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3.2 As relações do perspectógrafo com os pólos do modelo

A vocação instrumental do perspectógrafo foi objeto de nossa atenção quando abordamos, no capítulo anterior, o conteúdo da teoria das atividades com instrumentos. Ao colocarmos em evidência as relações entre os elementos do modelo SEI e o instrumento, consideramos, em princípio, que este instrumento terá como componente tecnológica o perspectógrafo, as componentes esquemáticas sendo relativas a cada situação de uso. O modelo SEI nos servirá de ferramenta para analisar as diversas relações e os estatutos que o aparelho pode adquirir dentro de uma dinâmica didática, enquanto componente tecnológica de um instrumento. Abordaremos, a seguir, as possibilidades de relação direta que o mesmo pode estabelecer com os três elementos da situação didática: o saber, o mestre e o aluno.

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3.2.1 -

Instrumento e saber

A relação entre o perspectógrafo e o saber tem sua origem nas construções dos pesquisadores do século XVI. O projeto das « máquinas de desenhar » teve início com os artistas renascentistas, que procuravam definir uma representação, a mais fiel possível, do ambiente físico de suas pinturas.

A questão principal destes projetos era o domínio das regras da projetividade, principalmente no que concerne à projeção cônica central, que determina a representação perspectiva. Foram inúmeros os artistas que executaram projetos específicos de aparelhos, permitindo a execução de perspectivas. Dentre eles destacamos o trabalho de Albrecht Dürer, devido à diversidade de formas que seus perspectógrafos adquiriam e à vasta documentação que o mesmo produziu, através de suas gravuras. Na realidade Dürer era um artista que conhecia, e empregava com maestria, as regras da perspectiva em seus quadros e gravuras, mesmo antes de se dedicar à construção de seus aparelhos. Estas construções representaram então um processo de materialização dos conceitos abstratos, que entram em ação em uma representação perspectiva.

Ao se criar os aparelhos procurou-se conferir um aspecto material à um conceito abstrato. O ponto de observação é um exemplo desta relação. O aparelho oferece, como forma de representação material do ponto de observação, a possibilidade de se olhar através de um anel em metal. Ele serve como referência para manter o olhar em uma mesma posição. O anel metálico materializa assim o conceito de ponto de observação. Ou seja, a partir de um conceito abstrato, como o de ponto de observação, se criou um elemento material que o representa, guardando uma relação entre um significante, ou componente tecnológica, e um significado existente a priori, ou componente esquemática do instrumento.

O aparelho simula o ambiente relativo ao saber em perspectiva. Ele representa, de maneira evidentemente limitada, o processo através do qual pode-se determinar as deformações de um objeto quando ele se submete à um sistema de representação gráfica, como aquele da perspectiva. Ele contém assim um saber implícito que pode ser utilizado. Ele permite a execução de perspectivas, sem a necessidade de

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colocar em ação nenhum conhecimento sobre suas origens, suas restrições e seus invariantes. É possível também a execução de certas manipulações sobre o aparelho, para determinar algumas entidades abstratas relativas ao saber formal, como o ponto de fuga ou a linha do horizonte.

A relação mais importante entre o saber e o aparelho, está na sua vocação instrumental, representando um meio mais rápido de atingir o conhecimento em questão, passando pela atividade com o instrumento, ainda que para tanto ele faça uma economia. Nesta opção, a relação terá como base os conhecimentos pragmáticos, ou mesmo os conhecimentos em ato, pois o aparelho em si não é suficiente para a formulação de proposições de conceitos técnicos, ou científicos, justamente aqueles que ele prescinde na ação.

3.2.2 -

Instrumento e mestre

O perspectógrafo faz parte do repertório de artefatos, que estão à disposição do mestre, para a preparação de sua ação didática. Considerando-o como um simulador do ambiente da perspectiva, não lhe será conferido o mesmo estatuto que um outro artefato. Mas para tanto o mestre deve interpretá-lo como tal,

ou seja ele deve desenvolver seus próprios esquemas de maneira a ver, na componente tecnológica do aparelho, sua potencialidade instrumental. É preciso considerar que a introdução do perspectógrafo em uma situação de ensino, parte do princípio de que o mestre mantém uma relação anterior com o saber, e que não passou necessariamente pela mediação do aparelho. Assim, os conteúdos abstratos da perspectiva se encontram em estado desenvolvido junto ao mestre e o processo de gênese instrumental exigirá do mesmo uma construção de associações entre os significados, que ele dispõe e os significantes que o aparelho visa representar. Esta vinculação é condição imprescindível, para a incorporação do aparelho enquanto instrumento. O mestre conhece o ponto de observação e ele deve ser capaz de reconhecê-lo no aparelho através do anel metálico.

A tarefa do mestre, em uma ação didática, é de criar situações de forma a gerar no aluno a necessidade de aquisição de um conhecimento. Na relação do mestre com

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o instrumento podem ser criadas diversas situações, de ação, de reconhecimento ou de ilustração. Para tanto, o mestre deve reconhecer no aparelho suas potencialidades instrumentais e as ações que podem ser executadas com o mesmo. O perspectógrafo é uma nova ferramenta e sua relação com o mestre depende de investigação para estabelecer todas as possibilidades, que podem existir a partir de sua adoção como um instrumento de aprendizagem. Esta investigação se encaixa em uma fase preliminar do processo da engenharia didática uma vez que o instrumento irá desempenhar um papel importante na mesma. Na relação do mestre com o aparelho, a sua segunda gênese instrumental - a primeira é aquela da sua concepção -, formulam-se as primeiras hipóteses a serem verificadas através das experimentações.

3.2.2 -

Instrumento e aluno

Nesta relação com o perspectógrafo definimos o processo de descoberta. O processo de gênese instrumental não seguirá o mesmo caminho daquele dos pesquisadores do século XVI, ou do mestre, que identifica no aparelho uma relação com os conteúdos que ele domina. O aluno, em princípio, não mantém uma representação

evoluída com relação ao conteúdo do saber. Ele não dispõe de significados que podem ser associados aos significantes do aparelho. O processo, neste caso toma o caminho inverso daquele descrito anteriormente. O aluno entra em relação com o aparelho e à medida em que sua ação avança, ele constrói sua representação e os significados que ele identifica em ato. Esta dinâmica se vincula, principalmente, à identificação de um conhecimento procedural que declarativo.

Considerando o aparelho como um meio de ação a ser utilizado pelos alunos, os invariantes identificados inicialmente são ligados exclusivamente à ação com o mesmo. Nesta ação os alunos constróem uma relação com a realidade das transformações projetivas. Eles identificam conceitos, que podem ser pragmáticos ou em ato, que tem sua origem na atividade imposta pelo instrumento. Ela obriga o aluno a organizar sua ação para realizar sua tarefa, transformando assim sua representação. Enquanto meio de produção de desenhos, o aparelho permite a obtenção de uma perspectiva, sem a necessidade de conhecimento formal de

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técnicas e de seu conteúdo. Ele permite então a execução de atos de perspectiva, através dos quais são construídos certos conhecimentos, inicialmente pragmáticos. Com a interferência do mestre estes conhecimentos podem evoluir de forma a se transformar em conhecimento técnico ou científico. Assim, o aluno pode ser conduzido à compreensão da técnica projetiva central e à sua interiorização enquanto ferramenta ou instrumento de expressão. Esta transformação não faz parte da relação entre o aluno e o instrumento, mas encontra nela sua origem.

O instrumento pode adquirir também o estatuto de um meio de controle das antecipações feitas pelo aluno sobre os efeitos de uma determinada forma de organização dos elementos perspectivos. Assim, ele pode manipular os parâmetros de forma a definir aqueles que serão considerados na obtenção de um efeito. O aparelho permite esta manipulação de forma rápida. A altura do observador, a posição lateral do mesmo com relação ao objeto representado, a posição do objeto com relação ao quadro, são parâmetros gerais que podem ser rapidamente modificados, de forma a verificar o efeito perspectivo que se deseja obter. O aluno pode fazer assim uma vinculação entre o parâmetro modificado e o efeito sobre a forma perspectiva obtida.

Enfim a relação entre o aluno e o instrumento será definida de acordo com o tipo de tarefa que o aluno deverá executar através do mesmo. Citamos acima o exemplo de produção de um desenho e o controle dos parâmetros de uma perspectiva, poderíamos fazer referência também ao aparelho, como meio de ilustração dos conceitos formais da perspectiva. A decisão de qual tarefa será imposta ao aluno com o aparelho faz parte das prerrogativas do mestre. Resta que estas ações podem levar às construções, ou mesmo às alterações do conhecimento do aluno e que constituem o objetivo do ensino.