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As relações entre merenda e evasão, desnutrição e fracasso escolar: o

3 COMIDA E PODER: Análise histórica da CNAE Campanha Nacional de

3.2 A dinâmica pedagógica da Campanha

3.2.1 Ações pedagógicas docentes: cursos e currículos

3.2.1.2 As relações entre merenda e evasão, desnutrição e fracasso escolar: o

Iremos discutir, neste tópico, um discurso recorrente em toda a História da Alimentação Escolar no Brasil: a questão de se relacionar a merenda à evasão escolar, bem como a desnutrição ao fracasso escolar.

Como vimos no tópico anterior, a insistência do superintendente nacional da CNAE em estabecer a temática da Educação Alimentar nos currículos das instituições de ensino oficial foi tema relevante na Campanha àquela época.

A passagem do general José Pinto Sombra por Fortaleza, para discutir a questão, deu-se no início de 1968. Ocorre que a situação toda estava relacionada a um estudo encomendado

pela CNAE à PUC-BA (Pontifícia Universidade Católica - Bahia), versando sobre a aplicação da alimentação na escola, frequência e aproveitamento.

O objetivo do estudo era o de proporcionar meios para concretização de pesquisas no setor pedagógico sobre as vantagens da utilização da alimentação escolar, principalmente no que se refere ao aprendizado. A primeira medida recomendada se prendia à questão de o estudante ser reprovado ou aprovado em razão da desnutrição. Para tanto, foram coletados dados que interessavam à pesquisa, apanhados antes da aplicação do regime dietético proposto pela CNAE.

Um dos motivos que levaram as autoridades a cuidar do assunto dessa maneira foi a constatação de que, na Bahia, havia reprovação de quase a metade dos estudantes. O representante da CNAE na Bahia, Antônio Rolim, explicava que "a continuar

tal situação, terão os orçamentos se perdido pela metade, anualmente, dada a repetição do ano letivo". (JORNAL O

POVO, 28/06/1967)

Portanto, a CNAE estava convencida de que as crianças não aprendiam por sub- alimentação e que a fome crônica seria a causa da redução do rendimento escolar, desatenção às aulas e pouca assiduidade dos alunos das escolas primárias brasileiras e cearenses.

Essa teoria, segundo a CNAE, foi comprovada inclusive na prática pela representação do Ceará, por meio dos relatórios unânimes das professoras da capital e do interior. Algumas delas constataram que o estado geral de saúde dos escolandos melhorara consideravelmente depois de terem recebido o almoço supletivo, tornando-se menor a incidência de doenças regionais como a verminose, anemia, amarelão.

O diretor da CNAE, Pedro Almino, disse então que seria devido ao bom teor de vitaminas e proteínas dos produtos da CNAE, particularmente do CSM9, que é a base deles, mais hidratos de carbono e gorduras. (IDEM)

Esse discurso foi amplamente propagado em todo o Brasil, por meio da imprensa. O Jornal Correio do Ceará, de 22 de novembro de 1967, fez um longo editorial acerca dessa questão, que aqui compilamos:

9

Corn + soy + milk (composto alimentar para tortas do Instituto CORN MILLER EXPORT)

Fig. 24 - PESQUISA sobre

Alimentação Escolar. Fonte:

[...] Trabalho dos mais notáveis é o que a CNAE vem desenvolvendo em todo o país, proporcionando merenda e, em muitos casos, almoço, concorrendo para a melhoria do padrão alimentar da nova geração de brasileiros. Padrão este atualmente insatisfatório para crianças e adultos, mas que poderia ser superado se as autoridades e as pessoas estivessem interessadas em resolvê-lo. Não se explica que, em um país como o Brasil, com incalculável possibilidade de produção de alimentos, o povo encontre dificuldade para se prover. A fome constitui um atestado vergonhoso de

incapacidade e irresponsabilidade, pois quando se admite a sub-nutrição (aliás, característica da quase totalidade dos brasileiros) é por se alimentarem mal, irracionalmente. Questão originada da falta de conhecimentos nutricionais,

disciplina que não consta do programa de nenhuma escola primária ou secundária.

No lar não existe orientação pertinente à boa alimentação, pois os pais, desconhecedores do assunto, não estão em condições de cuidar da subsistência dos

filhos, nem da própria. No Brasil há uma tradição alimentar com diversos tabus e abusos, sem que os reformadores se voltem para o problema, de interesse fundamental, uma vez que um povo subnutrido tem sua vitalidade diminuída. Cuidar da alimentação é tratar da saúde, da resistência física, predispondo as

pessoas a trabalhar mais, vencendo a preguiça, um "mal brasileiro", porque é sintoma da sub-nutrição característica da nacionalidade. A CNAE não deve ter

precipuamente a preocupação de fornecer uma simples merenda, mas de criar

hábitos alimentares, em vista dos quais as futuras gerações se eduquem. A missão

da Campanha não se extingue com a refeição que ela proporciona, mas sim um plano muito mais vasto de conteúdo educacional e econômico, atento a problemas de produção e comercialização. Entendida como de Educação Alimentar, a missão terá muito maior significação para o Brasil, concorrendo para a solução de um grande problema da nacionalidade, do qual depende da melhoria sanitária e da produtividade do povo brasileiro. ( In: ALIMENTAÇÃO ESCOLAR. Jornal

Correio do Ceará, de 22/11/1967) (grifo nosso)

O Jornal expõe que a sub-nutrição do povo brasileiro é causada pela incapacidade de se alimentar adequadamente, carregando junto dela a "preguiça", característica da nacionalidade. Percebe-se na notícia, implicitamente, a reprodução de um velho e conhecido discurso que busca a eugenia, o higienismo, por meio da constituição de um brasileiro forte e robusto, necessário à formação da nação brasileira. Para nós, um discurso atrelado ao "determinismo social".

Outras notícias veiculadas tratam da evasão escolar, responsabilizando a falta de alimentação na escola como a culpada por esse fenômeno. O Jornal Unitário, de 05 de setembro de 1969, dizia que "a evasão escolar no Ceará, em decorrência da falta de

alimentação, chega a 70% ao ano". Salientava ainda que "na medida em que o estabelecimento de ensino passa a receber sua quota de merenda, pressente-se uma gradativa mudança". (Cf. JORNAL UNITÁRIO, 05/09/1969)

A CNAE, por meio do doutor Pedro Almino, dizia que no passado é que era pior ainda, mas, com os programas de alimentação, já se verificava uma firme reação, em proveito de todos. Pedro Almino asseverava que uma criança sub-alimentada assimilava pouco e até mesmo nas simples cópias sentia dificuldades. "Quando a merenda é suspensa o aluno deixa

de frequentar a escola, mas quando ela volta, todos acorrem novamente ao estabelecimento",

dizia Pedro Almino. (IBIDEM)

A cristalização e a naturalização desse discurso se faz presente ainda hoje, não obstante a opinião divergente de diversos pesquisadores. Pedro Almino, em sua entrevista recente e ainda mantendo o mesmo discurso, relatou-nos que,

[...]sem dúvida, isso é essencial (+) nós procurávamos explicar muito bem isso à comunidade, pois fixava o aluno na escola, o aprendizado do aluno dependia

muito do alimento, pois grande parte dos alunos chegavam sem ter ((se

alimentado)) nada, eram pessoas pobres, e aquela falta de alimento prejudicava,

dificultava o aprendizado, então eles chegando na escola e recebendo o alimento melhoravam o rendimento escolar, melhoravam inclusive a frequência à escola, diminuía muito a evasão escolar. [...](In: SOUSA, Op Cit., p. 171- 178) (grifo

nosso)

Espalhou-se também a notícia de que havia uma diferença marcante no rendimento dos alunos da rede escolar que recebia o apoio da CNAE, em detrimento da que não recebia.

O Jornal O Povo, de 13 de março de 1969, dando total credibilidade a esse discurso, salientava que o binômio escola-alimentação "é hoje de importância vital para a infância

brasileira. Milhões de crianças em todo o país vão à escola não apenas para aprender, mas para se alimentar, obter os nutrientes de que não dispõem em suas casas". (Cf. JORNAL O

POVO, 13/03/1969)

A importância da alimentação escolar seria sublinhada, pois, de acordo com o discurso oficial, funcionava como um fator relevante contra a evasão escolar no ciclo primário (que tinha nas condições sócio-econômicas da população um de seus determinantes). Assim, o Estado mesmo oferecendo a escola, o professor e o livro, não podia dizer, porém, que tinha ofertado tudo, haja vista a necessidade de prestar assistência alimentar a camadas da população infantil sem suporte econômico.

O general José Liberato Souto Maior, assessor da CNAE, em uma passagem por Fortaleza, afirmou que o Nordeste era uma área de grande necessidade alimentar, principalmente entre a sua população escolar. O general estava recolhendo informações para uma medida de aceleração do programa na região, porque existia um elevado número de crianças que necessitavam se alimentar para poder frequentar a escola. (JORNAL O ESTADO, 21/12/1967).

Segundo aquele general, "era uma dispendiosa estupidez educar uma criança com

fome". Ainda disse que uma criança precisa se alimentar bem até os 04 anos e que, entre dez

subnutrição, destacando-se a redução da capacidade motora, intelectual, da visão e deformações ósseas. (IBIDEM).

Analisando criticamente esse discurso, amplamente divulgado, na realidade o mesmo respondia apenas parcialmente à problemática da fome e da desnutrição em relação à evasão e ao fracasso escolar.

A busca de causas biológicas (sub-nutrição) ou, dito de outra forma, a medicalização do fracasso escolar, para responsabilizar o atraso dos estudantes brasileiros, é uma forma de eximir a Escola e, consequentemente o Estado dessa questão, cuja solução é muito mais complexa.

O estudo pioneiro de Cunha (1980, p. 221-222) acerca da questão ensina-nos que a situação de fome da classe trabalhadora era algo necessário ao funcionamento da sociedade, baseada nas formas de dominação.

A Escola, segundo o autor, é a instituição que executa, como mandatária, o papel de discriminar as pessoas que são portadoras de cultura, ou que conseguem interiorizá-la rapidamente, conferindo-lhes um sinal distintivo: o diploma.

A cultura da classe dominante é aceita oficialmente pelo sistema escolar como "natural" e indiscutível, e a cultura da classe trabalhadora é tida como rejeitada, indecente, primitiva, grosseira.

Portanto, essa é a tese que atesta a principal razão das taxas de evasão e repetência na série inicial da escola primária brasileira, ou seja, pelos mecanismos cotidianos da prática escolar que expressam esses estereótipos e concorrem "objetivamente" para a exclusão das crianças de origem de classes operárias. (IDEM, p. 123)

Vê-se que, por essa crítica, está superada a tese da evasão escolar baseada na fome e disposição das crianças irem à escola apenas para se alimentar.

No tocante ao fracasso escolar, não se pode concluir, em bases científicas, que a desnutrição afete a inteligência e leve àquele. Moyses (1989, p. 98) afirma que não é a desnutrição tal causa, mas um conjunto de fatores econômicos, sociais e culturais que influenciam o indivíduo, principalmente a criança.

O autor aduz que não se pode estudar as consequências do fracasso escolar considerando apenas a desnutrição como fator causal único e isolado. O mais adequado seria tratar o problema como uma interrelação de fatores integrantes de um complexo de doença social, em que se torna impossível estabelecer limites nítidos quanto à importância de cada um dos fatores acima relacionados, como agente causal em relação a qualquer efeito que se pretenda estudar. (IDEM, p. 99)

Ademais, conforme Valla (1994, p. 60), os estudos que procuraram estabelecer vínculos entre a desnutrição e o fracasso escolar no Brasil foram normatizados a partir de crianças oriundas da classe média alta, desconsiderando totalmente o contexto sócio-cultural das crianças das classes trabalhadoras.

Trata-se, portanto, de um discurso que foi implantado como diagnóstico inquestionável para o problema. E, dentro dessa perspectiva, a merenda escolar surgia como instrumento de correção.