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O jornal como objeto e fonte para a História

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 75-79)

A partir da segunda metade do século XIX o jornalismo impresso brasileiro se fortaleceu enquanto fonte de informação. “O jornal concorre agora, com o púlpito e o parlamento, para ser o lócus de elaboração do discurso competente” (CORDEIRO, 1998, p. 84). Com a Proclamação da República, em 1889, os periódicos jornalísticos transformaram-se rapidamente em veículos discursivos dos partidos políticos. No contexto da problemática desta pesquisa, vale destacar os rumos tomados pelos jornais O Dia, órgão do Partido Republicano Catarinense, e o A República, órgão do Partido Republicano Paranaense, os quais reproduziam, por vezes de maneira anônima, opiniões ufanistas sobre a Questão de Limites. Para Corrêa

(2009, p. 139), já no final do século XIX, as “colunas dos jornais eram usadas para escrever anonimamente o que não podia ser dito publicamente na Assembleia, Senado ou Câmara, constituindo um fórum de discussão alternativo à tribuna”.

Indiferentemente, as demais gazetas do Paraná e Santa Catarina, a partir de 1900, apresentaram-se como espaços dispostos a levar a fundo a discussão política, bem como reivindicar a detenção da verdade, do saber. Notadamente, quando as mobilizações de grupos armados dos vales do Timbó e Paciência surgiram nas páginas jornalísticas – em especial a partir de setembro de 1900, momento em que o República noticiou telegrama recebido pelo Prefeito de Polícia de Santa Catariana, no qual relatava que, durante conflito de forças do Paraná com catarinenses na região entre Timbó e Canoinhas, fora vítima o comandante da força paranaense (REPÚBLICA, 18 set. 1900) – várias outras matérias se seguiram nos jornais, sempre em acusação às autoridades do estado vizinho por permitir e promover todo tipo de violência. Ambos os jornais, frequentemente, enfatizavam que a região entre os vales do Timbó e Paciência tornara-se um quilombo de assassinos e criminosos de toda a espécie, local possível de uma nova Canudos (A REPÚBLICA, 05 out. 1900).

Os discursos presentes nas fontes jornalísticas apresentam-se como um rico material para o ofício do historiador, seja como expressão ideológica, representação de uma determinada

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realidade, ou mesmo como manifestação de um projeto de futuro, quer como afirmação de classe ou simples demonstração de poder. Enfim, apresentam-se como um conjunto de enunciados que pertencem a uma mesma ordem, configurando o que Foucault (1996) conceitua como discurso, ou seja, um conjunto de enunciados que comunica um determinado conteúdo, que produz uma verdade, mesmo que esta não seja uma verdade absoluta e universal, mas que se sobreponha ou procure se sobrepor a outras em uma teia de conflitos e relações de poder.

Destarte, o uso do jornal como fonte exige atenção e cuidado. Os enunciados evidentemente são tendenciosos, modificando a realidade como também criando verdades, verdades arbitrárias, o que demanda maior atenção por parte do historiador, tal como uso de métodos aprofundados para a apreensão da subjetividade dos textos. Segundo Espig (1998, p. 276), “a impressa deve, neste sentido, ser pensada como representação construída sobre o real, sobre a qual incidem determinados filtros deformadores que cabe ao historiador determinar e equacionar em suas análises”.

De modo análogo, Capelato (1994, p. 118) entende os jornais como objetos manipuladores da verdade, mas enfatiza seu uso como documento para a escrita da história:

A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam como mero veículo de informações, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos.

Vale destacar, na perspectiva da interdisciplinaridade, que a História pode ser concebida como composição de “núcleos de cientificidade” (VEYNE, 1976, p. 64), ao ponto que mantém-se aberta à contribuição das demais ciências do homem. O fato é que sua inegável abertura permite à História beneficiar-se dos diversos progressos das disciplinas vizinhas, ao mesmo tempo se diferenciando destas por diversos aspectos, em especial por aquilo que Malerba (2006, p. 15) chama de “capacidade de autorreflexão”, ou seja, a capacidade de

reformulação, revisão de seus métodos, seus encaminhamentos, auto-historicização.

Foi por meio da lógica da autorreflexão que os jornais, entendidos e aceitos como fonte para pesquisa, mostraram-se uma ferramenta importante para a narrativa histórica. Todavia, a relutância pelo seu uso persistiu até a década de 1970. Pesquisava-se a história da imprensa, mas não a história por meio da imprensa (LUCA, 2008, p. 111). Mesmo hoje, sua aplicação ainda é vista com receio por alguns historiadores. Na própria historiografia do Contestado a utilização da fonte jornalística é consideravelmente modesta. Porém, é meritório sublinhar que em 1998 Espig já havia publicado artigo na Revista Estudos Ibero-Americanos, destacando, em

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profundidade, as possibilidades do jornal como fonte para pesquisas sobre a Guerra do Contestado, texto fundamental para aqueles que pretendem conhecer o arcabouço documental sobre a temática.

Segundo Espig (1998, p. 270-271), “durante o movimento do Contestado, os jornais em geral dedicaram grandes espaços aos acontecimentos à análise de seus articulistas, vindo assim a transformarem-se em importantes acervos históricos para estudo deste conflito”. Por outro lado, a própria autora alertava para os problemas dessas fontes:

Um dos mais frequentes problemas no tratamento dado aos jornais pelos historiadores, porém, é a ausência de uma crítica interna ao conteúdo jornalístico, e sua utilização como se fosse uma fonte precisa, no qual a informação é válida por si mesma (ESPIG, 1998, p. 274).

Desta forma, é pertinente mencionar que toda fonte necessita de um tratamento específico. Nenhuma pode ser considerada pronta, límpida e destilada, aguardando sua simples degustação pelo pesquisador. Todas exigem métodos e abordagens teóricas consistentes64.

Como já mencionado, os jornais estabeleceram-se como fonte quando, na década de 1960 e 1970, surgiram novas perspectivas de abordagem, em especial pela influência da Filosofia através dos aportes reflexivos de Michel Foucault65, filósofo que influenciou não só a

História, mas outros campos do conhecimento, como a Linguística e a Sociologia, nas quais tem-se a expressão evidente do discurso, do discurso da sociedade, manifestado de variadas maneiras, seja na literatura, na poesia, mas também nos jornais. Pois o jornal é a expressão de um discurso pautado na montagem, um elemento produzido, um produto discursivo da sociedade e/ou para a sociedade.

A passagem daquilo que era objetivo para uma narrativa, um discurso histórico, ocorreu com a própria mudança da ciência, admitindo que outros documentos e metodologias eram possíveis, deixando a ideia de originalidade em um plano não mais primordial para dar voz aos sujeitos das fontes. Isso se iniciou com maior ênfase a partir da década de 1930, mas

64 É manifesto que nem tão somente os textos jornalísticos são suscetíveis de abordagens equivocadas. Ginzburg,

ao fazer estudo dos inquéritos inquisitoriais da Baixa Idade Média e princípios da Idade Moderna, estabelecendo analogia entre o método de inquirição do inquisidor e do antropólogo, realizou em artigo apontamentos importantes sobre as contribuições de Clifford Geertz para a Antropologia, especialmente com relação à problematização textual. Segundo Ginzburg (1991, p. 16), “não há textos neutros; mesmo um inventário notarial implica num código, que devemos decifrar”.

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afirmara-se na década de 1970, possibilitando, por exemplo, o estudo do cinema, da música, da fotografia, etc., tomando-os como objeto e fonte – e o jornal é um deles (CAPELATO, 2015).

A renovação da temática evidenciou o processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores, muito percebido pelos títulos atribuídos às pesquisas desenvolvidas, incluindo temas como o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim toda uma infinidade de questões até então ausentes no campo da História

(LUCA, 2008a, p. 113).

Nesse entendimento, assentado principalmente na proposta de Foucault, o documento é, portanto, uma montagem, às vezes consciente outras não, mas um produto da sociedade. Sendo assim, os resquícios de uma sociedade no passado poderiam ser apreendidos por essas fontes, ditas não oficias, acionando o passado por meio do jornal, por exemplo.

O jornal constrói memórias, memórias que, por vezes, são fabricadas por meio das notícias e do conteúdo, definido conforme a vontade do editor. É no processo de construção do jornal, na definição das matérias, dos cortes e no que será publicado como notícia que se deliberam, com base em um perfil ideológico estabelecido, aquilo que deve-se estipular como produto a ser consumido pela sociedade e, portanto, definido a se tornar memória posteriormente. Nas palavras de Le Goff (1990, p. 474), “toda a evolução do mundo contemporâneo, sob a pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso pelo media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas e a história estaria [...] sob a pressão dessas memórias coletivas”.

Especificamente sobre o jornal como fonte para a História, é também importante a ideia de mina de conhecimento ou depósito de cultura (BAUER apud CAPELATO, 1988, p. 21). Tais metáforas traduzem o quanto o jornal tem de potencial, pois está atrelado a um movimento da História enquanto ciência, revendo os documentos e suas posturas metodológicas.

Uma outra perspectiva, também iniciada na década de 1970, viu nos periódicos um potencial documental para fazer análise de aspectos culturais, avançando mais um passo para a consolidação deste material no rol documental da História. As propagandas expressas nos jornais, por exemplo, podem constituir bons elementos para a apreensão do cotidiano. As mudanças verificadas nos tipos de produtos e serviços oferecidos ao público, bem como a própria divulgação sobre os estabelecimentos comerciais, dizem muito sobre os hábitos urbanos e as tendências mercadológicas. Para Woitowicz (2015, p. 52) “a imprensa torna-se, a partir de sua expansão e desenvolvimento, um importante campo de produção e difusão de ideias, hábitos

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e comportamento de vida urbana, figurando como mediadora e impulsionadora de acontecimentos da vida pública”. Já para Cruz (2000, p. 156):

Com a virada do século, a propaganda deixa progressivamente o espaço exclusivo das publicações comerciais e articula-se à imprensa periódica de uma forma mais ampla. O sucesso de um periódico, sua manutenção como uma publicação competitiva e estável, passa a depender casa vez mais de sua capacidade de atrair recursos via propaganda. Anúncios e reclamações passam a constituir parte característica e importante de um periódico de sucesso. Através da propaganda, a cidade-mercado penetra na imprensa periódica, denotando a crescente fruição de bens e serviços no espaço urbano.

Entretanto, Capelato (2015, p. 118) procura demonstrar que apesar da transformação dos jornais brasileiros em empresas jornalísticas, privilegiando a informações e necessitando muito mais dos anúncios, o interesse pela política não diminuiu. “No entanto, os jornalistas da época que não viam com bons olhos as mudanças ocorridas na imprensa afirmavam o contrário, ou seja, que o jornalismo opinativo perdera espaço quando os jornais se transformaram em empresas comerciais” (CAPELATO, 2015, p. 118). Fato que não ocorrera, conforme demonstrado pela própria autora, haja vista que os jornais continuam a debater política até os dias atuais.

Enfim, entendendo que o jornal é importante objeto e fonte para produção da narrativa histórica – seja em seu caráter documental, apontando indícios para o historiador, ou como material a ser problematizado por contextualizar momentos temporais específicos evidenciando relações de poder e sociabilidades –, discutir os periódicos que teceram discursos e narraram os conflitos no Timbó e Paciência permitirá compreender melhor a formação discursiva destes, ou seja, a que grupos estiveram ligados, a quais interesses e por quem foram redigidos, entre proprietários e redatores. Como evocou Luca (2008a, p. 132), “historicizar a fonte” permitirá, portanto, apresentar os sujeitos que por elas foram responsáveis, não fazendo, como corriqueiramente se vê em muitos textos que trabalham com jornal, em que os mesmos são tomados como instituições inanimadas, robotizados, como se expressassem um discurso próprio, artificial, quando na verdade são construções humanas, objetos utilizados por sujeitos específicos com fins específicos.

No documento ELOI GIOVANE MUCHALOVSKI (páginas 75-79)