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1 PARADIGMAS UTILIZADOS NA PRESENTE PESQUISA

1.2 Dos fundamentos da História Nova (Nouvelle histoire)

Discorreremos agora sobre os fundamentos da História Nova ou Nouvelle histoire, uma vez que a presente pesquisa pretende-se inserida na práxis historiográfica dessa escola.

Como se sabe, a prática historiográfica alterou-se significativamente nas últimas décadas do Séc. XX, com a terceira geração dos Annales3 que, sem negar a relevância das

questões estruturais de longa duração, nem a pertinência dos estudos econômicos e

3

A terceira geração compõe-se de uma ampla cadeia de historiadores, entre os quais François Furet, George Duby, Jacques Le Goff, Jacques Revel, Michèle Perrot, Mona Ozouf e Pierre Nora (PINSKY, 2005, p. 143)

demográficos que precisavam de fontes com tratamento estatístico, propunha "novos objetos, problemas e abordagens". (PINSKY, 2005, p. 112).

Os aportes analíticos provenientes de outras ciências humanas, como a Sociologia, a Psicanálise, a Antropologia, a Linguística e a Semiótica incentivavam a interdisciplinaridade e traziam contribuições metodológicas importantes, forçavam o historiador a refletir sobre as fronteiras de sua própria disciplina, cada vez mais difíceis de precisar.

Jacques Le Goff e Pierre Nora explicitaram que pretendiam promover um novo tipo de história, ligada a três processos: novos problemas, que colocavam em causa a própria história;

novas abordagens, que modificavam, enriqueciam e subvertiam os setores tradicionais da

história e; novos objetos, que começariam a aparecer no campo epistemológico da história. (LE GOFF; NORA, 1978, p. 11-12)

O processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores ficou mais evidente pela renovação temática, que passou a incluir o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim uma miríade de questões antes ausentes do território da História.

Passava-se de um paradigma de análise macroeconômica (então primordial) para uma História que focalizava, doravante, os sistemas culturais. De Certeau formula o seguinte pensamento acerca da História Nova:

O Historiador não é mais um homem capaz de construir um império, nem visa mais o paraíso de uma história global. Ele chega a circular em torno das racionalizações conquistadas. Ele trabalha nas margens. Sob esse aspecto, ele se torna um erradio. (DE CERTEAU, Apud BOUTIER, 1998, p. 25-29)

Tais mudanças alteraram a concepção que se tinha de "documento", fonte histórica primaz para se realizar qualquer trabalho historiográfico. Os pontos essenciais sobre a questão do "documento" foram sistematizados por Jacques Le Goff no prefácio-manifesto para a História Nova:

Uma nova concepção de documento, acompanhada por uma nova crítica deste. O

documento não é inocente, não decorre apenas da escolha do historiador,

parcialmente determinado ele próprio por sua época e seu meio; o documento é

produzido consciente ou inconscientemente pelas sociedades do passado tanto para impor uma imagem desse passado como para dizer a "verdade". A crítica

tradicional dos documentos forjados é muito insuficiente. É preciso desestruturar o documento para entrever suas condições de produção. Quem detinha, em dada sociedade do passado, a produção de testemunhos que, voluntária ou

involuntariamente, tornaram-se documentos da história? É a partir da noção de documento/ monumento, proposta por Michel Foucault em A arqueologia do saber, que a questão precisa ser considerada. Ao mesmo tempo, é preciso localizar,

explicar as lacunas, os silêncios da história, e fundamentá-la tanto nesses seus

vazios como na densidade daquilo que sobreviveu. (LE GOFF, Op. cit., prefácio) (grifo nosso)

Não podemos deixar de mencionar também a renovação do Marxismo, marcante nos estudos de Raymund Willians, Perry Anderson, Christopher Hill, Erik Hobsbawm e E. P. Thompson. Este último fez uma verdadeira revolução ao propor que se adotasse a perspectiva dos vencidos, a "história vista de baixo", trazendo à cena a experiência de grupos e camadas sociais antes ignorados e inspirando abordagens inovadoras, inclusive a respeito de culturas de resistência (PINSKY, Op cit, p. 114).

Ao longo dessa trajetória, a visão telescópica proveniente do amplo campo de observação e das séries quantificáveis que não prescindiam do auxílio do computador, foi confrontada com o olhar da Micro-história, sensível aos detalhes e objetos modestos, o que colocou em pauta a questão dos complexos "jogos de escalas" manipulados pelos historiadores. (IDEM, p. 114)

Dentro desse processo todo de consolidação da Nouvelle histoire (ou 3a geração dos

Annales), pode-se falar da virada linguística (ou desafio semiótico), que evidenciou o caráter

narrativo do texto historiográfico e forçou a discussão de sua natureza, gerando polêmicas quanto à (in)existência de referências externas ao próprio discurso. Também merecem destaque, nesse contexto, a História do Tempo Presente (História imediata) e o retorno da História Política.

Enfim, não podemos prescindir das inúmeras contribuições teórico-metodológicas alcançadas nas últimas décadas, onde se aproximaram e se entrecruzaram os âmbitos da História Cultural (que está no centro das renovações) e da História Política, na sua acepção renovada, expressas em termos de política cultural e cultura política.

Se a História Total é o maior ponto de discordância entre as primeiras gerações dos

Annales e a Nouvelle Histoire, a interdisciplinaridade é o aspecto que as une, o grande traço

de identidade que unifica todo o movimento dos Annales, sincrônica e diacronicamente. A interdisciplinaridade assegura a possibilidade de unir a História-problema, o caráter construtivo da História, a ampliação das fontes históricas (e de metodologias para a sua abordagem) e a expansão dos campos históricos e das possibilidades de objetos de estudo disponíveis ao historiador. (Cf. BARROS, 2012, p. 355)

Encaminhamo-nos já para o próximo sub-capítulo, no entanto, para fecharmos adequadamente este tópico sobre os fundamentos da História Nova devemos mencionar que, entre as conquistas dos Annales que se universalizaram, existe ainda uma outra: a percepção de que não apenas o tempo é vital para a historiografia, mas também o espaço. O surgimento da História Regional, por exemplo, ao propor uma nova possibilidade de recorte do espaço para a historiografia, foi uma dessas contribuições.

Portanto, concluímos este tópico afirmando, juntamente com Cardoso e Brignoli (2002, p. 34), que a Nouvelle Histoire é uma abordagem histórica que objetiva produzir conhecimento em torno das mais variadas práticas culturais constituídas na vivência das relações sociais, onde as experiências dos sujeitos são enfocadas como um campo de conflitos e tensões, marcado por várias táticas e estratégias de poder.