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Segundo a teoria das atividades com instrumentos, para que se possa conferir a um artefato o estatuto de instrumento deve ser possível identificar no mesmo uma componente tecnológica e uma componente esquemática. A definição da componente tecnológica já foi objeto deste capítulo, pois o aparelho permite a simulação de um ambiente projetivo. A componente esquemática esta ligada à atividade do sujeito. Uma das possibilidades do aparelho é de permitir a ação do sujeito sobre um espaço, que possui uma forte correlação com o espaço projetivo representado através do desenho. Assim, a adoção da atividade com instrumentos

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para a compressão da perspectiva, se deve à necessidade de construir esquemas de ação para a atividade sem o perspectógrafo. Para tanto deveremos encontrar pontos de convergência entre a ação concreta com o instrumento, os esquemas que esta ação permite construir, e as necessidades conceituais do trabalho da perspectiva geométrica.

Para a definição de um artefato enquanto instrumento necessitamos, como já foi dito da definição de duas componentes estruturais. Tentaremos agora definir a componente esquemática, mas é preciso esclarecer que mesmo na existência de um só aparelho, ou uma única componente tecnológica, pode-se identificar diversas componentes esquemáticas ligadas a diversos usos diferentes. Antes de analisarmos este aspecto, no caso do perspectógrafo, usaremos um exemplo ligado a outro artefato como forma de identificação das possibilidades de coexistência, de diferentes instrumentos em um mesmo artefato. A caneta, de uma maneira geral, é um artefato que visa à escrita. Ela possui um reservatório de tinta, ela tem uma forma alongada para permitir o uso através da mão humana. De uma maneira extremamente resumida, acabamos de colocar algumas poucas

características da componente tecnológica de um artefato « caneta ».

Consideremos agora uma ação em que se deseja apontar para uma parte de uma figura. O uso da caneta pode ser adequado para tanto, sua forma alongada se adapta também a este uso, e neste caso o instrumento não visa mais a escrita mas a ação de « apontar ». O aspecto tecnológico da tinta deixa de ser importante para este uso, e o aspecto da sua forma é colocado em evidência. Um mesmo artefato e dois instrumentos diferentes, dois esquemas diferentes. Indo um pouco mais longe podemos encontrar a caneta prendendo uma mecha de cabelo, ou fazendo um ruído quando batida contra um outro material, ou servindo para enrolar uma fita cassete. Sem se aprofundar nas especificidades destes « novos » usos que se pode atribuir a uma caneta, podemos ver em cada um deles uma nova componente esquemática. E, na criação de cada novo esquema de uso identificamos aquilo que Rabardel chamou de gênese instrumental. Segundo ele, os instrumentos não são dados diretamente ao sujeito, este último participa da sua gênese instrumental na medida em que ele escolhe que uso fazer de um artefato. Não são raros os casos de desvio de função de um artefato, como o uso de um forno para secar roupa ou de uma caneta para prender o cabelo. Nestes « desvios de função » podemos identificar os efeitos da gênese instrumental.

O sujeito constrói sua própria componente esquemática quando vai se servir de um artefato. Esta segunda componente de um instrumento representa a participação do sujeito no processo. A atividade com o aparelho vai requerer a construção, transformação ou adaptação de esquemas anteriormente construídos pelo sujeito. Assim, o artefato, o aparelho, a ferramenta etc. se tornará um instrumento a partir de sua utilização. Neste momento de uso, os vários tipos de esquemas são colocados em ação pelo sujeito e assim se completa o processo de gênese instrumental. Se o sujeito não compreende seu uso, ou não o aplica em uma ação, o artefato não mudará de estatuto. O mesmo não se aplica para as ferramentas na gaveta, elas não estão inseridas em um uso, mas o sujeito as conhece e conhece suas funções, e sabe utiliza-las em seu trabalho. Ele já desenvolveu os esquemas que estão associados às mesmas.

Se, na história de sua criação, o perspectógrafo representou a materialização de um certo conhecimento, que já existia na representação dos pesquisadores que o desenvolveram, na atividade de ensino o caminho a ser percorrido tende a ser o inverso. Os usuários do perspectógrafo não possuem necessariamente uma representação inicial sobre o trabalho em projeção e não desenvolveram os esquemas específicos para esta atividade. A atividade com o aparelho vai exigir a construção de esquemas, de conceitos e de representações junto ao sujeito. Cada uma destas construções deverá fazer parte do conhecimento que se deseja ver construído. Para a construção dos esquemas de ação o sujeito se servirá de seus próprios esquemas anteriores.

Na atividade de execução de uma perspectiva, um esquema que pode ser evocado é o de cópia sobre papel transparente. Uma das atividades que os alunos devem executar com o aparelho é a da cópia, sobre papel transparente, da imagem de um objeto tridimensional. A partir do esquema que o sujeito já dispõe de cópia, ele vai desenvolver as adaptações necessárias para a nova atividade, mas que guarda uma similaridade com aquela da cópia. Cada uma destas transformações dos esquemas podem ser úteis no processo de aprendizagem da perspectiva, pois alguns dos invariantes operatórios da atividade com o aparelho podem ser os mesmos para a ação sobre a própria perspectiva. A identificação destes invariantes será objeto dos testes de campo, mas já se pode supor que no esquema da cópia sabe-se da necessidade de manter os pois papeis (aquele que esta sendo copiado e aquele em que se faz a cópia) na mesma posição do início ao fim da ação, sob

pena de se perder a referência entre um e outro desenho. Esta regra é basicamente a mesma para o trabalho sobre a perspectiva, naquilo que se refere a posição do olho. Esta posição deve ser a mesma e o sujeito deve utilizar as possibilidades que o aparelho oferece para poder manter a mesma referência.

Existem porém certas regras de ação que serão ligadas exclusivamente ao aparelho e que não encontrarão uma relação com a atividade da perspectiva geométrica. Por exemplo, o sistema de regulagem da posição do observador ou as possibilidades técnicas de movimentação do anel de referência. Estes dois componentes tecnológicos do aparelho serão contemplados com esquemas de uso específicos, que não encontrarão necessariamente uma referência na técnica gráfica da perspectiva.

Dentro da teoria de Piaget encontramos os dois movimentos que podem ser estimulados, quando da execução de uma ação pelo sujeito. Um deles é a assimilação, quando um novo elemento encontra um esquema dentro do qual ele pode se adaptar. Um segundo movimento é o da adaptação, quando o esquema deve se modificar para poder se adaptar ao novo elemento. Estes movimentos tem como origem a atividade do sujeito e nesta atividade podemos encontrar o espaço para a inclusão do instrumento. Os instrumentos podem trazer novas informações, que serão identificadas na ação. Em um ato de perspectiva, certos conceitos podem ser identificados, pode também ser provocada uma assimilação aos esquemas já existentes no sujeito ou uma acomodação em novos esquemas. A ação representa então um saber autônomo, a ação com o perspectógrafo pode não representar um conhecimento consciente, mas ela pode ser a fonte de uma compreensão das transformações conceituais dos elementos geométricos.

Piaget1 propõe três patamares, na evolução da ação instrumentada, que

representam um caminho para a construção do conhecimento na aprendizagem da perspectiva com a ajuda do perspectógrafo. O primeiro patamar é aquele da ação material sem conceptualização. Nas primeiras tarefas com o aparelho o sujeito estará adaptando seus esquemas, sem tomar consciência dos conceitos que podem ser construídos. No início o sujeito se habitua ao aparelho, na medida em que ele aprende a se servir da conduta instrumental. O segundo patamar, ainda em

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Piaget, é aquele aonde inicia a construção de conceitos, a partir do resultado das ações. Esta evolução no sentido da construção dos conceitos vai necessitar de uma estimulação. No caso da perspectiva, as implicações geométricas são múltiplas, e uma má conduta na análise da atividade pode se tornar ineficaz para o processo de aprendizagem. Pode-se usar como exemplo o conceito que faz referência ao processo de transformação das linhas horizontais dos objetos, sujeitos a uma representação perspectiva. De um modo geral, os indivíduos dispõem de um esquema que permite dizer que certas linhas horizontais do objeto serão representadas, no desenho, através de linhas inclinadas. Mas estas inclinações seguem uma regra precisa, as linhas horizontais devem convergir em um ponto de fuga. Este último é determinado em função da inclinação relativa entre as linhas do objeto real e o plano do quadro de referência. Esta relação não é de simples identificação, mesmo que este conceito seja de extrema importância para a perspectiva. Assim, no segundo patamar evolutivo, enunciado por Piaget, a construção dos conceitos, a partir do resultado das ações, deve ser supervisionada de maneira a evitar as interpretações errôneas das relações identificadas. As linhas inclinadas seguem uma direção precisa do ponto de fuga, e os pontos de fuga devem estar sobre uma mesma linha do horizonte. Estes são os dois invariantes que devem fazer parte do conceito construído. Se estes invariantes não forem contemplados, então podemos dizer que se construiu apenas um conceito em ato1, no sentido que é atribuído por Vergnaud2. O conceito se encontra em estado operacional mas ele não contempla todas as exigências para se tornar eficaz. O indivíduo deve saber fazer uso do conceito, mas sem a tomada de consciência das razões de seu funcionamento, fazendo com que seu uso seja limitado.

O terceiro patamar é aquele das abstrações. A partir dos conceitos construídos na etapa anterior, o sujeito se torna capaz de fazer as abstrações necessárias para a atividade projetiva. Estes três patamares propostos por Piaget reconstituem as etapas que tentaremos executar, através da adoção do perspectógrafo como um instrumento. Inicialmente a ação, em seguida a tomada de consciência através da indução de um processo de investigação, e por fim, o trabalho no campo abstrato

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A noção de conceito em ato é ligada aqueles conceitos que estão ativos no indivíduo e que podem ser percebidos no curso de sus ação, mas que não são conscientes ou verbalizáveis. O sujeito faz uso dos mesmos, mas eles não são formalizados. A partir do momento que eles se tornam conscientes, comportando assim uma verbalização, estes conceitos podem ser considerados pragmáticos, técnicos ou mesmo científicos, dependendo da extenção do seu campo de validade.

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Vergnaud, G.(1990) La théorie des champs conceptuels, in: Recherches en didactique des mathématiques, Vol 10/2.3, La pensée sauvage, Grenoble.

do domínio do desenho. No processo de investigação, espera-se identificar as transformações dos esquemas no sentido da abstração. Os esquemas transitórios, construídos a partir da atividade, podem ser empregados na inferência das regras de ação e dos invariantes, e podem permitir aos alunos o trabalho tanto na realidade, como no campo abstrato. O sistema de significantes apropriado para trabalhar os conceitos geométricos é de natureza abstrata. Assim, desde o início da conduta de investigação, se estará trabalhando, simultaneamente, sobre o espaço real e sobre o espaço representado.