas acima de tudo institucional – preocupados com a imagem do Exército enquanto entidade defensora da sociedade brasileira, encarregada de pôr em prática um modelo de desenvolvimento capitalista que a República Velha estava adotando, subordinando as áreas rurais às necessidades do litoral bem como os mercados externos (MCCANN, 2007, p. 213) –, passando pelo expediente das obras clássicas que, mesmo com deficiências metodológicas e concepções preconceituosas, empreenderam uma tentativa de compreensão do Contestado em níveis diferenciados daqueles dos oficias militares, foi através dos trabalhos dos sociólogos que a guerra adquiriu uma conotação de movimento social.

No caminho contrário do qual a Sociologia encaminhara-se nos anos 1950 – momento do surgimento de uma Sociologia autêntica, nacionalista, preocupada com a libertação nacional e com a transição da sociedade rural para uma sociedade industrial e moderna (LIEDKE FILHO, 2005, p. 386) –, os estudos sociológicos do Contestado, especialmente pelo pioneirismo de Pereira de Queiroz, entendiam a modernidade ocidental não como uma meta necessária e absoluta de civilização, mas que impedia a aproximação da realidade nacional, a qual poderia ser considerada falha ou lacunar, uma vez que conservava elementos considerados tradicionais, distanciando assim Pereira de Queiroz de seus colegas contemporâneos das décadas de 1950 e 1960, bem como outros intelectuais do final do século XIX e cientistas sociais da atualidade

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Maria Isaura foi a pesquisadora que inaugurou uma tradição sociológica singular, distanciando-se, sem descartá-la, da abordagem ensaísta do pensamento social brasileiro e de seus contemporâneos universitários – que em sua maioria se filiavam à escola americana e praticavam os chamados estudos de comunidades ou aderiam às ideias marxistas. Ao conjugar essas duas visões de mundo com a formulação da escola francesa de sociologia, Maria Isaura se destacou em relação aos seus companheiros de cátedra e inaugurou um método novo de investigação sociológica, que elegia o mundo rural rústico como seu objeto de estudo (VASCONCELLOS, 2014, p. 316).

A tese de doutoramento de Pereira de Queiroz iniciou uma nova fase interpretativa do Contestado, agregando o uso de novas fontes e uma visão acadêmica do conflito. Esta socióloga foi pioneira no uso de jornais de época para a pesquisa do tema (ESPIG, 2001). Sua preocupação em estruturar um messianismo enquanto evento sociológico levou-a publicar em 1965 o livro O messianismo no Brasil e no mundo, obra reconhecida mundialmente tendo sido logo em seguida publicada em francês. Para ela, o movimento do Contestado não pode ser entendido com observações que buscam na inferioridade intelectual, biológica e patológica, a gênese de suas observações, como até então os trabalhos militares e clássicos realizaram (PEREIRA DE QUEIROZ, 1957, p. 275). Contudo, na concepção de Machado (2004, p. 26):

Esta pesquisadora considera o messianismo como uma manifestação coletiva da crença na vinda de um redentor que porá fim à ordem vigente, instituindo uma nova ordem de justiça e felicidade, afirmando que, para que tal processo se desenvolva, é necessário um conjunto de fatores provocadores, merecendo destaque entre eles um estudo de anomia social, de perda de identidade como consequência de transformações socioculturais e econômicas. Maria Isaura, dessa forma, dá um novo nome à ‘patologia’ da população sertaneja e entra em contradição quando critica a visão preconceituosa dos primeiros escritos militares.

Muitos dos documentos utilizados por Pereira de Queiroz foram fornecidos por Vinhas de Queiroz, outro pesquisador da Sociologia que dedicou-se ao estudo do conflito sul brasileiro e que esteve na região durante as décadas de 1950 e 1960, coletando uma série de fontes e depoimentos de sertanejos, os quais infelizmente foram sucessivamente negados a pesquisadores que dedicam-se na temática do Contestado (MACHADO, 2004, p. 39)42. Fato este lamentável, tendo em conta o nível de erudição desta intelectual e o valor documental que o levantamento efetivado por Vinhas de Queiroz poderia simbolizar em novas pesquisas do tema.

42 Apesar da menção feita por Machado, Monteiro parece ter tido melhor sorte, uma vez que registrou na introdução

de seu livro, Errantes de novo século, agradecimentos a Pereira de Queiroz por ter cedido parte do material utilizado por ela, e por Vinhas de Queiroz, para o desenvolvimento de seu estudo sociológico sobre o Contestado (MONTEIRO, 1974, p. 10).

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Vinhas de Queiroz trouxe a público seu trabalho em 1966, sendo esta uma das obras mais citadas pela historiografia do Contestado. Rico em detalhes e embasado em quantitativa documentação, a obra Messianismo e conflito social: a guerra sertaneja do Contestado é certamente de leitura obrigatória para uma compreensão aprofundada do movimento sertanejo. Apontado por Monteiro (1974, p. 10) como “uma excelente reconstrução histórica dos eventos, feita com espírito de historiador, mas com um desenvolvimento sumário da parte interpretativa”, este sociólogo reconstrói cronologicamente a Guerra do Contestado, desde a descrição geográfica e as primeiras fases do povoamento até as últimas ações do líder rebelde Adeodato. Para tal, objetivou desenvolver um estudo relacionado com a teoria do messianismo em geral, refletindo sobre de que maneira a guerra poderia ser entendida em comparação com outros movimentos parecidos (VINHAS DE QUEIROZ, 1977, p. 14). Nas palavras de Espig (2008, p. 72), Vinhas de Queiroz “estabelece uma competente obra de reconstrução do movimento, traçando os antecedentes históricos e o desenvolvimento, passo a passo, do conflito”.

Para este autor, “em linhas gerais, a série de fatos ocorridos no Contestado se configurou em um movimento messiânico de tipo clássico, no sentido em que foi clássico o capitalismo concorrencial na Inglaterra do século XIX” (VINHAS DE QUEIROZ, 1977, p. 255). Nada obstante, ao elaborar suas conclusões, o autor acaba por contradizer-se em vários aspectos antes defendidos no interior de sua narrativa. Atribui ao movimento motivações relacionadas a um surto messiânico, a uma exaltação emotiva, com a presença de uma dominação carismática, onde os “sertanejos não tinham condições militares, materiais e culturais para vencer a guerra santa” (VINHAS DE QUEIROZ, 1977, p. 252). Machado (2004, p. 33) sublinha que:

Precisamos [...] descartar o emprego de tipologias generalizadoras que não tenham correspondência com o que foi possível apurar e analisar em relação ao movimento do Contestado. Considero esta discussão decisiva para discordar da avaliação de Vinhas de Queiroz, que defende que o movimento do Contestado foi uma ‘revolta alienada’. Este autor parte do princípio de que os movimentos ‘messiânicos’ sempre implicam uma ‘recusa’ do mundo, que leva ao alheamento e ao isolamento em relação ao restante do tecido social. Alheamento que, em determinados movimentos, assumia a feição de um ‘autismo’ – algo que não escapa do terreno da ‘patologia social’.

Com relação aos conflitos nos vales do Timbó e Paciência, Vinhas de Queiroz retoma discussões que desde Peixoto não eram tratados, incluindo a ação do coronel Demétrio Ramos. Todavia, sua abordagem não aponta nenhum dado novo, inclusive se utiliza e cita Peixoto durante o texto, evidenciando que teria embasado sua consideração no respectivo oficial memorialista. Porém, é importante destacar que o autor insere outra perspectiva de narração,

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não estabelecendo julgamentos sobre a região entre Porto União da Vitória e Canoinhas, ou seja, apesar de considerar o trecho violentamente disputado, não atribui aos distintos grupos características que viessem a designá-los como criminosos, sanguinários ou malfeitores, como até então se fazia nas narrativas memorialistas. Mesmo para tratar dos apoiadores do coronel Demétrio, Vinhas de Queiroz (1977, p. 67) utiliza-se da nomenclatura “sertanejos assalariados em armas”, impingindo assim uma rotulagem menos depreciativa à figura daqueles que se dispunham a entrar em beligerância. Curiosamente, de maneira distinta a Peixoto e Miranda, o sociólogo, também sem citar fontes, aponta o interior do estado de São Paulo como destino de Demétrio Ramos.

Como já mencionado anteriormente, outro profissional da Sociologia que se dedicou a estudar o Contestado foi Monteiro, o qual teve seu trabalho publicado no ano de 1974, sob o título de Errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado, obra tão importante para a historiografia do Contestado quanto a de Pereira de Queiroz e de Vinhas de Queiroz, trazendo igualmente uma minuciosa análise de fontes, porém sem preocupar-se com uma cronologia dos fatos, mas sim com o contexto geral do movimento, observando aspectos antropológicos e sociológicos e, “sobretudo, o universo de significados simbólicos construído pelos rebeldes no transcorrer do movimento” (ESPIG, 2008, p. 5). Sua intenção é focalizar predominantemente do ângulo da sociologia da religião.

Na opinião de Machado (2012, p. 18), foi com a interpretação de Monteiro que houve uma verdadeira virada na compreensão do movimento do Contestado. Seu entendimento em ver o sertanejo como um elemento social normal, com as mesmas condições psicológicas e físicas que qualquer outro brasileiro – ao menos nas mesmas condições dos soldados com quem combateram – promoveu uma mudança substancial na historiografia que o sucedera. Este sociólogo inaugurou uma nova fase interpretativa, elaborando uma visão que retirou da imagem construída dos rebeldes características fortemente estabelecidas pelos escritos militares e repetidos nos trabalhos seguintes, na qual estes eram vistos como fanáticos e ignorantes, parcela da sociedade incapaz de promover o progresso tão desejado pelo projeto republicano.

A obra de Monteiro caracteriza-se por empreender uma enfática tentativa de interpretação do Contestado sob a égide do milenarismo, sem que para isso estabeleça uma abordagem cronológica, como fizera Vinhas de Queiroz. O expediente tem por intenção “analisar o comportamento social de uma comunidade humana, que enfrentando uma crise global, recolocou, dentro dos limites que lhe eram dados, os problemas fundamentais de sua existência enquanto grupo” (MONTEIRO, 1974, p. 11).

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Quatro anos depois, em 1978, o sociólogo participou intelectualmente da coleção História geral da civilização brasileira, com o capítulo intitulado Um confronto entre Canudos, Juazeiro e Contestado, realizando um ensaio sobre diferentes movimentos rebeldes na busca de um consenso de motivações que tivessem dado condições para a eclosão destes. No que tange ao Contestado, suas observações sintetizam o trabalho de 1974.

Monteiro é o autor que mais contribuiu para o delineamento de uma estrutura social vigente naquela região no período aqui problematizado (1900-1908). Inclusive, evidencia uma abundante documentação sobre a participação de bandos civis armados, chefiados por coronéis locais, se referenciando nos trabalhos de Assumpção, Carvalho e Peixoto como fontes de comprovação (MONTEIRO, 1974, p. 22).

Em outro significativo trecho de sua interpretação, o autor realiza uma distinção das práticas de violência daquele espaço, categorizando-as, sob o prisma weberiano, em violência costumeira e violência inovadora. Segundo ele, o “sertão do Contestado é unanimemente descrito como um mundo de violência. Violência por questões de honra, violência por questões políticas, violência por questões de terra” (MONTEIRO, 1974, p. 37). Para este sociólogo, a violência costumeira seria aquela que “faz-se entre homens que se representam em nível ideológico como iguais ou potencialmente iguais, ou entre homens efetivamente beneficiados por uma autonomia necessária” (MONTEIRO, 1974, p. 43). Por outro lado, a violência inovadora teria surgido como uma ruptura dessa consciência de nivelamento, sendo a que se veria com mais clareza nos conflitos surgidos a partir de 1912, já a primeira, condizente com os casos do Timbó.

Como foi possível perceber, as análises que a emergência da sociologia das décadas de 1950, 1960 e 1970 trouxera para compreensão da Guerra do Contestado, malgrado suas críticas aqui já apontadas, permitem considerar que estes trabalhos, desenvolvidos sobre o âmago da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP43, propuseram, naquele período,

um impulso na produção bibliográfica da temática. A partir da década de 1980, inúmeros trabalhos – uns motivados pelo interesse dos sociólogos, outros como intenção de rebater suas interpretações – possibilitaram, muito pela catalogação de fontes e sistematização interpretativa, o surgimento de pesquisas de caráter histórico acadêmico. As quais, até a

43 A partir da década de 1950, a USP tornou-se uma instituição de referência em estudos sociológicos. A conhecida

Escola de Sociologia da USP empreendeu uma série de projetos de pesquisa que tinham a frente renomados estudiosos como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, entre outros. Os estudiosos da sociologia aqui problematizados, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Maurício Vinhas de Queiroz e Duglas Teixeira Monteiro, ou fizeram carreira como docentes desta instituição e/ou lá produziram suas pesquisas de pós-graduação.

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atualidade, concorrem com a contínua e insistente publicação de livros que ainda tomam por embasamento as considerações das narrativas militares e das obras clássicas.

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